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3 CONSTRUÇÃO DO GÊNERO E DA SEXUALIDADE NO PROCESSO

3.2 O apagamento histórico do gênero feminino na história

Cada indivíduo humano nasce com um sexo biológico que o define como pertencente ao sexo masculino ou feminino, porém, os papéis sociais, ou papéis de gênero são constituídos, culturalmente, seja pelos pais, desde o momento em que se tem a notícia da gravidez, seja pela sociedade, quando a criança passa a ter convívio social.

Os pais iniciam o processo de construção do gênero da criança ao escolherem um nome, preparar o enxoval, planejar o futuro da criança que ainda não nasceu e, quando é chegado o momento do parto, já surge no mundo com rótulos ou papéis pré-constituídos aos quais deve se encaixar.

Conforme Beauvoir (1970, p. 9), em sua frase clássica, “ninguém nasce mulher: torna- se mulher”, e aduz:

Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um outro (p. 9).

Porém, muito antes de autores do século XX denunciarem a construção de papéis sociais para homens e mulheres, há que se ter a mente a própria construção de tais papéis ou discursos ao longo da história.

Conforme visto, anteriormente, houve um apagamento da mulher desde a descoberta da agricultura, quando os homens passaram a realizar a divisão social do trabalho.

Na Grécia Antiga, a mulher era totalmente subjugada pelos maridos, sendo consideradas seres inferiores e desprovidas de intelectualidade, o que se demonstra nas palavras do próprio Sócrates: “as mulheres não são de modo algum inferiores aos homens. Tudo de que precisam é um pouco mais de força física e energia mental” (TANNAHILL, 1983, p. 100).

As mulheres de Atenas não tinham direitos políticos, estando em pé de igualdade (ou desigualdade) com os escravos, permanecendo toda a sua vida sob a autoridade de um parente do sexo masculino que lhe fosse mais próximo e tratada na condição de objeto. A elas não era dado o direito à educação formal e seu destino era um casamento arranjado e permaneciam o tempo todo em aposentos do lar. Quando o marido recebia convidados para uma refeição, a mulher quase nunca participava, visto que estes eram todos do sexo masculino (TANNAHILL, 1983, p. 100).

Esta condição social da mulher não era diferente para suas contemporâneas de outras regiões do globo, como as babilônias, egípcias e hebreias (TANNAHILL, 1983, p. 102), sendo tratadas como parte dos bens do marido e sua função era a reprodução. Para os gregos, a mulher era gyne, cujo significado linguístico é “portadora de filhos” (TANNAHILL, 1983, p. 102).

Tal construção de inferioridade da mulher se refletiu na própria mitologia, onde as mesmas eram sempre retratadas como perversas ou más, sedimentando ainda mais uma discursividade machista que objetivava a mulher e a tornava um ser abjeto:

Muitas das figuras nas tragédias gregas foram mulheres. Clitemnestra trucidou o marido. Medeia esquartejou o irmão e mais tarde assassinou os filhos. Fedra acompanhou o perjúrio com suicídio. E Electra, foi cúmplice de matricídio. As próprias heroínas eram maculadas. A deusa Afrodite, bela e sedutora — uma desavergonhada. O mesmo para Helena de Tróia. A fiel Penélope, na época em que acolheu seu nada fiel marido Odysseus (Ulisses), quando ele retornou de sua peregrinação, tinha atrás de si 20 anos de dura reflexão, de maneira que nenhum grego sensato daria um figo pelas probabilidades de bem-aventurança conjugal para ambos. E Alceste, que consentiu em morrer, era claramente um capacho (TANNAHILL, 1983, p. 102-103).

Percebe-se neste breve recorte a presença de uma discursividade nas narrativas gregas em inferiorizar o feminino e potencializar o masculino. Além disso, era o discurso de um grupo para um determinado tempo e contexto social. Os homens detinham o saber e, por isso mesmo, detinham também o poder, o que levou à subjugação dos corpos, à construção de papéis sociais muito bem definidos e cuja materialidade atinge os corpos dos indivíduos, como lembra Foucault (1998, p. XII).

