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3 CONSTRUÇÃO DO GÊNERO E DA SEXUALIDADE NO PROCESSO

3.3 Androcentrismo e o apagamento histórico-discursivo do gênero feminino

3.3.1.1 Poder, habitus e campo em Pierre Bourdieu

As relações de poder e dominação tendem a ser explicadas de diversas formas, por muitos autores. Bourdieu e Althusser, por exemplo, cada qual a seu tempo e a partir de determinados conceitos, buscaram compreender de que forma o poder se manifesta nas relações sociais gerando dominantes e dominados.

Enquanto o pensamento marxista abordava a noção de capital apenas no nível econômico, para Bourdieu (1998) o conceito de capital se expande para além de sua concepção econômica, enfatizando não somente as trocas materiais, mas também as trocas “imateriais”, as quais ele denominou de capital social e capital cultural formando, juntamente, com o capital

12 “The search for a genuinely egalitarian, let alone matriarchal, culture has proved fruitless.”. ORTNER, Sherry

B. 1974. Is female to male as nature is to culture? In M. Z. Rosaldo and L. Lamphere (eds), Woman, culture, and society. Stanford, CA: Stanford University Press, p. 70.

econômico, o denominado capital global.

Por viver em sociedade, o homem estabelece redes de relações por meio das quais adquire, troca e converte os diversos tipos de capital, isto é, uma rede de trocas, conversões e aquisições que moldam a vida em sociedade.

Para Bourdieu (2016), o poder pode se manifestar de diversas formas numa determinada sociedade, a qual está dividida em capitais sociais.

A lógica do sistema é perpetuar o privilégio e a desigualdade, porém, não rompe com Marx, mas vai além dele, ampliando os conceitos de capital e condições de produção, pois Marx se limitou a teorizar a sociedade por meio da luta de classes e as condições de produção por um viés econômico.

Bourdieu (2016) vai além, afirmando que existe um viés econômico que move as sociedades e permeia a luta de classes, porém, no espaço social há distintos tipos de capital que, segundo o autor, se divide em capital econômico, capital social, capital cultural e capital simbólico.

Bourdieu (1998) conceitua o capital social como

[...] “um conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão vinculados a um grupo, por sua vez constituído por um conjunto de agentes que não só são dotados de propriedades comuns, mas também são unidos por relações permanentes e úteis”. (1998, p. 67)

Ou seja, para Bourdieu (2016), a sociedade se compõe por sistemas, simbólicos que se organiza por meio de diferenciações e que funcionam por meio de grupos de posição que foram acumuladas ao longo do tempo ou estilos de vida.

Assim, o campo social não se reduz às relações de produção, isto é, as classes sociais, como um mero reflexo da posição ocupada nas relações de produção, não se reduzindo apenas ao campo econômico. Para ele, as classes sociais não possuem consciência de sua dominação por um grupo dominante, assumindo papéis sociais de forma inconsciente.

O capital econômico é constituído por fatores de produção, tais como a terra, as fábricas, o trabalho, bens, propriedades. O capital social se constitui pelo conjunto de relações sociais, como contatos, conhecidos, amigos e parentes. O capital cultural é aquele que permite o acesso a consumos refinados ou reconhecimentos acadêmicos.

Finalmente, o capital simbólico diz respeito ao prestígio que uma pessoa possui dentro de um determinado campo social. É neste espaço social que se reparte o capital global. Assim, o espaço social não pode ser pensado de forma unidimensional:

Mas a construção do modelo do espaço social que sustenta esta análise supõe uma ruptura bem distinta com a representação unidimensional e unilinear do mundo social que subentende a visão dualista segundo a qual o universo das oposições constitutivas da estrutura social se reduziria à oposição entre os proprietários dos meios de produção e os vendedores de força de trabalho (BOURDIEU, 2016, p. 156).

É no gosto por determinadas coisas, bens, objetos ou atividades, seja na ordem material ou simbólica que acaba sendo simbolizada a posição de classe dos indivíduos dentro do meio social. São as práticas cotidianas definidas pelo gosto que delimitam o lugar do ser numa determinada sociedade, de forma inconsciente, e cada qual assumindo um certo papel social, seja ela de cunho aristocrático, seja de cunho popular.

Estas práticas sociais são produto do “habitus”, o qual “é um conhecimento adquirido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitus, a hexis13 indica a disposição incorporada, quase postural (BOURDIEU, 2016, p. 60).

