• Nenhum resultado encontrado

Partilhando o cotidiano: criando proximidades e distanciamentos

CAPÍTULO 2 AQUELES QUE VIVEM JUNTOS: RELAÇÕES ENTRE PARENTES

2.4. Aqueles que vivem juntos: cotidiano e relações entre parentes tupi guarani

2.4.1 Partilhando o cotidiano: criando proximidades e distanciamentos

São corriqueiras as rodas de artesanato em que os moradores da aldeia Ywy Pyhaú se reúnem para trançar fibra de bananeira, fazer pulseiras, arcos de cabelo e brincos. É também durante as rodas em que o confeccionam, onde as pessoas, sobretudo as mulheres mais se reúnem para conversar sobre as questões da aldeia, bem como, a respeito de algumas questões mais pessoais, àquelas passiveis de serem compartilhadas nesses contextos. É nesses momentos que costumam atualizar umas as outras do que viram na televisão, do que souberam na cidade ou na casa de algum parente que visitaram recentemente. Também não se pode deixar de notar a importância atribuída ao artesanato como forma de marcar diferenças entre aqueles que o fazem e também entre seus modos de saber-fazer, e a maneira como devem circular entre essas pessoas. E por esses motivos, peço licença, aqui, para discutir a respeito das peças de artesanato, entre outros objetos e seus usos, bem como das pinturas que fazem, seja nos tecidos que utilizam, seja em seus próprios corpos.

O artesanato já foi considerado sua maior fonte de renda, e apesar das famílias tupi guarani o fazerem sempre que têm vontade, atualmente quase todos exercem cargos remunerados como: professor, agente de saúde e serviços gerais pela SESAI, sendo estes, a principal fonte de renda dos moradores da aldeia. Dizem que hoje costumam trabalhar com artesanato mais para ficarem juntos, conversando, pois só conseguem vendê-lo em grande quantidade durante o mês de abril, em que se comemora o dia do índio, e nas feiras do evento Revelando São Paulo. Deve-se ainda considerar que os materiais para a confecção do artesanato, a depender da época do ano, também são escassos. Em épocas de poucas chuvas,

com a baixa dos rios, as plantas ficam mais secas, o que dificulta a colheita de sementes utilizadas em sua confecção. Além disso, há uma grande quantidade de pastos no entorno da aldeia, assim como plantações de pinus e eucalipto, o que também contribui com a pouca variedade e quantidade de sementes. Como apontado no primeiro Relatório de Identificação e Delimitação desse território (RODRIGUES 2010), os pinus e eucaliptos são responsáveis por absorver uma grande quantia de água dos córregos da região, além de substituírem a mata nativa. Já os pastos são os grandes causadores dos processos de erosão e assoreamento dos pequenos cursos d´água. Apesar das dificuldades em conseguir materiais para a confecção do artesanato, e se dedicarem mais à sua fabricação em épocas em que será possível vendê-los em maior quantidade, sempre que mostram suas peças, falam com orgulho de sua sabedoria no artesanato. Em um dos relatos de D. Juraci, ela explica que fazer artesanato é uma forma de viver de novo a cultura dos antigos, não só de ganhar dinheiro e, por isso, as atividades relacionadas à sua fabricação são muito valorizadas entre essas famílias.

As peças confeccionadas servem tanto para a venda como para uso cotidiano e ritual, as quais não são vendidas ou dadas a ninguém, como ocorre, por exemplo, com os mbaraká (chocalhos) utilizados na reza, e que pertencem e são de uso exclusivo de seus donos. Já aquelas que serão comercializadas são pensadas a partir do gosto de seus principais compradores, os não indígenas, os quais costumam se interessar pelos objetos “mais exóticos” e mais coloridos.

Além das sementes e fibra de bananeira, costumam usar penas e ossos de animais, bem como materiais comprados em lojas de artesanato, sobretudo as localizadas na Rua 25 de março na cidade de São Paulo, ainda que suas viagens à capital não sejam constantes. Alguns materiais mais fáceis de serem encontrados como: linhas, arames, anilina e cola, são comprados em Itaporanga. É comum ainda, que troquem entre si os materiais para a confecção de artesanato, trocas essas que não ocorrem de maneira aleatória.

Depois de matar um pato ou uma galinha sua proprietária tem por hábito separar as penas que são de seu interesse, normalmente as maiores, que se localizam nas assas e na parte traseira da ave, as quais ela não costuma ceder a ninguém. Posteriormente, separa aquelas que são mais parecidas, de tamanhos iguais, boas para fazer brincos, e leva em uma sacola na casa das mulheres com quem tem uma relação mais próxima, deixando-as escolher aquelas que desejam, trocando, em alguns momentos, por penas já coloridas ou algum outro material que esteja necessitando. Já as penas consideradas mais feias, aquelas com aspecto de penugem de aves ainda jovens, são colocadas à disposição no pátio, durante os momentos em que estão reunidas para confeccionarem o artesanato; são estas penas, inclusive, que as crianças pegam