Avançando na história e na geografia, alcançamos alguns dogmas dos antigos hebreus, os quais demonstram uma subjetivação da mulher dentro de um contexto de patriarcado, onde a Torá, o livro sagrado do povo hebreu descreve algumas situações onde, nitidamente, se percebe a subjugação da mulher e a discursividade que definiu seu lugar dentro dessa sociedade milenar.

O “mito judaico-cristão, que é a base da nossa civilização atual” (MURARO, 1992, p.70) evidencia, claramente, o discurso de dominação do homem sobre a mulher, o qual é encontrado em várias passagens da Bíblia, seja ela em seu original hebreu, o Torá, seja no legado do cristianismo.

Já no primeiro versículo do Livro do Gênesis, em A Bíblia (GÊNESIS, 1:1), ao nos depararmos com a afirmação de que “no princípio criou Deus o céu e a terra”, já é possível se notar que a figura da divindade é nominada por meio de um substantivo masculino. A medida que texto do mito da criação vai sendo narrado, Deus cria o “homem”, à sua imagem e semelhança: “e formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente. (GÊNESIS, 2:7). No versículo 18 do mesmo capítulo 2, Deus decide oferecer uma “ajudadora” para o primeiro homem, pois não era bom que ele estivesse só (GÊNESIS, 2:18). Deus coloca Adão em sono profundo, toma dele uma costela e modela uma mulher, entregando-a para o homem (GÊNESIS, 2:22). Finalmente, o relato alcança o momento em que Eva, a primeira mulher, come do fruto da árvore do conhecimento e a oferece a Adão, que também o come. Deus, irado, amaldiçoa a mulher e a subjuga ao marido: “multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará (GÊNESIS, 3:16).

Nota-se, no início da narrativa bíblica, que a dominação da mulher pelo homem estava autorizada pelo Criador, como uma forma de punição pela desobediência em comer do fruto proibido. Mais que isso, a narrativa demonstra que a mulher é um ser influenciável, ingênuo e egoísta, tendo sido a culpada pelo homem ter perdido o Jardim do Éden. Este discurso opressor de dominação masculina sobre a feminina é encontrado em vários outros trechos bíblicos, demonstrando o caráter de subjugação da mulher pelo homem através da fala (ou discurso) do

próprio Criador e dando início ao processo de apagamento da figura feminina por meio da exclusão de qualquer igualdade junto ao homem, o qual passa a ser tanto o dominador da natureza, quanto o senhor da mulher:

À medida que o homem vai controlando a natureza, seu poder sobre a mulher vai também, na mesma proporção, aumentando e se cerrando. O fruto da árvore do conhecimento afasta cada vez mais o homem da natureza, e a árvore do conhecimento é também a árvore do bem e do mal. Do bem, no que permite a continuidade do processo humano, e do mal no sentido em que cria o poder, a dominação como conhecemos hoje (MURARO, 1992, p.71).

Porém, não apenas a tradição oral ou escrita denotam o poder totalizante do homem sobre a mulher hebreia e outras da mesma região. A vestimenta se mostrava como uma forma de opressão, mesmo que não percebido pela mulher, uma vez que se institucionalizara, pouco a pouco, dentro do seio das sociedades da época, a fim de esconder seu corpo e fortalecer o apagamento ensejado pela discursividade masculina dominante, como o uso do véu, por exemplo, conforme enuncia Gregersen (1983):

As primeiras referências ao véu aparecem no antigo Epic oi Gilgamesh da Mesopotâmia, que tem partes que datam de 2000 a. C. Nele, uma deusa é descrita como “coberta por um véu”; e à noite é metaforicamente referida como “a noiva de véu", sugerindo o costume encontrado em muitas sociedades e ainda presente na tradição judaico-cristã. Nos tempos modernos, o uso costumeiro do véu está primariamente associado ao mundo islâmico conservador. Na sociedade muçulmana tradicional, os véus são usados pelas mulheres após a menarca, continuando até a velhice. As mulheres podem descobrir suas faces somente perante outras mulheres, crianças, marido ou parentes próximos do sexo masculino. Devem ser cobertas não somente a cabeça e a porção inferior da face, mas também a maior parte do corpo. Alguns véus são tão longos que cobrem todo o corpo (p. 121).

