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CAPÍTULO III – O MANDATO POLÍTICO: REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO

2. REPRESENTAÇÃO COMO RELAÇÃO

2.1 DOMÍNIOS NÃO ELEITORAIS DA POLÍTICA

A afirmação acerca da incompletude da teoria de Urbinati está centrada no fato de ter surgido nas democracias contemporâneas outras formas de representação, para além daquela tradicional resultante do processo eleitoral, no qual os partidos políticos são as instituições monopolizadoras dessa construção da representação da sociedade. O associativismo possibilitado pela garantia das liberdades nos governos democráticos originou agrupamentos que compartilham das mesmas condições que sustentam a importância dos partidos, qual seja, a de unificar a sociedade que é atomizada, viabilizando assim a representação do todo. As várias formas de organizações civis, portanto, permitem então questionar a manutenção da representação como sendo possível somente por meio das tradicionais instituições representativas, que, por sua vez, são estruturadas inteiramente com base nas organizações partidárias.

Preliminarmente, vale ressaltar que este item se faz bastante pertinente a esta pesquisa dado que, como afirmou José Afonso da Silva (2008, p. 141), mesmo nos mecanismos viabilizadores da democracia direta, a participação pode se dar via representação, o que ocorre nas Comissões aqui estudadas.

De antemão, é preciso aclarar que este trabalho optou pela máxima abrangência quando se refere à abordagem das formas de representação que não sejam aquelas originadas

a partir do processo eleitoral, elegendo a expressão “maneiras informais de representação”, de

autoria de Castiglione (2006, p. 14), como forma de exprimir esse intento de amplitude. No interior dessa categoria, o autor inclui os grupos de interesse; órgãos de classe; sindicatos; organizações da sociedade civil; mídia; movimentos sociais; grupos de advocacy; citizen panels, que no contexto brasileiro podem ser entendido como audiências públicas; as organizações não-governamentais; e ações de grupos que militam em causas com as quais não convivem diretamente.

Esta pesquisa tem como objeto as Comissões de Legislação Participativa, as quais possibilitam que vários formatos de agrupamentos da sociedade civil se manifestem, podendo ser estes: associações, órgãos de classe, sindicatos, entidades civis organizadas, entidades científicas e culturais, e até mesmo partidos; estes, somente no caso da CDH. O outro mecanismo legitima os indivíduos a iniciarem e participarem da elaboração das leis. Diante desse cenário, não seria pertinente tratar aqui somente de um modelo de organização civil, ou eleger abordar essas manifestações utilizando conceitos que, ao definir, acabam restringindo seu alcance.

O aumento da importância dessas formas de representação não eleitorais vivenciado nas últimas décadas pode ser entendido como consequência de transformações políticas, sociais, e econômicas vivenciadas. A democracia, ao ter como princípio a garantia das liberdades e da igualdade, permite que vários indivíduos - até então excluídos da categoria de cidadãos - surjam para o Estado, tornando-se sujeito de direitos; isso deflagra uma profunda pluralidade social (LAVALLE, 2006, p. 83-94). Simultaneamente, as formas de representação eleitoral não acompanham essa diversificação, não a refletem na constituição das instituições representativas eleitorais. Assim, ainda que não seja possível se fazerem presentes por meio dos mecanismos eleitorais de representação, esses indivíduos, gozando da garantia da liberdade de expressão e associação, autonomamente, vão se organizando, com vistas a serem representados na construção do Estado.

As modificações de âmbito social e econômico influentes na transformação da representação podem ser entendidas em conjunto. Diversificações no mercado de trabalho não mais fez possível a manutenção de uma segmentação da população centrada em sua posição dentro do mundo do trabalho, como acontecia anteriormente. A representação era baseada na divisão do trabalho (LAVALLE, 2006, p. 69). Da mesma forma que no parágrafo anterior, essa maior fluidez do arranjo social fomenta o afloramento da busca por outras formas de se fazer representado.

