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Os modos de ser Tupi Guarani: a gente apreende vivendo junto!

CAPÍTULO 2 AQUELES QUE VIVEM JUNTOS: RELAÇÕES ENTRE PARENTES

2.4. Aqueles que vivem juntos: cotidiano e relações entre parentes tupi guarani

2.4.2 Os modos de ser Tupi Guarani: a gente apreende vivendo junto!

Imitar é algo bem vindo apenas quando parte das crianças, que quando não estão na escola, brincam próximas aos pátios das casas onde os adultos realizam suas atividades e, em alguns momentos, são pegas imitando as tarefas que seus parentes mais velhos [irmãos (as), tios (as), avós e os pais] estão executando. Os meninos costumam acompanhar seus pais e tios nas andanças pela mata, para que apreendam como devem se portar nesses locais; e também os acompanham durante a pesca, a fim de observarem a maneira correta de executar tal atividade. Já as meninas, além das tarefas domésticas, apreendem a trançar fibra de bananeira para a confecção de brincos e pulseiras, e também ajudam a cuidar das crianças de colo, dando-lhes banho, comida e trocando suas fraudas. Importante observar que quando as crianças ainda são muito pequenas a divisão das atividades por gênero não é tão evidente, misturam-se todos esses aprendizados, os quais se tornam marcados apenas quando os

pequenos se transformam em jovens, sendo esses modos de saber-fazer também uma forma de fabricar seus corpos.

As famílias tupi guarani explicam que tais atividades não são apresentadas para os mais novos como obrigações, é preciso antes de tudo ter vontade, jeito, pois se não tiverem por mais que se ensine, não vão apreender. Como já apontou Pissolato (2007: 318) para alguns Guarani-Mbya, “cada um tem sua sabedoria”, a qual se aprende na vida, por meio de experiências pessoais, e também ficando juntos. É vivendo juntos que as crianças apreendem, o que meus interlocutores denominam de os modos de ser Tupi Guarani, a forma como devem se portar diante de outras pessoas, as maneiras à mesa, a hora certa de falar e calar, dentre outras coisas, que desenvolvem ao observar e ao ouvir os mais velhos. Porém, hoje os velhos se queixam de que os jovens não estão mais dispostos a ouvi-los.

Adilson tinha o hábito de sempre narrar histórias de seu tempo de infância e das coisas que apreendeu com seu avô Kandui. O intuito, segundo ele, era me mostrar como os velhos são importantes para a cultura do índio e a necessidade de saber ouvi-los para apreender a ser Tupi Guarani. Quando era criança, ele e seus irmãos tinham por hábito acompanhá-lo pelas andanças na mata, e seu avô lhes dizia que só assim, andando pelos lugares, que é possível apreender alguma coisa. Ele conta que caminhava com seus irmãos falando alto e fazendo algazarras e seu avô pacientemente parava e lhes perguntava: Vocês ouviram o que eu ouvi? Nesses momentos, e diante de suas respostas negativas, seu avô aproveitava para ensiná-los: se não ficarem quietos não vão ouvir o que os pássaros estão querendo avisar, não vão saber se há perigos no mato! 86.

Dias depois, a fim de exemplificar o que seu pai havia me contado a respeito das andanças com seu avô, Stéfany narrou uma história que aprendeu com seu tio e professor, e que envolvia uma onça, um tamanduá e um inhambu. A onça estava há dias caçando um tamanduá, que mesmo a distância, percebia sua presença e conseguia fugir sempre. O que fez com que ela ficasse intrigada, afinal como ele conseguia enxergar tão longe tendo os olhos tão pequenos? Gritando, ela perguntou a ele. O tamanduá, com medo de ser devorado, disse a onça que ela deveria procurar um caminho cheio de espinhos e esfregá-los em seus olhos, pois