O hábito islâmico de se usar o véu já era conhecido dos antigos hebreus, onde as mulheres cobriam a cabeça com um xale, imagem comumente recordada pela tradição cristã por meio da representação da Virgem Maria. Além disso, no Novo Testamento, o apóstolo Paulo de Tarso, um judeu convertido ao cristianismo deixa claro que o uso do véu, pela mulher, era uma forma de honradez, enquanto que o homem não necessitava cobrir a cabeça por ser a “imagem e glória de Deus”, além de enunciar que a mulher fora criada por causa do homem, e não o contrário:

Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra a sua própria cabeça, porque é como se estivesse rapada. Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também. Mas, se para a mulher é coisa indecente tosquiar-se ou rapar-se, que ponha o véu. O homem, pois, não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus, mas a mulher é a glória do homem. Porque o homem não provém da mulher, mas a mulher do homem. Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por

causa do homem. Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça sinal de poderio, por causa dos anjos. Todavia, nem o homem é sem a mulher, nem a mulher sem o homem, no Senhor. Porque, como a mulher provém do homem, assim também o homem provém da mulher, mas tudo vem de Deus. Julgai entre vós mesmos: é decente que a mulher ore a Deus descoberta? Ou não vos ensina a mesma natureza que é desonra para o homem ter cabelo crescido? Mas ter a mulher cabelo crescido lhe é honroso, porque o cabelo lhe foi dado em lugar de véu (1 CORÍNTIOS, 11:5-15, grifei). O uso do véu tinha como base lógica separar homens e mulheres em lugares públicos, visto que a mulher era tida como uma ameaça para os homens devido a sua sexualidade destrutiva (GREGERSEN, 1983, p. 205).

No livro de Levítico (21:13-14), o código moral proibia o casamento de sacerdotes com prostitutas, e as filhas daqueles, caso de tornassem meretrizes deveriam ser queimadas (LEVÍTICO, 21:09). Além disso, a mulher deveria ser virgem, devendo toda viúva, repudiada, desonrada ou prostituta jamais ser tomada em casamento (LEVÍTICO, 21: 13-14).

Curiosamente, muitas santas cristãs eram prostitutas, originalmente, como SS Maria do Egito, Pelagia, Theodotea, Afra de Augsburg, e a mais conhecida delas, Maria Madalena, embora não se encontre, na Bíblia, uma justificativa para isso (GREGERSEN, 1983, p. 160).

São diversas as discursividades no texto bíblico, que demonstram a inferioridade feminina e a supremacia masculina, as quais foram incorporadas pelos primeiros cristãos e reproduzidas por séculos, como uma forma de dominação de um sexo sobre o outro.

Com o advento do Cristianismo e sua evolução, o modelo de sexualidade padrão passa a ser o de fins reprodutivos, conforme fora decidido no Concílio de Trento, entre os anos de 1545 a 1563 d.C. Entretanto, antes disso, o modelo de castidade para padres era o símbolo de autoridade moral institucionalizado pela igreja católica, quando Gregório VII, no século XI, expediu uma proibição do casamento clerical (TANNAHILL, 1983, p. 155).

Para Santo Agostinho, o desejo sexual, batizado por ele como luxúria, era uma herança nefasta de Adão e Eva, a qual ainda acompanhava a humanidade:

Agostinho acreditava que a culpa da transgressão original, transmitida pela herdada concupiscência dos descendentes de Adão e Eva, persistia ainda na humanidade, o que explicava a perversidade e independência dos órgãos sexuais, a natureza intratável do impulso carnal e a vergonha geralmente suscitada pelo ato do coito. Sexo e luxúria eram essenciais à doutrina do Pecado Original, sendo todo ato do coito executado pela humanidade subsequente à Queda necessariamente mau, da mesma forma que toda criança dele nascida, nascia em pecado. Embora Deus houvesse iluminado o primeiro homem e a primeira mulher com um inocente instinto físico, destinado a propiciar a continuação da espécie, a luxúria o transformara em algo vergonhoso (TANNAHILL, 1983, p. 153)

O corpo, segundo Agostinho, era um receptáculo maculado para a mente e o espírito, cabendo à Igreja determinar e propagar os termos de moralidade envolvendo as práticas sexuais.

