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3 CONSTRUÇÃO DO GÊNERO E DA SEXUALIDADE NO PROCESSO

3.3 Androcentrismo e o apagamento histórico-discursivo do gênero feminino

3.3.1.2 O apagamento do gênero feminino e a construção do sexismo

São as práticas cotidianas quem definem o lugar do sujeito em determinada sociedade, de forma inconsciente, onde cada indivíduo assume determinado papel social (BOURDIEU, 1988), de acordo com os dispositivos vigentes em cada tempo e lugar.

Tais práticas ou habitus são conhecimentos adquiridos (BOURDIEU, 2016) e que colocam o sujeito em determinado marco espacial, onde o habitus se configura tanto como uma forma de pensar, quanto uma maneira de agir, sendo ao mesmo tempo um conjunto de esquemas de classificação do mundo e um conjunto de disposições de ação, que são determinantes e aprendidas ao longo de uma determinada trajetória social, e sobre os quais as pessoas não têm consciência, participando de suas vidas sem que as mesmas tenham controle sobre ele (BOURDIEU, 2016).

Uma vez que os inatismos biológicos parecem ser construídos por um discurso, parece que se torna “normal” ou “natural” aceitar os diferentes papéis sociais entre homens e mulheres, já que, biologicamente, as mulheres são tidas como “inferiores” aos homens quando, na verdade, se trata apenas de uma diferença biológica física e do uso da força, pela mera constituição dos corpos, e não uma inferiorização de ordem intelectual ou de trabalho.

Ao atribuir às mulheres uma inferioridade, os homens estão tentando mascarar os processos que definem papéis sociais, onde se busca esconder os processos de dominação por meio de um inatismo, que a meu ver, é falso, sem esquecer que estes processos já são construídos antes mesmo do nascimento. Ao nascerem, homens e mulheres trazem consigo, pelo discurso da ordem natural, uma gama de atributos que os diferenciam, porém, tornando o menino biologicamente superior à menina.

Trata-se de uma ideologia em que homens devem se comportar de uma maneira e mulheres de outra, mas que a classe dominante vai chamar, simplesmente, de lei da natureza ou processo inato de diferenciação dos sexos biológicos, onde existe uma natureza feminina e uma natureza masculina que impera e sobre a qual não há qualquer possibilidade de se transformar.

É o que Bourdieu (2016) denominou de violência simbólica:

É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os “sistemas, simbólicos” cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados”. (2017, pp. 7-8)

Trata-se de um trabalho de construção simbólica dos gêneros masculino e feminino que é, completamente, fruto de uma determinação social, e não um produto da natureza, como apregoam os defensores da dominação masculina.

O sistema simbólico masculino, ou o sexismo, também chamado de androcentrismo, imperando sobre o feminino é arbitrário, visto que não possui fundamento na natureza, já que o sistema simbólico de uma determinada cultura nada mais é do que uma construção social e

sua manutenção é essencial para que o poder masculino se perpetue em uma determinada sociedade através da interiorização da cultura sobre todos os membros de uma sociedade.

A violência simbólica passa a ser tão natural que o dominado não se dá conta de sua condição, aceitando os papéis sociais que lhe são construídos e impostos por acreditar que tais papéis foram concebidos pela natureza, uma vez que lhe disseram que “sempre foi assim”.

Conforme Althusser (1980), os indivíduos de uma sociedade são interpelados por uma ideologia ou préconstruído, sendo que o mesmo passa a seguir determinados padrões ou “regras de moral e de consciência cívica e profissional”. Um exemplo, segundo o autor, é a escola, a qual oferece o conhecimento técnico, porém submete o indivíduo, desde jovem, às regrais morais ditadas pelo meio social (ALTHUSSER, 1983).

A escola é, ao mesmo tempo, aparelho ideológico do Estado, bem como dispositivo educacional que objetiva interpelar os indivíduos em sujeitos. Também se pode fazer um paralelo com o conceito de habitus, uma vez que os sujeitos são instruídos a seguirem determinado papel social que lhes é ensinado na tenra idade, isto é, uma reprodução de sua submissão às normas da ordem vigente.

Não somente a escola, mas também a Igreja e o Exército parecem ensinar o know-how de como utilizar as técnicas de reprodução, além de assegurarem uma submissão à ideologia dominante. Por isso, Althusser (1983, p. 80) afirma que através da inculcação maciça da ideologia da classe dominante é que ocorre a reprodução das relações de produção de uma determinada formação social, e assim ocorrem as relações entre exploradores e explorados, e entre explorados a exploradores:

Cada grupo dispõe da ideologia que convém ao papel que ele deve preencher na sociedade de classe: papel de explorado (a consciência “profissional, "moral”, “cívica”, “nacional” e apolítica altamente "desenvolvida”), papel de agente da exploração (saber comandar e dirigir-se aos operários: as "relações humanas"), de agentes da repressão (saber comandar, fazer-se obedecer “sem discussão”, ou saber manipular a demagogia da retórica dos dirigentes políticos), ou de profissionais da ideologia (saber tratar as consciências com o respeito, ou seja, o desprezo, a chantagem, a demagogia que convêm, com as ênfases na Moral, na Virtude, na “Transcendência", na Nação, no papel da França no Mundo, etc.) (1983, p. 80) A ideologia é reproduzida por meio de atos simbólicos, os quais interpelam o indivíduo e que passa a reproduzir algo que lhe é anterior e que o interpela. Os sujeitos se reconhecem e legitimam um ao outro a partir destes rituais sociais, destes habitus por meio dos dispositivos sociais, sendo que a ideologia nada mais é do que um produto do saber-poder em determinado tempo e lugar.

A partir das noções de discursividade e do breve paralelo entre habitus, dispositivo e ideologia, é possível analisar a questão da construção da heteronormatividade e do preconceito

aos homossexuais.