86 Tais formulações tupi guarani, relacionadas a seus modos de saber e a forma como se constituem nas práticas

da vida cotidiana, através da observação, relação e manejo do ambiente, dialogam, em certa medida, com as noção de ”engajamento” e “educação da atenção” de Tim Ingold (2010). Como nos apresenta o autor, a percepção é fundamental para o processo de aprendizado, o qual envolve as experiências vividas. O que pode ser elucidado a partir do trecho de Ingold que cito: “O lenhador experiente [...] olha em torno de si em busca de orientação sobre onde e como cortar: ele consulta o mundo, não uma figura em sua cabeça. O mundo, afinal de contas, é mesmo seu melhor modelo [...] O aprendizado, a educação da atenção, equivale assim a este processo de afinação do sistema perceptivo” (INGOLD 2010: 21).

assim, eles ficariam pequenos e tão potentes quanto os dele. A onça imediatamente seguiu os seus conselhos e, em razão disso, ficou cega. Com raiva, ela pensou em voltar e matar o tamanduá, mas seria difícil, pois não podia enxergar. Foi perdida na floresta que a onça conheceu o inhambu, o qual, vendo sua situação, fez um acordo com ela: ele daria seus olhos a ela, porém ela nunca poderia caçá-lo. Ele cantaria para avisá-la que é ele quem está fazendo barulho na mata, evitando assim, ser devorado pela onça. E é por esse motivo que toda vez que inhambu canta é sinal que tem onça! E por isso é importante apreender ouvir o mato!

Tanto Adilson quanto seus irmãos, dizem ter apreendido tudo o que sabem com seu avô, seja andar pelo mato, fazendo silêncio e pisando leve, seja a confecção de utensílios de uso diário ou comercial. Quando eram adolescentes em Guapirama (PR), contam que passavam por muitas dificuldades, foi então que seu avô lhes aconselhou. Ele lhes disse que se apreendessem a fazer o artesanato poderiam ter alguma renda e contribuir com o sustento da casa. Primeiro, seu avô os levou até a mata e lhes mostrou os materiais que poderiam utilizar, depois lhes ensinou a maneira como deveriam fazer os arcos, as flechas e as zarabatanas. E segundo comentam, os conselhos de seu avô eram sempre certeiros, pois logo no primeiro mês vendendo seus artesanatos, já estavam ganhando dinheiro. Importante destacar, da mesma maneira como apresenta Testa (2014) para alguns Guarani, que “[...] estes conselhos não se atém a conteúdos dos conhecimentos, mas indicam para os mais jovens modos de percorrerem os caminhos de conhecimento” (TESTA 2014: 146).

Dizem que é por tudo que apreenderam com seus avôs, que fazem questão de sempre enfatizar a seus filhos a necessidade de ouvir os mais velhos, mesmo quando os jovens e crianças se encontram resistentes a tais conselhos, nunca deixam de aconselhar.87 Explicam

que os mais velhos têm mais experiência, tem mais sabedoria, e ouvi-los é também é uma forma de ter sabedoria. Comentam que os velhos já escutaram muitas coisas ao longo de suas vidas, puderam frequentar a casa de rezas, ouvir os rezadores, e apreenderam a escutar o que Nhanderu lhes ensina e, por isso, são mestres em fazer passar adiante. E saber ouvir é de

87 São comuns nas conversas entre os Tupi Guarani as referências à sabedoria dos mais velhos e seu poder de

aconselhar os mais novos. Algumas etnografias (PISSOLATO 2007, 2008; TESTA 2014, RAMO Y AFFONSO

2014, dentre outras) apontam o termo -mongeta , como aconselhar. Pissolato (2008: 44), por exemplo, nos apresenta o aconselhamento como a fala dirigida dos mais velhos aos mais novos e que deve ser acolhedora, “[...] pautada na delicadeza de quem fala e no reconhecimento da autonomia de quem escuta”. E dessa forma, compreende-se que os aconselhamentos costumam percorrer alguns caminhos pré-definidos, ou seja, partem habitualmente dos mais velhos e se dirigem, sobretudo, aos jovens (crianças e adolescente), ainda que os adultos também sejam aconselhados. O que varia ao logo desses caminhos são as pessoas envolvidas, visto que é a proximidade entre as pessoas que vai determinar quem emite a fala aconselhadora e os sujeitos que a recebe.