O discurso da igreja, que detinha o poder hegemônico durante a Idade Média, era castrador e culpava as mulheres pela perda do Paraíso, bem como pelas tentações e fraquezas que, vez ou outra, arrebatavam os homens para o pecado da luxúria.

Na igreja primitiva, a mulher era vista como um ente a ser domado, que deveria praticar o silêncio e se submeter, docilmente, à instrução, visto ser uma filha de Eva, a qual induzira Adão à transgressão (TANNAHILL, 1983, p. 153).

Como toda boa cristã, a mulher deveria esconder seus encantos dos homens, tanto quanto possível, usar o véu na igreja e jamais utilizar pinturas ou cosméticos que realçassem sua beleza, ou “aqueles cataplasmas da luxúria”, conforme chamou-os São Jerônimo, acrescentando: “O que pode (uma mulher) esperar do Céu quando, em súplica, ergue uma face que seu criador não reconhece?” (TANNAHILL, 1983, p. 160).

A igreja estabeleceu um paralelo entre as figuras de Jesus e de sua mãe, Maria de Nazaré com a questão da castidade e da moralidade sexual. Construindo uma discursividade onde Jesus fora concebido pela divindade e não pelo ato sexual, a Igreja Católica procurou desconstruir qualquer imagem positiva sobre a sexualidade, a qual deveria ser evitada, mas caso não fosse possível, o ato sexual deveria ser exclusivo entre parceiros casados e de forma rápida, quase com precisão cirúrgica, uma vez que mesmo casados, o homem e a mulher estariam cometendo o pecado da luxúria se o sexo despertasse desejo ou prazer entre marido e mulher.

A virgindade de Maria foi atrelada à pureza, mas como Jesus fora o único ser gerado pela divindade, o sexo era algo inevitável entre os casais, porém deveria estar limitado apenas para fins reprodutivos. A igreja da época foi buscar nos discursos de superioridade grega e hebraica sobre a mulher o amálgama para sua própria discursividade machista: a mulher era inferior ao homem, física e culturalmente, além de carregar a culpa pela perda do Jardim do Éden e de toda tentação que acometia os homens.

Séculos de um discurso religioso opressor e hegemônico colocaram a mulher em segundo plano na ordem da natureza humana, a própria encarnação da luxúria e que deveria ser evitada a todo custo. Uma discursividade que afetou o corpo da mulher de maneira a apagá-la, com sucesso, de uma dimensão mais respeitosa e de humanidade, como se a mesma não merecesse qualquer olhar benevolente por parte dos homens.

A discursividade religiosa cristã era tanto opressora, quanto castradora, uma vez que a virgindade era extremamente valorizada, enquanto que a mulher viúva era desaconselhada a se casar novamente, principalmente se já tivera filhos e cumprira seu “papel social” como um mero corpo reprodutor. Entretanto, ao homem viúvo era aconselhado se casar novamente, visto que poderia ter mais filhos com mulheres mais jovens e férteis.

Tal discursividade foi construída pelas instituições ou dispositivos (FOUCAULT, 1988) que exercem controle sobre os indivíduos, como a família, que reproduz a divisão social do trabalho entre os gêneros, e a igreja, que legitima e maximiza o discurso da dominação patriarcal, conforme comenta Bourdieu (2007), o qual incluía também a religião dentro do conceito de campo de dominação:

É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas; é na família que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem. Quanto à Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um clero pronto a condenar todas as faltas femininas à decência, sobretudo em matéria de trajes, e a reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade, ela inculca (ou inculcava) explicitamente uma moral

familiarista, completamente dominada pelos valores patriarcais e

principalmente pelo dogma da inata inferioridade das mulheres. Ela age, além disso, de maneira mais indireta, sobre as estruturas históricas do inconsciente, por meio sobretudo da simbólica dos textos sagrados, da liturgia e até do espaço e do tempo religiosos (marcado pela correspondência entre a estrutura do ano litúrgico e a do ano agrário). Em certas épocas, ela chegou a basear-se em um sistema de oposições éticas que correspondia a um modelo cosmológico para justificar a hierarquia no seio da família — monarquia de direito divino baseada na autoridade do pai — e para impor uma visão do mundo social e do lugar que aí cabe à mulher por meio de uma verdadeira “propaganda iconográfica” (p. 102-103, grifei).

