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Dar bronca para dar força: viver entre os parentes é o que nos fortalece

CAPÍTULO 2 AQUELES QUE VIVEM JUNTOS: RELAÇÕES ENTRE PARENTES

2.5. Relações entre parentes enquanto lócus de conflito

2.5.2 Dar bronca para dar força: viver entre os parentes é o que nos fortalece

As famílias de Ywy Pyhaú sempre faziam questão de enfatizar que apesar das dificuldades não saberiam viver de outra forma que não fosse essa, junto de seus parentes, sobretudo daqueles que, como vimos, classificam como próximos; e jamais se acostumariam a viver na cidade, longe dos seus. No ano de 2014, um dos filhos de D. Juraci, junto de sua esposa, que na época estava grávida, foi residir na cidade de Ourinhos (SP), e este costumava ligar com frequência, pois vivia com saudades. A saudade ou, conforme explicam, o desejo de estar próximo a determinadas pessoas, é apontado constantemente como um dos principais motivos que leva alguém a adoecer. Quando sentem saudades de outras pessoas, estejam elas em outras aldeias ou então falecidas, acabam por se afastar daqueles que estão por perto, ficam sozinhas com seu pensamento, tornam-se tristes, e por isso adoecem. D. Juraci, por exemplo, durante o período que seu filho ficou fora da aldeia, emagreceu, vivia abatida pensando se ele e sua nora estavam se alimentando bem, se a casa em que moravam era segura, se seu filho não estaria trabalhando em excesso, e se eles não gostariam de voltar. E assim, ela estava distante com seu pensamento. Sempre que se falavam pelo telefone, fazia questão de deixar claro que estava pensando e esperando por eles, era só desejarem retornar a aldeia, que ela os acolheria em sua casa, até que pudessem construir a sua própria, e os

ajudaria na compra de alimentos e fraudas para o bebê que estava para nascer. Foi o que aconteceu, quando a saudade apertou, ele voltou! Não é fácil viver longe das pessoas!

Quando houve o processo de reintegração de posse do território no bairro Parte Norte, e a mudança para as proximidades da aldeia Karugwá, como apontei no capítulo um, nem todos vieram juntos. Construíram inicialmente a casa de D. Juraci e de seu filho Reginaldo, depois transferiram a escola e por último vieram Adilson e Marcílio com suas famílias. Inclusive, a transferência da escola e o modo como ela ocorreu foi responsável por desavenças entre D. Juraci e seus filhos. Alguns deles, apesar da mudança de local, ainda se deslocavam até o bairro Parte Norte com o intuito de dar aulas às crianças que ainda não haviam se mudado. Nesse contexto, era comum ouvir as falas de D. Juraci, em tom de bronca, para que seus filhos se empenhassem na transferência da escola, assim, todos poderiam ficar juntos e ela deixaria de se preocupar a cada ida de um de seus filhos até o local de onde foram retirados com reintegração de posse. Porém, nem sempre seu argumento seguia esse rumo, em alguns momentos, queixava-se argumentando sobre as falhas no aprendizado das crianças, pois com a dificuldade de locomoção de alguns dos professores que já haviam se instalado no Bairro dos Vitor, as que ainda moravam na Parte Norte, estavam deixando de apreender. Nas falas, muitas vezes duras, de D. Juraci, ela fazia questão de lembrá-los que as matérias da escola ou são praticadas continuamente, ou serão logo esquecidas pelas crianças; enfatizando ainda, que o que se aprende na escola é diferente daquilo que as crianças podem apreender em suas casas, junto de seus parentes. E por isso, o aprendizado nesse contexto estava duplamente prejudicado, as crianças tinham aulas irregulares na escola e viviam próximas apenas de alguns de seus parentes, ficando longe, principalmente, de sua avó.

Enquanto a mudança de local da aldeia não se concretizava, D. Juraci andava nervosa e preocupada por não estarem todos em uma única área, ela andava doente. Foi nesse momento que Adilson também adoeceu. Vivendo ainda na Parte Norte sentia-se sozinho a noite, pois por mais que tivesse um de seus irmãos, sua esposa e filhos por perto, o silêncio era enorme. Contam que certa vez ele sofreu um desmaio, que o médico lhe explicou tratar-se de pressão baixa, entretanto, relataram que a pressão só baixou, pois estava triste e seu corpo pesava com a tristeza, a qual era perceptível por qualquer um que dele se aproximava. Enquanto passava o dia no Bairro dos Vitor, cuidando da construção de sua nova casa e no convívio com os parentes na aldeia Karugwá, divertia-se e alimentava-se bem, mas chegando a noite, quando não se rendia aos convites dos parentes para pernoitar em suas casas e tinha que ir até sua casa na Parte Norte, sua feição se transformava. Ressentia-se por ter de deixar a casa de alvenaria que, com esforço, havia construído e estava em vias de terminar, mas

também se ressentia por permanecer sozinho naquele lugar. Quando voltei à aldeia, depois de um período distante, e todos já estavam vivendo novamente juntos, era perceptível sua transformação e o ânimo cheio de ideias para fazer melhorias na casa nova que acabara de construir. 113