extrema importância para aqueles que desejam apreender sobre a vida, para viver segundo os modos de ser Tupi Guarani. 88

Outro ponto que se deve destacar e que diz respeito aos modos de ser Tupi Guarani se refere à alimentação, ao que se come, como e com quem. Atualmente essas famílias consomem apenas comida da cidade, que é constituída basicamente por produtos industrializados, aqueles que compõem as cestas básicas que chegam por doações ou, então, que têm por hábito comprar nos mercadinhos do município. A produção do que denominam comida dos antigos, de acordo com meus interlocutores, tem sido prejudicada pelos espaços reduzidos em que se encontram as aldeais no estado de São Paulo. Em meio a esse contexto não há a possibilidade de abertura de grandes roças para que cultivem o milho e a mandioca, os quais aparecem em suas narrativas como os principais alimentos consumidos pelos antigos, e que seriam os responsáveis por não os deixar adoecer. Os parentes antigos comiam apenas aquilo que brotava da terra, da forma como Nhanderu os ensinou, a fim de juntamente com a prática dos cantos e as danças, tornarem-se leves. Sua leveza, como dito no capítulo anterior, é o que possibilitava que chegassem à Ywy Marãe’y (Terra sem Males) de maneira completa, de corpo e alma. Tal dieta também os aproximava das divindades, daquilo que se alimentavam e, consequentemente, de seus corpos que não adoeciam. Próximo a essa aldeia, como já fora apresentado anteriormente, não há grandes espaços reservados à mata nativa, o que inviabiliza a caça e o consumo de carne resultante de tal atividade. E, segundo contam, são por esses motivos que hoje seus corpos estão mais pesados do que de seus antepassados, fato que impossibilita que se aproximem das divindades, ao mesmo tempo em que estão mais frágeis e abertos a contaminação por doenças. 89

88 Essas explicações a respeito dos mais velhos me remetem ao trabalho de Overing (1999: 96) entre os Piaroa,

para os quais “[...] cada pessoa recebe gradualmente, ao longo do tempo, aspectos adicionais de sua ‘individualidade’ que irão compor sua ‘vida de pensamento’”. E é por isso, que os mais velhos são considerados

mais fortes que os jovens, pois puderam apreender muitos saberes ao longo de suas vidas. Entretanto, não se

pode ignorar que entre os Tupi Guarani, ao falar da sabedoria dos mais velhos, falam mais em termos de pessoas que sabem passar adiante o conhecimento, do que em alguém que o acumula, que o retém para si. Há também de se atentar para o fato de que, se por um lado, quanto mais velhos, mais sabedorias possuem, por outro, apresentam uma menor habilidade no trato com o mundo dos brancos, que fica reservado aos jovens, sobretudo professores das aldeias, os quais passariam adiante esses saberes outros, oriundos do mundo juruá.

89 O papel da alimentação na constituição da pessoa e também das relações entre parentes, já fora destacado em

outras etnografias sobre os povos guarani (PISSOLATO 2007, MACEDO 2009, PIERRI, 2013a, dentre outras) e também sobre outros povos ameríndios (GOW 1997, OVERING, 1999, NUNES, 2012, etc.). Gow (1997), por exemplo, nos mostra que entre os Piro “[...] uma vez completamente desmamada, a criança é alimentada com ‘comida legítima’, a comida que todos os Piro comem (uma combinação de carne de caça e banana ou macaxeira). Esse alimento, fornecido pelos pais e, através deles, por todos os parentes adultos, preenche essa nova interioridade formada pelas entranhas da criança. Satisfazendo sua fome, o alimento dirige a atenção da criança para o exterior, para o campo social dos ‘alimentadores’, isto é, daqueles que ‘viram aflição’ na criança.” (GOW 1997: 53).

