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O território demarcado e a busca que não cessa

CAPÍTULO 1 FUNDANDO UMA ALDEIA: MEMÓRIAS, ANDANÇAS E

1.6. O território demarcado e a busca que não cessa

No tempo dos antigos, a presença de outros povos indígenas, como por exemplo, os Kaingang, era o que limitava as áreas que ocupavam ou aquelas que poderiam vir a ocupar. Tinham por costume marcar um tronco de madeira com algum desenho que os identificasse e

colocar na entrada da aldeia, como um aviso aos outros povos que, por ventura, passassem pela região. Caso a marca indicasse que não havia permissão para passar por ali, ou os transeuntes desviavam seu caminho ou assumiam o risco de um possível conflito. Contam as famílias tupi guarani, que nesse tempo as aldeias não eram da mesma maneira como o são agora, as casas comportavam um grande número de pessoas, dos avós aos netos, e eram decompostas e refeitas em outros locais com maior frequência, pois trabalhavam mais no mato. As aldeias, me parece, eram pontos de parada após os períodos de deslocamentos pela mata em busca de caça e outros alimentos, dado a afirmativa de que trabalhavam mais nesses locais.

Diziam os antigos que foram os padres (capuchinos/ jesuítas) os responsáveis, em vários momentos, por dissolver suas aldeias e reuni-las novamente em um único aldeamento, o que prejudicou a maneira como organizavam sua vida e as relações que estabeleciam com os lugares que ocupavam. É o que ocorreu com os parentes antigos que viviam na região de Itaporanga e Barão de Antonina e que “a contragosto”, foram transferidos por Curt Nimuendaju à Reserva Indígena Araribá (NIMUENDAJU 1987: 11). Nos dias de hoje, as famílias tupi guarani também fazem críticas a órgãos como o SPI e a FUNAI, apontando-os como responsáveis por acabar com a economia e mexer com a cultura tupi guarani.47 Assim relatam D. Juraci e Marcílio:

D. Juraci (2010): “[...] O SPI veio primeiro para destruir nossas terras, fez a gente mudar nossa economia, que eles falam né? A gente vivia do nosso jeito, depois não podia mais. Tinha que ser na terra que eles queriam [...] A gente nunca gostou de roça, a gente gosta de caçar, pegar fruta no mato e fazer só umas hortinhas do lado de casa, mas trabalhar na roça a gente não gosta não, gosta de fazer nosso artesanato e ficar em casa sossegado. Em Araribá só tinha Tupi Guarani e queria que a gente fizesse roça, aprendesse a trabalhar para deixar de ser vagabundo, mas a gente não dava jeito. Aí trouxeram os Terena para fazer roça, ai a gente aprendeu, mas não gosta não [...]” (ALMEIDA 2011: 79).

Marcílio (2010): “[...] Aí veio a FUNAI e tá fazendo a gente perder nossa cultura, a gente tem que pensar em política demais ai fica de lado nossa religião, tem que fazer

47

Brighenti (2004: 111) afirma que os Guarani, por conta de sua localização geográfica, foram os povos que mais mantiveram contato com as missões e com as políticas do Estado que intenta, desde há muito, integrá-los à sociedade nacional. Antigamente por meio dos aldeamentos e das reservas do SPI, e atualmente através “[...] da desintegração do [seu] povo”, dificultando seus deslocamentos e “não garantindo espaços suficientes”.

do jeito que eles querem [...] Hoje em dia a gente só canta e dança em apresentação, com toda essa luta a gente perdeu a força para rezar, porque para fazer reza tem que ser forte para aguentar segurar o guia que vem. Porque do jeito que a gente vive nervoso pode vir um guia ruim que a gente não consegue controlar. Aqui a gente nem tem casa de reza (Opy) ainda. Antigamente aqui dava para fazer reza, o pessoal quando veio fazer os estudos das terras, achou cedros. São dois cedros colocados um do lado do outro que marcam a existência da casa de rezas [...]” (ALMEIDA 2011: 79-80).

As famílias tupi guarani queixam-se, com frequência, que não só antigamente os territórios era divididos sem considerar os povos que ali habitavam, e são categóricos ao afirmar que, caso não fiquem atentos a essa divisão e não se empenhem em conhecer os tramites envolvidos nos processos de demarcação das Terras Indígenas , correm o risco de, mais uma vez, perderem seu território. Por esse motivo, enfatizam sempre a importância de participar efetivamente do processo de regularização fundiária da área onde se encontra Ywy Pyhaú.