O habitus pode ser tanto uma maneira de pensar quanto uma maneira de agir, sendo ao mesmo tempo um conjunto de esquemas de classificação do mundo e um conjunto de disposições de ação, que são determinantes e aprendidas ao longo de uma determinada trajetória social, e sobre os quais as pessoas não têm consciência, participando de suas vidas sem que as mesmas tenham controle sobre ele:

As categorias de percepção do mundo social são, no essencial, produto da incorporação das estruturas objectivas do espaço social. Em consequência, levam os agentes a tomarem o mundo social tal como ele é, a aceitarem-no como natural, mais do que a rebelarem-se contra ele, a oporem-lhe possíveis diferentes, e até mesmo antagonistas: o sentido da posição como sentido daquilo que se pode ou se não pode “permitir-se a si mesmo” implica uma aceitação tácita da posição, um sentido dos limites (“isso não é para mim”) ou, o que é a mesma coisa, um sentido das distâncias, a marcar e a sustentar, a respeitar e a fazer respeitar — e isto, sem dúvida, de modo tanto mais firme quanto mais rigorosas são as condições de existência e

13 Termo grego que significa “hábito”: (gr. ifyç-, lat. Habitus, in. Habit; fr. Disposition; ai. Fertigkeit; it. Abitó). É

preciso distinguir o significado deste termo do significado de costume, com o qual é frequentemente confundido. Significa uma disposição constante ou relativamente constante para ser ou agir de certo modo. P. ex., o "hábito de dizer a verdade" é a disposição deliberada, neste caso um compromisso moral de dizer a verdade. É coisa bem diferente do "costume de dizer a verdade", que implicaria o mecanismo de repetir frequentemente essa ação. Assim, "o hábito de levantar-se cedo pela manhã" é uma espécie de compromisso que pode representar esforço e sofrimento; "o costume de levantar-se cedo pela manhã" não representa esforço algum, porque é um mecanismo rotineiro. Essa palavra foi introduzida na linguagem filosófica por Aristóteles (Met., V. 20, 1022b, 10), que a definiu como "uma disposição para estar bem ou mal disposto em relação a alguma coisa, tanto em relação a si mesmo quanto a outra coisa; p. ex., a saúde é um hábito, porque é uma dessas disposições". Nesse sentido, Aristóteles julga que a virtude é um hábito, por não ser "emoção" (como a cupidez, a ira, o medo, etc), nem "potência", como seria a tendência à ira, do sofrimento, à piedade, etc. A virtude é, antes, a disposição para enfrentar, bem ou mal, emoções e potências; p. ex., dobrar-se aos impulsos da ira ou moderá-los (Et. nic, II, 5). O mesmo significado é retomado por S. Tomás, que o expõe da seguinte maneira (Contra Gent., IV, 77): "O hábito difere da potência porque não nos capacita a fazer alguma coisa, mas torna-nos hábeis ou inábeis para agir bem ou mal". (ABBAGNANO, 2007, p. 495-496)

quanto mais rigorosa é a imposição do princípio de realidade [...] (BOURDIEU, 2016, p. 144, grifei.)

O habitus, assim, se insere no espaço social e toma corpo, ganha vida, se organiza e se mantém ganhando uma espécie de vida própria alimentada pela reprodução inconsciente dos indivíduos que dele fazem parte, sem questionamentos, e sim, ao contrário, como um aceite natural de tal condição de tal mecanismo perpétuo de reprodução social.

O habitus é uma espécie de ponte entre o individual e o coletivo, uma vez que se desenvolve a partir de um indivíduo que vive num determinado contexto social. Trata-se de um sistema de disposições socialmente construídas que, enquanto estruturas estruturantes constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das prática e ideologias características de um grupo de agentes (BOURDIEU, 2007).

O habitus não é o que o indivíduo, conscientemente, aceita e acredita como sendo seu, mas tem sua origem na sociedade. Estruturas estruturantes são as estruturas ou aparelhos institucionais que cercam o indivíduo e o estruturam, sendo o sujeito capturado por estas disposições constituídas. As estruturas estruturantes formam o habitus no indivíduo, mas o

habitus é anterior ao indivíduo, sendo este interpelado pela estrutura. O habitus é subjetivado,

tácito, incorporado, internalizado pelo sujeito, mas é também objetivado pela sociedade. O conjunto de estruturas ou instituições ligadas por um habitus forma o campo, que é o conjunto dentro do qual os agentes ocupam posições que determinam qual posição cada agente tomará dentro dele, seja para conservá-lo, seja para modificá-lo. Cada campo social é um espaço particular de socialização definidor de um certo comportamento que se impõe aos indivíduos, possuindo suas regras. O conjunto de ideias incorporadas pelo indivíduo e que, normalmente, não são questionadas, são denominadas por Bourdieu como doxa. O habitus está para a maneira de pensar ou agir, assim como a doxa está para o conjunto de ideias sem comprovação científica e permanecem no nível do senso comum ou da mera opinião.

O conceito de habitus está relacionado aos diversos campos, como o campo político, o campo jurídico, o campo religioso, o campo jornalístico, o campo econômico, dentre outros. O pertencimento a um certo campo é um espaço de socialização, de encontro preferencial, um lugar onde as pessoas tendem a se encontrar mais, e que também é gerador de comportamentos sutis e sofisticados e que são determinados por esta socialização.