Mesmo neste contexto, em que se encontravam separados, chegada a hora do almoço todos se dirigiam para a casa de D. Juraci, a qual usualmente fica cheia. Vinham os filhos que estavam ainda no bairro Parte Norte e aqueles que se hospedavam ou mesmo moram na aldeia Karugwá. Como ela mesma conta: Aqui é sempre assim, não interessa onde eu moro, tá sempre cheio de gente! Marcílio costuma dizer que na casa dela a comida se multiplica e isso só é possível por conta de seu grande coração. Para quem convive ou conviveu com D. Juraci durante esses períodos de mudanças e separações, pode achar que ela é uma pessoa “ranzinza” e de humor difícil, mas na verdade foi ela, suas broncas, seus esforços para mobilizar seus filhos e noras para a limpeza do mato, construção das casas e da escola, que fez com que todos ficassem juntos mais uma vez, e não se demorassem, evitando uma tristeza ainda maior. Quando as broncas ocorrem, é comum que haja chateações e até o afastamento entre aquele que proferiu a bronca e a pessoa que foi sua receptora, entretanto, tal distanciamento não perdura por muito tempo. Como explicou Marcílio, referindo-se à bronca que levaram de sua mãe pela demora na construção da escola: na hora a pessoa tá com a cabeça quente, não entende que é um conselho, depois pensa e percebe que era para ajudar, ai fica tudo bem e as coisas caminham. A mãe dá bronca mesmo!

São notáveis os esforços de todos a fim de permanecerem juntos, para que não fiquem tristes, que estejam sempre alegres, evitando, como dizem, que a alma queira ir embora, que adoeçam, pois quando o espírito fica triste, é pelo corpo que se faz notar. Da mesma maneira que Adilson, quando soube do processo de reintegração, D. Juraci desmaiou, sentiu-se fraca, seu corpo estava pesado, era necessário se fortalecer, ouvir Nhanderu, obter sabedoria. Pois, conforme explicam, só com muita sabedoria é possível passar pelo momento difícil que vivenciam. E assim, compreende-se que a força de cada um depende dos ensinamentos que costumam receber das divindades e ainda, da possibilidade de passá-los adiante, o que só é possível através do convívio entre os parentes, pois, na sua ausência, como vimos, o espírito fica fraco e o corpo adoece. O que me faz supor que aquilo que ensinam as divindades não tem função alguma se não seguir adiante, não havendo a possibilidade de fazer uso dessa sabedoria para si próprio. Por mais que os caminhos por onde os saberes circulam variem a

113 Sobre a tristeza que relatam, recordo aqui de suas formulações a respeito da leveza das pessoas, responsável

cada reconfiguração de aldeia e, consequentemente, relações - entendendo tal qual propõe Testa (2014) que as próprias pessoas são caminhos - ele tem que circular, seu sentido está no movimento e não em sua retenção. E a cada movimento, uma transformação, como aponta essa autora discutindo acerca do conhecimento Guarani, “[...] é da própria natureza desses saberes sofrerem constante transformação, caso contrário, não teriam valor e sentido, considerando que as coisas deste mundo terrestre (yvy rupa) também se alteram continuamente” (TESTA 2014: 128) .

Não basta apenas que tenham sabedoria é preciso passá-la adiante, aliás, “ter sabedoria” está diretamente associado à capacidade das pessoas em passar adiante aquilo que sabem, mesmo que isso se dê através de broncas, as quais, me parece, são uma forma de manter os caminhos abertos, uma maneira de evitar que com a distância entre as pessoas venham a se fechar, impossibilitando a circulação dos saberes. Pois, segundo explicam, da mesma forma que há a possibilidade de abertura de novos caminhos de circulação de saberes, existe também a possibilidade de sua obstrução. As broncas, nos contextos vivenciados pelas famílias tupi guarani, como os descritos acima, assumem um papel importante, pois é através delas que conseguem mobilizar os parentes, fazendo com que se juntem com o intuito de compartilharem o cotidiano. As broncas também dizem respeito ao saber ouvir o que dizem os parentes, arte muito valorizada entre essas famílias, que ensinam que se deve ouvir uma bronca em silêncio, sobretudo quando parte dos mais velhos, os quais têm a função através, principalmente, de seus aconselhamentos, de unir aqueles que estão por algum motivo distanciando-se. Lembrando novamente que as pessoas, elas próprias, são caminhos, e conviver e cuidar são indispensáveis para que os saberes possam circular. Entretanto, como vimos anteriormente, nem sempre as tentativas dos mais velhos são eficazes, porém, não deixam de desempenhar o papel que lhes é destinado pela experiência e sabedoria que têm. Não se pode esquecer que apesar da circulação de saberes, o passar adiante, ser algo fundamental entre as famílias tupi guarani é preciso conhecer o momento certo de dar continuidade a esse circuito, havendo contextos onde é preciso reter determinados saberes a fim de não fazê-los circular em vão, onde não haja quem esteja disposto a ouvir. E assim, suponho que passar adiante, depende ainda da disponibilidade das pessoas em ouvir, com a finalidade de não deixar que os bons saberes se percam. Dessa forma, pode-se compreender que as relações entre parentes são as responsáveis por abrir os caminhos por onde circulam os saberes que fortalecem a essas famílias. Ficar junto aos parentes, partilhar e se alegrar com eles, são maneiras de construir e fortalecer seus corpos-espíritos, e só aqueles que se fortalecem e concentram poderão ouvir o que Nhanderu tem para lhes contar.

Sobre as referências constantes à noção de fortalecimento que incide sobre os componentes corpóreos e espirituais que constituem a pessoa, abordo de maneira mais detida no próximo capítulo. Por ora tratarei de outro tipo de palavra também muito valorizada entre algumas famílias tupi guarani, que é a palavra de Deus, temática que permite, igualmente, discutir a respeito das relações que os Tupi Guarani estabelecem com seus irmãos de fé, frequentadores da Congregação Cristã no Brasil (CCB).