A ideia de demarcação de “terras para os índios”, segundo Ciccarone (2010), iniciou- se com o SPI como uma política integracionista do Estado, fornecendo pequenas áreas aos indígenas e liberando outras tantas aos não indígenas. Dessa maneira, como bem apontou Ladeira (2007), não integrava o horizonte dos povos guarani. No entanto, atualmente a demarcação de seus territórios coloca-se como uma necessidade, vide os relatos de meus interlocutores. A busca pela preservação dos locais que ocupam apresenta-se como uma garantia de que poderão, tal qual os antigos, continuar circulando entre aldeias, visitando seus parentes e vivendo segundo o que lhes ensina Nhanderu. As famílias de Ywy Pyhaú concebem, assim, a demarcação de seu território não como o fim dos movimentos em busca de lugares que possibilitem o viver bem, mas como a possibilidade de se fazer esses lugares, por meio da garantia de direitos. Deve-se, todavia, atentar para o fato de que apesar de verem na demarcação de seu território a garantia de direitos, não há razão pra ficarem onde não se está alegre. Como aponta Pissolato (2007) para os Mbya, não se trata apenas de achar um lugar ideal para colocar em prática um “modo de ser tradicional” de vida, mas de buscar

sempre algo melhor. A tradição, segundo a autora, está “na procura em si” (PISSOLATO 2007: 121). 48

Conforme já mencionado, não se pode caracterizar o território tupi guarani sem fazer referências à constante “mobilidade” desses povos. Como vimos, são múltiplos os fatores que os levam a se deslocar: dos sonhos inspirados por Nhanderu até a busca por territórios e parentes. Por essa razão, o retorno à região outrora ocupada pelos antigos, não se circunscreve apenas a uma questão fundiária. Diferente das “migrações”, a maneira como os autores clássicos49 denominam a busca da Terra sem Males, e a circulação dos povos guarani por um vasto território, o conceito de “mobilidade” guarani inclui, de acordo com Pissolato (2007), a visitação entre parentes, a busca por cônjuges e a exploração sazonal de recursos ambientais, ou seja, há diversos motivos implicados nos movimentos desses povos.50 Isso parece ir ao encontro do que as famílias de Ywy Pyhaú entendem como passeio, a circulação entre aldeias, com intuito de visitar parentes e buscar diferentes condições de vida, acarretando, muitas vezes, nas mudanças ditas definitivas para determinado local, sendo essa uma característica própria dessas e outras famílias tupi guarani, como certa vez me explicou um senhor na aldeia Karugwá: Tupi Guarani é assim mesmo, gosta de passear, aí quando cansa do passeio, para em algum lugar para ficar um tempo. Meu avô que me ensinou que a gente é assim. Os antigos ensinaram a eles que deveriam sempre buscar a Terra Iluminada, com mata bichos e rios, porém, dos locais com os quais se deparam, queixam-se que sempre falta algo. Alguns velhos tupi guarani contam, com ar de tristeza, suas desconfianças de que não poderão permanecer por muito tempo no lugar que hoje vivem, primeiro por não conseguirem mais se fortalecer devido à situação instável que vivenciam, segundo pela desatenção dos órgãos públicos responsáveis por garantir que ali possam permanecer. Esses velhos sofrem ao pensar que o lugar de abundância, a Terra que visitam em sonhos, só será encontrada depois da morte. Reforça-se com isso o entendimento de que a demarcação do

48 Buscar melhores condições não diz respeito apenas aos territórios, mas como veremos adiante, à própria

pessoa, que enquanto se põe em movimento aproxima-se das divindades, torna-se mais forte, visto que estar em movimento, segundo meus interlocutores, e estar vivo. Em outras palavras, e na esteira do que afirma Pissolato (2007), estar em constante movimento é uma forma de ser fazer durar.

49 Dentre esses autores cito, por exemplo: Métraux (1927), Nimuendaju ([1914] 1987), Clastres, H. (1978), entre

outros.

50 Como bem atentou minha orientadora o termo migração não condiz com o movimento que realizam, visto que,

como implica o próprio termo, não se pode falar de lugares onde essas famílias estiveram fixadas, em um determinado ponto de origem, antes de se colocarem em movimento, migrarem, para, então, se fixar em novos lugares. As próprias “práticas de territorialidade” tupi guarani pressupõe o movimento, só é possível falar em território tupi guarani, no e em movimento. Suponho, assim, que o termo “mobilidade”, seja mais próximo à maneira como as famílias tupi guarani conceitualizam seus deslocamentos, ou aquilo que, muitas vezes, denominam de passeio.

território que ocupam não implicará no fim dos movimentos dessas famílias, pelo contrário, a demarcação é uma forma de assegurar que continuem a se deslocar, vivendo conforme o que lhes ensinam as divindades e os parentes antigos.

Os movimentos são constantes, todas as vezes que volto a Ywy Pyhaú recebo notícias de pessoas que foram embora, outras que chegaram, casas que foram transferidas de lugar, outras novas que estão em construção. Sempre há, também, um novo projeto de cultura do qual as famílias tupi guarani almejam participar e que as mobiliza em seu planejamento. No interior da própria T.I. Barão de Antonina, já presenciei diversas mudanças nos locais escolhidos para a construção de suas casas, ou como eles mesmos afirmam, pra fazer uma nova aldeia. Inicialmente, como já dito, essas famílias estavam localizadas no Bairro dos Vitor, parte sul do município, mudando-se em 2009 para o Bairro Parte Norte, na Serra dos Paes51, área norte do município. Nesse momento se dividiram em dois grupos e um deles deu origem à aldeia Karugwá, que sob a liderança de outro indígena continuou ocupando as casas no Bairro dos Vitor. As disputas internas relacionadas, sobretudo aos cargos remunerados e as posições de liderança foram o principal motivo para tal separação, haviam também, queixas relacionadas à entrada de não indígenas nessas localidades e o desinteresse de algumas famílias tupi guarani de viverem a cultura.