Quanto mais estruturado um habitus, mais a ideia de campo se mostra perceptível, porém, permeado de comportamentos inconscientes. Há um conjunto de comportamentos que são definidos no espaço de campos, que possuem uma estrutura própria de socializar e uma maneira própria de legitimar o comportamento de seus agentes. O habitus é um conjunto de

experiências normativas no mundo social que se tornam um corpo, eis que se incorporam, e o

habitus toma forma. O aprendizado está para a célula e o habitus está para o corpo. Assim, a

sociedade se incorpora, toma corpo, na forma de habitus definido em cada campo social. Os campos são a configuração de classes ou relações sociais onde os grupos se unem e se relacionam. Os campos são dinâmicos e produzem uma hierarquização entre quem detém o poder e quem aspira detê-los. Todos os campos e a forma de capital estão relacionadas com formas de poder existentes nas várias instituições ou aparelhos ideológicos:

A filosofia da história que está inscrita no uso mais corrente da linguagem corrente e que leva as palavras que designam instituições ou entidades colectivas — Estado, Burguesia, Patronato, Igreja, Família, Justiça, Escola — a constituirem-se em sujeitos históricos capazes de originar e realizar os seus próprios fins (“o Estado — burguês — decide...”, “a Escola — capitalista — elimina...”, “a Igreja de França combate...”, etc.) encontra a sua forma mais acabada na noção de Aparelho (ou de “dispositivo”), a qual voltou a estar em moda no discurso com maiúsculas denominado “conceptual” (BOURDIEU, 2016, p. 78).

O campo cultural, por exemplo, é um terreno de disputa de poder, onde as armas são as palavras, as tradições e formas de expressão. Nos campos atuam os agentes sociais, o qual ocupa determinadas posições nos espaços sociais, as quais são construídas de acordo com o capital social de cada indivíduo.

O conjunto de habitus forma o campo, dentro dos quais se formam as classes sociais ou grupos de pessoas unidas pelas mesmas características, como cargos, salários, ambientes que frequentam, a cultura que lhes agrada, a religião que seguem, os empregos que escolhem, dentro de uma infinidade de fatores que tecem a realidade social.

Dentro de cada campo, por consequência, existirão regras de comportamento, formas de se vestir, falar, se portar, se apresentar, se relacionar, e que são sempre impostas pelo poder dominante sobre os indivíduos dominados. Esta dominação tende a operar uma normatização que se torna natural para os dominados e favorecendo os dominantes. O desejo do dominado em ser aceito dentro de um determinado campo lhe faz acreditar que as normas a serem seguidas são naturais, anteriores ao campo, que a normatização é assim desde sempre e que é necessário aceitar o status quo, porém, Bourdieu (2014) deixa claro que o indivíduo sequer percebe ou questiona as regras do sistema pré-estabelecido.

Os sistemas econômicos, culturais, sociais e simbólicos se reproduzem, de tal maneira, que conservam uma determinada posição de classes, onde impera a resignação por parte do dominado. Assim, a classe dominante contribuiu para a integração desta cultura e a manutenção do status quo, onde alguns indivíduos se distinguem dos outros numa integração fictícia da

sociedade em que o dominante dita as regras e normatiza os comportamentos, cabendo à classe dominada aceitá-las com naturalidade em uma espécie de alienação e, por consequência, desmobilizando-os de qualquer tentativa de desmontar o que está pré-estabelecido.

O dominado não questiona, não julga, não critica, porque acha que “sempre foi assim”. Ocorre aí a legitimação de uma normatização dentro do campo social, onde os sistemas que o integram são regidos por regras simbólicas. As classes sociais disputam um espaço social dentro do campo, onde algumas prevalecerão e outras recuarão, mas não se pode afirmar que este embate é sempre consciente, já que a dominação simbólica atinge todos os níveis sociais, e a maior parte dos indivíduos não questiona as regras ou a normatização imposta.

Esta normatização tida como natural e produz sentido aos que fazem parte de determinado campo, muito além do simbólico, que ganha força de norma:

Compreender a gênese social de um campo e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não motivado os atos dos produtores e as obras por eles produzidas (BOURDIEU, 2016, p. 68, grifei).

A sociedade, assim, é composta por regras arbitrárias estabelecidas pelo discurso como sendo de ordem natural através de um meio mascarado de sistemas de classificação que transformam relações de poder em relações de sentido. A força ganha sentido porque alguém mais forte determinou que seja desta maneira.

Dependendo da posição de cada grupo ou campo, os indivíduos tendem a travar uma disputa simbólica com o objetivo de impor sua visão de mundo utilizando-se dos capitais inerentes a cada um dentro de suas posições sociais já estabelecidas.

O discurso dominante produz valor simbólico, e aqueles que possuem maior poder são os que detêm maior poder simbólico para a produção destes discursos impostos como uma verdade a ser seguida.

A reprodução destes discursos e suas significações é que torna permanente as relações de dominação por meio de símbolos, cuja significação é forjada pelos dominantes e aceita pelos dominados, o que acarreta um consenso social sobre o sentido do mundo e uma determinada ordem social.