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CAPÍTULO IV – A INICIATIVA POPULAR

1. DA INICIATIVA POPULAR COMO DIREITO CONSTITUCIONAL

A concessão aos cidadãos do direito de propor projetos de lei foi uma inovação da constituinte de 1988. O pronunciamento do presidente da Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias, Maurílio Ferreira Lima, responsável por apresentar o anteprojeto sobre esses temas, denota claramente o caráter inovador que esse instituto apresenta em relação à tradição constitucional brasileira:

A tradição constitucional brasileira dá o monopólio da iniciativa de projetos de lei aqueles que são eleitos Vereadores, Deputados Estaduais, Deputados Federais, Senadores, ou ao Poder Executivo. [...] O direito de iniciativa, que existe no Direito Constitucional italiano e em algumas outras Constituições também da Europa, atribui à coletividade o direito de apresentar projetos de lei ou propor a revogação de uma lei (BRASIL, 1987a, p. 13).

Foi a partir dessa manifestação que o direito de iniciativa popular passou então a ser objeto de discussão no processo constituinte.

Essa mesma matéria também foi objeto da Subcomissão do Poder Legislativo, uma vez que a regulamentação da iniciativa dos projetos de lei é de competência dessa esfera do poder. Igualmente, na fala de um dos membros dessa Subcomissão, Jorge Hage, tem-se claro que a possibilidade de iniciativa popular na CF de 1988 é algo pioneiro na história constitucional do país:

Questões como iniciativa popular, tribuna livre, sessões ampliadas com participação da sociedade, na linha de sessões especiais, algo mais estruturado e mais sistemático, parece-me devem constar obrigatoriamente de nossas preocupações, se queremos um Legislativo mais moderno e que saia um pouco daquela mesmice de sempre (BRASIL, 1987b, p. 17).

Essa inovação não foi bem recebida por todos os constituintes que compunham essas Subcomissões. Alguns legisladores se mostraram totalmente desfavoráveis à prescrição do direito à iniciativa popular. A possibilidade de a coletividade atuar como autora foi encarada, por parte de alguns congressistas, como mais um complicador, outro concorrente que agravaria a fragilidade de um Legislativo que é dominado pelo Poder Executivo, sendo este o autor que mais consegue aprovar proposições legislativas. Além disso, alguns entenderam que esse instituto não se coadunava com o sistema representativo consagrado pela CF.

Nesse sentido, estão as seguintes declarações:

Creio ainda que exigirmos um número de assinaturas – 20 mil, 30 mil, 50 mil, – que correspondem aos votos que recebemos aqui para representarmos esse mesmo povo, seria a mesma questão de o cliente passar à frente do advogado e discutir com o Juiz. Isso não seria ilegível que ninguém se nega a apresentar qualquer projeto de lei no Congresso. Portanto acho que a iniciativa – V. Ex.ª me perdoe – não é razoável, na medida em que ela diminui a força do próprio Parlamento não – que é pequena – ao mesmo tempo não surte efeito algum. Se qualquer cidadão chegar hoje em qualquer gabinete trazendo uma sugestão, ela será apresentada (BRASIL, 1987a, p. 13, grifo do autor).

Digo-o pessoalmente e não como Presidente do Comitê de Imprensa do Senado – faço questão de esclarecer este aspecto. V. Exªs. foram eleitos para ser os representantes do povo e assim, não se recusarão a apresentar uma emenda, se for justa. Esse negócio de encher o Congresso de ônibus de direita, de esquerda, de esquerda-volver para pressionar, causar medo no Deputado, para agarrá-lo na saída

para colocar garimpeiro jogando papel em cima de mesa de Deputado, não é comigo. A característica da representação popular é o voto. Uma vez que os Deputados foram votados, que os grupos procurem seus representantes, converse, apresentem suas propostas e os façam endossá-las (BRASIL, 1987b, p. 144).

Outro ponto relacionado à inciativa popular que provoca discussões até os dias de hoje é a quantidade de assinaturas exigidas para a apresentação do projeto; tal tema já era objeto de discussão desde aquele momento. O Presidente da Subcomissão que tratou dos direitos políticos, ao mesmo tempo em que apresenta o instituto da iniciativa popular, faz menção à necessidade de se definir um número mínimo de assinaturas, como condição para que o exercício dessa prerrogativa fosse viável, porque caso não houvesse esse requisito, chegariam diariamente inúmeras propostas, atravancando o trabalho do Poder Legislativo. Maurílio, então, sugere que o número de assinaturas seja igual à metade da quantidade de votos que um partido necessita para existir legalmente (BRASIL, 1987a, p. 13). Parece interessante e lógico esse pensamento, uma vez que equipara esse conjunto de cidadãos aos partidos políticos, considerando aquele também uma forma de representação da sociedade. Ademais, estabelece diferenciação ao determinar que iniciativa popular seja exercida por metade do número de pessoas necessário para se criar a mais tradicional organização social de representação política, dado que o agrupamento no primeiro caso é temporário, e sem ambições políticas, enquanto que os partidos tendem à perenidade e objetivam o exercício dos poderes estatais.