para fazer suas peças. Não pude deixar de notar que as conversas seguem por esse mesmo caminho, ao interior das casas são reservadas as conversas consideradas mais sérias e de cunho pessoal, as quais só são divididas com pessoas muito próximas, gente de casa. Já aquelas mais informais, sobre novelas, festas, ou piadas, são divididas no pátio, entre todos que ali se encontram. Ou seja, as mesmas pessoas com quem se divide os melhores materiais, são aquelas com quem se divide a intimidade, e aqui se referem a seus problemas conjugais, anseios e planos individuais que ainda não desejam compartilhar com todos. Entretanto, vale ressaltar que dizer que determinadas pessoas são próximas ou não, depende do contexto e do momento que vivenciam, pois, como veremos mais adiante, pessoas hoje consideradas próximas, podem tornar-se distantes a partir de algum desentendimento, e vice-versa83. O que

demonstra que as relações entre aqueles que vivem juntos estão em constante movimento. O que se produz em matéria de artesanato é utilizado como forma de marcar diferenças entre as famílias tupi guarani e outros povos indígenas com os quais se relacionam, como os Mbya, Kaingang ou Pataxó. Os objetos podem até serem os mesmos, porém a maneira de confeccioná-los e os materiais utilizados são diversos. Por exemplo, costumam se diferenciar dos Mbya pelo não uso de miçangas, afirmando que miçanga é coisa de Mbya, Tupi gosta mais de semente cru; do artesanato Pataxó, os quais confeccionam colheres de pau e apitos diversos utilizando modos de fazer distintos, que as famílias tupi guarani dizem não dominar; e também da cestaria Kaingang. Certa vez, encontrei na rodoviária da cidade um grupo de indígenas Kaingang que, oriundo do Paraná, se dirigia para a região de Tupã (SP). Esses portavam muitos cestos, de tamanhos variados, e que chamava a atenção de quem passava por ali. Conversei com eles sobre a viagem que fariam e, a pedido deles, tirei fotos dos cestos para levar para aldeia, para fazer propaganda! Chegando à aldeia mostrei a D. Juraci, que antes mesmo que eu contasse sobre os cestos, foi logo dizendo: Ah esses cestos são Kaingang, os trançados são como correntes, eles apreenderam fazer cesto com o Guarani, você sabe né? Mas deixam as marcas deles. Explicou então, que Guarani faz cestaria trançando em formato de peixe, da paisagem, das peles de cobras que conhecem, de tudo que veem na mata, e que só de olhar é possível enxergar as diferenças.84

83 Da mesma maneira que nos apresenta Figueiredo (2010) em sua tese, são os elementos que escapam da vida

íntima, o principal combustível para as fofocas. E normalmente, são elas que antecedem os conflitos entre as famílias tupi guarani com as quais trabalhei.

84 Esses comentários me remetem ao trabalho de Velthem (2007), em que autora nos apresenta a arte e os

objetos Wayana, e a maneira como incorporam do exterior seus padrões. Dessa forma, a estética decorativa, é resultado da observação de outra estética que foi vista nos primórdios pelos ancestrais, por exemplo, na pele da anaconda. Entre os Tupi Guarani, além de incorporarem a estética observada no corpo dos animais ou na paisagem, incorporam também, como veremos mais adiante, objetos e pinturas corporais de outros povos com os

Para além das diferenças que essas famílias estabelecem entre elas e outros povos, há ainda diferenças notáveis entre os parentes que residem nas distintas aldeias da região, e são essas as relações que mais motivam embates e geram tensões a respeito da originalidade e domínio do que fora produzido ou apresentado. Cada uma das aldeias confeccionam à sua maneira as roupas que usarão nas apresentações, o tipo de pintura facial e os arranjos de cabeça, porém notei que entre as três aldeias (Ywy Pyhaú, Karugwá e Tekoa Porã) é comum o uso das cores, preto e vermelho. As roupas usadas nas apresentações na aldeia Karugwá, por exemplo, são confeccionadas com taboa ainda verde retirada da beira dos rios. Ela é desfiada e trançada, depois deixada no sol para secar. Tanto os homens quanto as mulheres usam saias de taboa; mas convém destacar, que no caso das mulheres, além de mais curtas, elas vêm acompanhadas de tops também feitos com o mesmo material e adornados com sementes. Enquanto que os moradores de Ywy Pyhaú confeccionam suas roupas a partir de tecidos de algodão cru alvejado que são pintados em preto e vermelho, com os motivos que se referem à aldeia. As mulheres usam saias e tops de algodão, os homens utilizam shorts vermelho ou preto, e os meninos utilizam o tambeó, que consiste em dois pedaços retangulares de tecido, um colocado na parte anterior e outro na parte posterior do corpo, na altura da cintura, os quais são amarrados nas laterais por um cordão. Com relação às famílias de Tekoa Porã, é comum entre as mulheres o uso de camisetas, onde constam o nome e a marca da aldeia, e uma saia longa de taboa, enquanto os homens utilizam saias de taboa ou shorts, sem camisa.