Ao mesmo tempo que oprimia e desconstruía a figura da mulher em questões de igualdade com o homem por meio de um discurso opressor, a igreja construía uma outra imagem: a mulher como pecadora e, muitas vezes, a serviço do demônio, capaz de arruinar a vida dos homens por meio da sedução. Por isso, o casamento era a melhor opção para que a mulher encontrasse a salvação, ao invés de permanecer numa vida de luxúria e mesmo de prostituição, um pecado que, posteriormente, seria atrelado ao da heresia e da bruxaria, passível de condenação à morte.

A história demonstra como uma discursividade religiosa é capaz de construir uma hegemonia machista com o aval de legitimar uma punição severa a todos que não se adequassem ao status quo imposto pela normatização da sexualidade. Tendo em vista a grande expansão do Cristianismo pelo Ocidente, torna-se perceptível a influência da moral cristã sobre o comportamento sexual dos indivíduos, mas, principalmente, no fomento a uma normatização do papel submisso da mulher, na sua exclusão enquanto indivíduo, na sua dominação e subjugação enquanto gênero. Foi na religiosidade monoteísta de um Deus único que que a dominação masculina encontrou terreno fértil para a construção de uma discursividade dominadora e castradora da mulher durante séculos.

imposta, durante séculos, sobre as mulheres. O discurso hegemônico do Eu, o sujeito masculino, é o que possui legitimidade sobre o outro, o objeto feminino, coisificado, objetivado, pois é a partir de uma discursividade masculina que a mulher ganha um papel no mundo:

Ela não é senão o que o homem decide que seja; daí dizer-se o "sexo" para dizer que ela se apresenta diante do macho como um ser sexuado: para ele, a fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente. A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o outro (p. 10)

O sexo, no conceito biológico está ligado ao atributo anatômico do ser, enquanto que, no conceito de gênero, se refere aos papéis masculino e feminino como uma construção social. O homem, enquanto sujeito, é o polo positivo de uma relação binária que ele estabelece com um ser objetivado, pois para a discursividade machista não podem existir dois sujeitos, tanto que à mulher cabe apenas o papel passivo e negativo:

O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de dizermos "os homens" para designar os seres humanos, tendo-se assimilado ao sentido singular do vocábulo vir o sentido geral da palavra homo. A mulher aparece como o negativo, de modo que toda determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade (p. 9).

A mulher, desde a antiguidade, tornou-se a vítima do discurso de superioridade masculina, o qual, em algum momento do passado, ganhou força e se tornou norma a ser seguida sem questionamentos, não sendo possível saber quando, onde e por quê tudo isso começou, nas palavras da própria Beauvoir (1970):

Mas uma questão imediatamente se apresenta: como tudo isso começou? Compreende-se que a dualidade dos sexos, como toda dualidade, tenha sido traduzida por um conflito. Compreende-se que, se um dos dois conseguisse impor sua superioridade, esta deveria estabelecer-se como absoluta. Resta explicar por que o homem venceu desde o início. Parece que as mulheres deveriam ter sido vitoriosas. Ou a luta poderia nunca ter tido solução. Por que este mundo sempre pertenceu aos homens e só hoje as coisas começam a mudar? Será um bem essa mudança? Trará ou não uma partilha igual do mundo entre homens e mulheres? (p. 15).

Ser mulher não é um dado natural, ou uma condição da natureza, nem um resultado biológico e psicológico que define a mulher como tal, conforme afirma a discursividade masculina. Ninguém nasce mulher, torna-se mulher (BEAUVOIR, 1970, p. 9), sendo esta o resultado de uma história de vida construída e tornada uma condição sobre o corpo feminino.