Para além desses argumentos, o surgimento e fortalecimento dessas outras formas de representação são entendidos como importantes meios de se superar o individualismo, trazendo com isso uma educação cívica da população. Essa lógica de se organizar, de se associar, indubitavelmente, desencadeia ambientes nos quais os interesses particulares devem ser relativizados diante da finalidade primeira dessas organizações, que é a busca por uma unidade, o interesse único do grupo. Impreterivelmente, exercita no indivíduo uma forma de pensar que, no mínimo, exige dele harmonizar seus próprios interesses com os gerais. Essas organizações, na luta pelo que representa, acabam por mobilizar a sociedade, o que, por sua vez, acaba informando a sociedade sobre o tema da pauta pela qual se milita (NOGUEIRA, 2014, p. 06-08; MAIA, 2012, p. 101-2).

Contudo, cabe destacar a manutenção da importância do Estado nesse cenário onde os formatos de representação informais ganham cada vez mais relevância, não sendo adequado concebê-los como à parte deste. Como bem sintetiza Maia (2012, p. 105-106), essas formas de representação desconectadas da eleição, costumeiramente, não militam por princípios abstratos ou amplos ideais políticos, já que se baseiam mais em experiências pessoais, locais e

imediatas, o que faz imprescindível a figura do Estado como propulsor desses valores mais gerais que são elementares à organização social.

2.1.2 LEGITIMIDADE DOS REPRESENTANTES NÃO-ELEITORAIS

A emergência das novas formas de representação não decorrentes do processo eleitoral, juntamente com uma abertura crescente do Estado para esses novos atores atuarem na construção das decisões políticas, trazem um questionamento em relação à legitimidade dessa representação e da atuação deles. Essa indagação é consequência de um raciocínio regido pela forma, ainda dominante, dos Estados construírem as instituições representativas a partir das eleições. Como já explicitado no início deste capítulo, o voto assegura ao eleitor o direito de escolher, autorizando o representante a atuar, e também permite a sanção nos casos de insatisfação com seu desempenho. Segundo essa lógica, esses novos formatos de representação seriam legítimos, dado não serem resultado de uma escolha via eleições? Como se dá a autorização, o controle e sanção desses outros representantes? (AVRITZER, 2007, p. 456; BRELÁZ, 2013, p. 80).

Os teóricos da atualidade têm buscado responder à essa indagação. Serão apresentados aqui, também, argumentos que denotam a existência de legitimidade nessas formas de representação não formais.

Avritzer (2007, p. 456), ao classificar os representantes - formais e informais - em agente, advogado e partícipe, argumenta que em todos há autorização, sendo esta, porém, manifestada de maneira distinta. Os primeiros são os representantes eleitos, e, assim, o voto é que concretiza a essa autorização. Os advogados são aqueles que defendem causas coletivas. Sendo assim, a afinidade ou identificação entre os indivíduos que compartilham a mesma realidade vivenciada é o modo pelo qual se configura a autorização para que determinadas pessoas desse grupo atue em nome dos demais. O último caso é o da representação em conselhos ou em outros institutos incumbidos de elaborarem políticas públicas por organizações civis que são especializadas em tal tema, e que, por isso, são habilitadas e autorizadas a representar. Essa construção permite verificar que outras podem ser as formas de se concretizar a autorização, para além do tradicional caminho eleitoral (SAWARD, 2005). A construção teórica realizada por Castiglione (2006, p. 16) permite verificar essa diversidade de formas de autorização diante dessas também variadas formas de se representar.

Ele classifica em três os tipos representações não formais, apresentando em cada um deles o modo pelo qual se dá o processo de autorização. São estes:

1 - Agrupamentos voluntários: neste caso, a autorização se consubstancia no momento em que o indivíduo escolhe associar-se.

2 - Organizações involuntárias: aqui pode se dizer que a autorização é tácita, efetivada pela existência de características comuns entre os que lideram essas organizações e os indivíduos em nome dos quais elas atuam. Além dessa, outra forma de se concretizar a autorização neste caso é através do reconhecimento público que o representante informal adquire, medindo-se este por aparições públicas, venda de obras produzidas por esses líderes, etc.

3 - Organizações que recebem recursos financeiros: especificamente em relação a esta categoria, que engloba as fundações, as ONG’s e as mídias, a autorização advém de objetivos convergentes entre representantes e representados.