Contudo, também houve muitas críticas à exigência de assinaturas. Essa objeção se baseou na dificuldade de se cumprir determinação formal de mesmo tipo para a apresentação de Emendas Populares no período na Constituinte, uma vez que exigiam trinta mil assinaturas e o apoio de três associações. Zizia Valadares assim se posiciona:

Por exemplo, o Regimento da Assembléia Nacional Constituinte. Isso é brincadeira até de mau gosto – pedir trinta mil assinaturas e de mais três entidades associativas, cada assinatura acompanhada do nome completo do eleitor, endereço, dados identificadores do seu título de eleitor para a apresentação de projetos. Isso não é permitir a participação popular, muito pelo contrário, isso é cercear o Congresso Nacional (BRASIL, 1987a, p. 16).

Opositores à iniciativa popular apontavam esse requisito como um dos motivos pelos quais não deveria haver a previsão desse direito, uma vez que seria praticamente inexequível.

Ao final, quando as Comissões, das quais eram parte as Subcomissões aqui citadas, apresentaram seus Anteprojetos, optaram por abarcar a iniciativa popular, e decidiram por estabelecer o requisito das assinaturas. Porém, foram além, expandindo esse instituto. Em ambos os documentos apresentados, além da iniciativa popular de lei também incluíram a

possibilidade de os cidadãos proporem emenda à Constituição. Foi no Anteprojeto da Comissão da Organização dos Poderes, responsável por regular o Poder Legislativo, que expressamente se determinou que a proposição deveria ser assinada por 0,3% do eleitorado nacional, sendo esse número distribuído por, no mínimo, cinco Estados, e com não menos do que 0,1% dos eleitores de cada um destes.2930

Cabe ressaltar que no anteprojeto apresentado pela Subcomissão de Direitos Políticos, antes da elaboração do anteprojeto da sua respectiva Comissão, o número de assinaturas exigidas era bem inferior, quinze mil para lei e trinta mil para emenda à Constituição, ademais da prescrição do caráter prioritário para a tramitação de propostas de iniciativa popular (BRASIL, 1987a). Ainda nesse sentido, no documento apresentado pela Subcomissão do Poder Legislativo havia também a previsão de entidades da sociedade civil poderem iniciar o processo legislativo (BRASIL, 1987b). Porém, ambas as propostas não foram aprovadas, portanto, inexistindo nos anteprojetos das Comissões.

Considerando agora a fase final do processo constituinte, quando já se tem concluído um projeto de Constituição, algumas modificações são realizadas em relação ao que haviam determinado os textos dos Anteprojetos apresentados pelas Comissões aqui mencionadas. Estes foram objeto de alterações via emendas dos próprios constituintes e também por consequência de emendas populares. Cabe expor aqui que existiram três projetos de Constituição, sendo o terceiro aquele que desencadeou a CF em vigor.

A primeira versão reproduzia as prescrições estabelecidas pelas Comissões, ou seja, a iniciativa popular de lei e de emenda, além dos supracitados requisitos estabelecidos pela Comissão da Organização dos Poderes, e acrescentou a possibilidade da população requerer a realização de referendo, o referendo popular.31 Em decorrência das emendas sugeridas e aceitas, a segunda versão do projeto da Constituição não mais prescrevia o direito de iniciativa de emendas constitucionais, e, ai além, elevando a porcentagem de assinaturas de 0,3% para 1% do eleitorado nacional. Após essas modificações não houve mais novidades, sendo a iniciativa popular disciplinada na terceira versão do projeto da Constituição como se encontra prescrita até hoje, não possibilitando à coletividade propor emenda à Constituição e

29 Anteprojeto Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher. Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-69.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2014.

30

Anteprojeto Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-104.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2014.

31

Projeto de Constituição (A). Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-253.pdf>. Acesso em: 11/2014.

devendo o projeto de lei ser assinado por 1% do eleitorado brasileiro, dispersos em, no mínimo, cinco Estados, com não menos de 0,1% do eleitorado de cada um.32

Importante frisar que foram as Emendas Populares de números 22 e 5633 - e uma única oferecida por constituinte34 - que colocaram no debate sobre a iniciativa popular de lei esse requisito de 1% do eleitorado. Lendo os documentos disponibilizados pela Câmara dos Deputados sobre o processo constituinte, somente se encontra nessas Emendas a proposta de dever ser esse o número de assinaturas. Até então, os constituintes não haviam proposto quantidade acima de 0,3% do eleitorado brasileiro. É inconcebível pensar que a intenção dos proponentes dessas Emendas Populares tenha sido dificultar o exercício do direito à iniciativa de projeto de lei. Entretanto, mesmo que acidentalmente, acabou trazendo para o debate uma sugestão mais exigente do que as apresentadas até então pelos próprios constituintes.