Já as pinturas nas três aldeias costumam seguir o mesmo padrão, como explicou Marcílio e sua esposa Raquel, isso ocorre porque todo mundo ali é Tupi. Os homens pintam três riscos pretos nas laterais da face, em posição horizontal, e tal pintura pode ser usada em qualquer ocasião; quando utilizam três riscos pretos com vermelho, que também é uma pintura masculina, estão se referindo ao luto; e o uso de três riscos, um preto, outro branco e um vermelho, consistem na pintura guerreira dos homens. Entre as mulheres, quando solteiras, utilizam dois traçados em forma de setas em cada lado da face, um vermelho e um preto. Quando casadas utilizam um círculo sem preenchimento de cada lado, normalmente em preto. E segundo explicam, o que diferencia a pintura tupi guarani, daquela utilizada entre alguns Guarani-Mbya é a largura do riscado, visto que os traços tupi guarani costumam ser mais grossos, pois, normalmente, utilizam seus próprios dedos como pincéis.

quais se relacionam ou dos quais têm noticias. Não se tratando pura e simplesmente de uma imitação, mas de uma característica já apontada entre os povos Tupi-Guarani, que se relaciona à sua abertura para o outro, para a alteridade, como formulado por Viveiros de Castro (2002).

Todavia, é fundamental dizer que durante as festividades e apresentações, as roupas ou os desenhos não são restritos aos que foram apresentados aqui, eles estão abertos a invenções e incorporações de outros povos indígenas, o importante é que façam bonito nesses dias. E é justamente desse anseio de fazer bonito que surgem os comentários a respeito de algum parente que depois de ver determinada pintura ou trançado de roupa em uma das festas, na próxima passa a usá-lo, fingindo que inventou, mas na verdade copiou. Comentários que apesar de desagradar tanto seu receptor quanto o dono da ideia, estimulam, em contrapartida, as pessoas a fazerem sempre algo diferente a cada apresentação, de uma festa para outra.

No entanto, o artesanato, as roupas e pinturas, não servem apenas para marcar diferenças entre as famílias tupi guarani e seus parentes das aldeias vizinhas ou entre elas e outros povos, mas também entre moradores de uma mesma aldeia, principalmente, entre as mulheres. Apesar de muitos brincos, tiaras e colares serem semelhantes, costumam explicar que há diferenças nas formas de fazer o artesanato, como se pode notar em suas falas: Uma trança a fibra para o lado esquerdo, a outra para o lado direito; Ela segura a fibra com o dedão do pé para trançar eu faço com a mão; Dá para saber que é dela porque fica mais grossa e a ponta da trança bem fina, a minha não afina; Esse brinco não foi ela quem fez, ela não gosta de roxo, ela não usa pena assim. Além de falas que costumam marcar as diferenças das peças confeccionadas e o reconhecimento entre as mulheres de quem é a artesã responsável, também costumam marcar quem são as donas da ideia. Quando, por exemplo, alguém faz um brinco diferente ou uma nova presilha de cabelo, a próxima a confeccionar algo do tipo deve dizer com quem apreendeu e onde viu determinada peça, pois não apontar quem é a dona da ideia pode gerar pequenos conflitos. Muitas vezes as mulheres dizem que apreenderam determinado artesanato só de olhar e por fazerem do jeito delas não costumam atribuir o invento a ninguém, além delas próprias. Por esse motivo, a depender da visita, costumam não mostrar seus artesanatos, pois sabem que correm o risco, em suas palavras, de terem suas ideias copiadas.

Não pude deixar de notar que tais modos de saber-fazer também acabam seguindo os mesmos caminhos dos materiais que trocam para a confecção do artesanato e das conversas entre as mulheres. Por precaução ensinam apenas aquelas, que por serem próximas, não deixarão de atribuir a invenção à sua dona, já para aquelas com quem não se têm uma relação de muita proximidade, evitam mostrar demais, pois temem serem imitadas. Imitar, veremos, é

um comportamento atribuído às crianças e valorizado entre elas, que enquanto as observam e imitam, vão aprendendo os modos de ser Tupi Guarani de verdade 85.

Foto 6: Tambeó dos meninos – Crianças da aldeia Ywy Pyhaú (2014)

85 Não se trata aqui de imitação no sentido de buscar-se uma cópia idêntica, mas como nos apresentou Pierri

(2013a: 46) ao tratar das atividades Mbya, “toda imitação é uma transformação”. Ou como aponta Testa (2012) “imitar, repetir ou copiar, não é um processo de reprodução idêntica; há sempre a produção da diferença” (TESTA 2012: 171).

Foto 7: Alguns componentes do Grupo Cultural da Aldeia Ywy Pyhaú ( Foto: Adilson de Lima, 2016)

Foto 8: Preparativos para a festa do índio – Uma das formas de confeccionar as roupas utilizadas pelas mulheres do Grupo Cultural da aldeia Karugwá (2014)

Foto 9: Grupo Cultural da Aldeia Tekoa Porã – Festa do índio, aldeia Karugwá (2014)