Indo além, e abordando a questão do controle e da sanção que as eleições podem garantir, o mesmo autor, através das mesmas categorias, apresenta como a representação não eleitoral também pode ser accountable:

1 Organizações voluntárias: a obrigatoriedade de resposta por parte do representante e possíveis sanções a ele podem vir por meio de uma justificação pública; pelo controle exercido por outros grupos e pela mídia; pelo controle e sanção provenientes dos próprios associados; e o desligamento de quem não mais se sentir representado, uma vez que a associação é voluntária.

2 Organizações involuntárias: aqui as possibilidades são as mesmas do caso anterior, excluindo-se o direito de se retirar do grupo, já que essa associação não foi voluntária.

3 Organização com recursos financeiros: accountability nesse caso será possível via justificação pública da organização; transparência; indicadores de seu desempenho; e mecanismos de controle dos elementos formadores dessa organização, sendo estes contratos e as forças do mercado.

Dessa forma, tem-se que, mesmo quando se mantém adstrito à concepção eleitoral da representação para se entender essas novas formas de se representar, a representação informal se mostra adequadas às exigências dessa compreensão mais tradicional da representação, assegurando a autorização e o controle por parte dos representados. Entretanto, mesmo havendo formas que permitam alcançar os ideias da autorização e do controle em relação aos representantes não formais, assim como nos casos de representação eleitoral, esses

mecanismos podem ser de difícil execução, especialmente nos casos em que a autorização não se dá de forma expressa, em particular, nos casos das organizações involuntárias. A solução para essa problemática parecer ser a efetiva garantia - aos que se considerem insatisfeitos com os seus representantes - de se manifestarem.

2.1.3 O INDIVÍDUO COMO REPRESENTANTE

A escolha pela utilização da expressão “formas de representação não eleitorais” do

autor Castiglione (2006), no início deste item 2, foi justificada com base em seu nível de abrangência. Entretanto, ao analisar os argumentos a partir dos quais esse autor sustenta possuírem os representantes não-formais também os requisitos da autorização e de serem accountables, ficou claro que ele, assim como outros teóricos, não considerou o indivíduo como um desses representantes, tratando somente das organizações.

Contudo, apesar de haver muito pouca produção que se aprofunde nessa questão, apresentar-se-ão aqui algumas observações que questionam esse entendimento centrado nas organizações civis como formas de representação, vislumbrando a possibilidade de pessoas físicas também poderem ser representantes não eleitorais. Esse raciocínio articular-se-á com base nas argumentações apresentadas no tópico anterior, que explicitam a importância da representação não eleitoral no contexto democrático, e sustentam como esses representantes podem gozar de autorização e serem accountables. O aprofundamento dessa questão faz-se pertinente devido ao fato de as Comissões de Legislação Participativa, objeto desta pesquisa, não permitirem que um indivíduo, individualmente, proponha uma sugestão, o que, por sua vez, a Iniciativa Popular possibilita.

Inicialmente, vale diferenciar a representação individual da autorrepresentação. Na primeira, a pessoa física representa, ou seja, o que ela diz corresponde a um ponto compartilhado por outros, em nome de quem também atua. No segundo caso, o indivíduo fala por si, sendo até mesmo contraditório se falar em uma representação de si mesmo, porque, nesse caso, como a pessoa se faz presente, não necessita ser representada.

Quando se ressalta a importância dessas formas de representação que não são eleitorais, exalta-se a capacidade dessas serem instrumentos capazes de romper com a lógica da maioria que a representação eleitoral incorpora. Pensando-se na representação exercida por uma única pessoa, isso também pode ser concretizado. O que garante a ampliação da pluralidade nas discussões políticas é a introdução, por esses representantes não eleitorais, de

outras perspectivas, opiniões, e interesses. Dessa forma, é possível afirmar que os incrementos provocados pela representação não formal estão diretamente relacionados ao conteúdo que esse novos atores atuantes como representantes trazem para o debate político. Quem é o portador desse conteúdo, ou seja, o representante é o meio para a transmissão. Portanto, não há perdas em se possibilitar que um indivíduo seja o meio para a apresentação desses outros interesses, opiniões e perspectivas.