Explicam que atualmente se tornou difícil manter a dieta que lhes foi ensinada pelos antigos, entretanto, se esforçam para dar continuidade, ao menos em partes, ao que lhes foi ensinado e, por isso, quando o assunto é como e com quem se come a história muda de figura. Em todas as casas pelas quais passei nunca vi quem pegasse um prato de comida e não fosse imediatamente acompanhado por outra pessoa, mesmo por aqueles que já haviam se alimentado anteriormente. Para alguns, que partilham de outras etiquetas, poderia soar como uma atitude gulosa, no entanto, trata-se de uma forma de acompanhar o parente. A recusa de um prato de comida que lhe é oferecido quando se chega a uma das casas, ou a partilha de um copo de café, é vista como grosseria por quem lhe ofereceu algo. Tal atitude gera comentários entre as pessoas, que costumam acusar aquele que recusa alimentos de não gostar do tempero de quem o preparou e, em casos mais críticos, podem ainda, acusá-lo de não gostar da pessoa responsável por sua preparação.

O termo que utilizam para se referir ao ato de alimentar ou ser alimentado por alguém é tratar, e segundo suas formulações, alimentar é nutrir, é fazer corpo (dar corpo), tornar-se mbaraeté (fortes), algo que só tem sentido se for feito em conjunto, pois tratar implica sempre a existência de uma pessoa sob os cuidados de outra. E, por isso, costumam perguntar com frequência: Tal pessoa já foi tratada? Já trataram dele? Referindo-se nesses momentos, sobretudo às crianças, aos bichos que criam no pátio das casas e aos visitantes, demonstrando a existência de um ciclo de cuidados, que passa dos mais velhos aos mais novos; das mulheres, donas das cozinhas, para os homens e dos anfitriões aos visitantes. E, por isso, a alimentação é algo extremamente importante para que se tornem e se mantenham Tupi Guarani verdadeiros. 90

Como Nunes (2012) aponta para os Karajá de Buridina, “[...] a alimentação é, certamente, um dos meios privilegiados de produção de corpos-parentes. Não apenas pelo alimento incidir no corpo, mas também pelas relações e posições de parentesco implicadas no par ‘alimentar alguém – ser alimentado por alguém’” (NUNES 2012: 189). E assim, as mães e esposas tratam de seus filhos e maridos; as tias, dos filhos de seus irmãos ou irmãs que estejam em sua casa; as crianças mais velhas tratam das mais novas na escola, colocando merenda em seus pratos; cada um trata de seus bichos de criação e as avós tratam de todos na aldeia. Comentam que na casa da Jari (termo utilizado para se referir, em alguns momentos, à

90 Devido à passividade atribuída ao sujeito que deve ser tratado, pode-se aqui fazer um paralelo com o termo

poj (Aweti). Que como nos apresenta Figueiredo (2010): “–poj é o termo que se usa para o ato de dar de comer a um bebê ou a um animal de estimação. A um adulto se ‘faz comer’, mokat’u, enquanto um bebê e um filhote de bicho são alimentados: -poj implica a passividade daquele que é nutrido, aí figurando como objeto de um sujeito que alimenta.” (FIGUEIREDO 2010: 159).

D. Juraci), a comida costuma até se multiplicar, sempre há mais um lugar para que alguém se sente e mais um prato possível de ser montado. Mesmo quando há uma quantidade pequena de alimentos eles são divididos, satisfazendo a todos. 91

Apesar dessas atitudes – viverem juntos, estarem disponíveis, comerem juntos – serem desejadas e valorizadas entre os parentes, sendo fundamentais para que se tornem e se mantenham Tupi Guarani verdadeiros, é possível notar que nem sempre é o que ocorre entre essas famílias, pois as relações entre parentes também se apresentam enquanto um lugar de acusações e conflitos, conforme procuro mostrar a seguir.