O papel cívico e o de fomento a um pensamento menos individualista que as organizações civis viabilizam também podem ser alcançados via representação informal individual. No que se refere ao primeiro aspecto, a diferença residiria, novamente, somente no fato de ser o agente que propulsiona essas características cívicas não mais uma organização, mas um indivíduo, que militando em favor do que representa irá disseminar informações sobre o que é representado, podendo vir até mesmo a incitar discussões sobre a matéria em questão. Já em relação a um incentivo ao cooperativismo, é mais difícil visualizar a representação desempenhada por um único indivíduo como propiciadora dessa característica. É inegável que a constituição de agrupamentos por si só já propulsione hábitos de combate ao individualismo. Entretanto, um representante também pode desenvolver essa característica de outra forma. Por meio da colocação em pauta de uma questão, estimulando que isso seja pensado e discutido, despertará na população a necessidade de uma lógica de raciocínio que supere o autocentrismo. Quando a matéria em questão não lhe diz respeito diretamente, ao menos visualizará a diversidade de interesses, o que pode levar à consideração dessa variedade nas próximas reflexões.

Partindo agora para a discussão sobre como um indivíduo pode alcançar a autorização, e garantir o controle e a sanção àqueles que representa, será abordada, primeiramente, a questão da autorização. Como na construção teórica de Castglione (2006), essa pode advir tanto de uma adesão explícita de outras pessoas, como de uma expressão tácita, conquistada a partir de características afins ou de identidade com o que se representa. A Inciativa Popular de Lei é um exemplo desse primeiro caso. A Constituição Federal de 1988, juntamente com as regras do Regimento Interno da Câmara, torna possível que um indivíduo inicie um movimento em torno de uma proposição legislativa. As mais de um milhão de assinaturas que devem ser recolhidas são as autorizações de cada um que ele representará quando levar o projeto de lei ao Congresso, e também no momento que participar das discussões sobre este; direito que é concedido ao primeiro signatário do PL, como ver-se-á no capítulo seguinte.

No tocante ao segundo caso, a autorização tácita, a representação por ato involuntário da parte, mais uma vez, está estritamente ligada à afinidade e identificação com o conteúdo

que será representado, pouco importando quem é o representante desse. Maria da Penha, que nomeia a lei que criminaliza a violência contra a mulher, pode ser considerada hoje uma representante das causas relacionadas ao gênero feminino. Portanto, a representação individual involuntária também pode gozar de autorização.

Tratando agora do fato de poderem ser accountables esses representantes individuais, também é possível que essa garantia seja dada aos representados. As formas de exercício de controle e sanção apresentadas por Castiglione (2006) podem ser adaptadas às formas de representação informal por pessoa física. Independentemente de ser consequência de autorização voluntária ou não, podem ser consideradas formas de accountability os controles exercidos pela mídia e por grupos em relação à atuação do representante; e a justificação pública, que informa os representados das ações do representante. Nos casos nos quais a representação está pautada por autorização voluntária, há ainda o direito do representado poder retirar seu apoio.

A título de conclusão desse trecho, pode-se afirmar que a importância das representações não formais está mais relacionada ao conteúdo, aos discursos que são representados do que quem é o meio de transmissão destes. Claro deve estar que não há aqui qualquer intenção de subjugar a relevância das organizações sociais no cenário político. A multiplicidade do que é representado depende também de uma variedade de atores sociais, para assim haver outras visões. O que se pretende defender é que a significância dessas outras formas de representação está primordialmente calcada na diversidade dos discursos que essa representação não eleitoral permite surgir, sendo menos importante se estes são encampados por um grupo ou um indivíduo. O intuito aqui é reforçar o valor da multiplicação das formas de se representar para, assim, alcançar a ampliação da diversificação do que é representado, o que desencadeia uma maior democratização das decisões tomadas pelos exercentes do poder.

Finalmente, vale constar que em Estados populosos, como é o caso do Brasil, a representação não eleitoral concretizada via representante individual, pessoa física, deve ser atrelada à satisfação de requisitos a fim de evitar o surgimento de uma quantidade de proposições que torne inviável sua verificação pelas instituições representativas estatais. Essa constatação se materializa, por exemplo, na necessidade da coleta de determinada quantidade de assinaturas por aqueles que pretendem apresentar um PL de Iniciativa Popular.