A escolha do lugar à beira da Serra dos Paes não se deu de forma aleatória, novamente ele foi revelado em sonho, dessa vez de Marcílio, no qual ele visualizou sua família junto dele, ao lado de uma casa de madeira de frente para o rio Verde. No sonho, sua tia, a mesma que outrora anunciou a fundação da aldeia Ywy Pyhaú, lhe dizia: esse aqui é o lugar certo! Ressaltando mais uma vez a importância de estar atento ao que é revelado em sonho, guiando- se pelos ensinamentos de Nhanderu, e pelo que contam os parentes. O local em questão também passou por reconhecimento, primeiro foram os homens que ocuparam um sítio abandonado, e só quando tiveram certeza que seria seguro permanecer por ali, que vieram suas esposas e crianças. Relatam meus interlocutores, que no início dessa ocupação tudo ocorreu bem; com o passar dos dias, no entanto, o senhor que reivindica a propriedade daquela área passou a ocupá-la com gado, colocando em risco a segurança das crianças. Rafaela, neta de D. Juraci, contou que, certa vez, ao retornar de um passeio à beira do rio, ela e sua avó tiveram que pular uma cerca e correr para fugirem de um boi bravo. Nessa ocasião

51 Há no topo de um dos morros que compõe a Serra dos Paes um cruzeiro, onde fora realizada, pelo Padre Frei

Pacífico de Montefalco, a primeira missa marcando a fundação do antigo aldeamento São João Batista do Rio Verde. E esse cruzeiro serve também de referência para as famílias tupi guarani ao dissertarem a respeito de seus deslocamentos para essa região.

quase sofreram um acidente, pois saíram em disparada pela estrada sem notar que vinha um carro em sua direção.

Já situadas no bairro Parte Norte as famílias que ali viviam realizaram outras tantas mudanças: primeiro do sítio abandonado para o pé da Serra dos Paes, em uma área doada por um sitiante da região. Posteriormente, além de ocuparem o pé da Serra, algumas pessoas construíram suas casas e também a escola à beira do rio Verde. Neste local de superfície plana, denominado por essas famílias de terreirão, havia mais segurança para as crianças, visto que a antiga escola situava-se na beira da estrada que leva aos ranchos do entorno da represa Chavantes. Apresentava também, maior segurança a alguns moradores que temiam que com as chuvas fortes, frequentes na região, pudesse haver desmoronamentos. Essas famílias ocuparam o terreirão até o final de 2013, quando houve a Reintegração de Posse da área. Nesse contexto, e temendo pelas crianças, mudaram-se mais uma vez para as proximidades da aldeia Karugwá, em um espaço cedido pelo atual cacique da referida aldeia, Melquesedeque Mendes (Milk), em concordância com seus outros moradores.52 Tal mudança ocorreu de forma gradual e levou cerca de dois meses: primeiro veio D. Juraci e seus filhos Rafael e Reginaldo e suas respectivas esposas, que construíram duas casas no local. Posteriormente levaram os materiais para a construção da escola, a fim de possibilitar que a famílias de Marcílio e Adilson viessem com seus filhos, já em idade escolar. Por conta da maneira gradual com que ocorreu, esse deslocamento fez emergir diversos conflitos entre as famílias ali residentes, além de relatos de doenças, dos quais falarei nos próximos capítulos. Por ora cumpre ressaltar a constância dos deslocamentos de pessoas e famílias, seja para o exterior de Ywy Pyhaú, seja em seu interior.

Além das mudanças de lugares onde viviam, houve, ainda, mudança dos locais onde construíram suas casas e também alterações de seus ocupantes. Em Ywy Pyhaú, por exemplo, a casa que é atualmente ocupada por Carlos e sua família, já esteve ocupada pela família de Marcílio, que hoje vive na casa que pertencia, anteriormente, a Carlos, situada na entrada de Karugwá. A casa onde hoje reside a família de Rafael, já residiu a família de Reginaldo, que atualmente vive na T.I. Araribá. Antes disso, Rafael, que viveu com sua esposa na casa de D. Juraci, passou alguns meses residindo e trabalhando na cidade de Ourinhos (SP). Isso para não falar das pessoas, sobretudo dos jovens solteiros, que chegam de outras localidades e se acomodam juntos aos parentes. Uma das netas de D. Juraci, por exemplo, já residiu na T.I.

52 Quando falam em ceder espaço, da mesma forma que ocorreu na T.I. Araribá no momento da fundação de

Ywy Pyhaú referem-se à autorização para que determinada área seja utilizada para plantio, construção de casas, escola, dentre outras coisas que estruturam uma aldeia.

Araribá com seu pai, junto de uma de suas tias em Ywy Pyhaú, e atualmente vive com outra tia em Karugwá. Reforçando o que D. Juraci costuma dizer: A gente tá aqui, mas a gente não tá parado! 53

Já ouvi também sobre o movimento que os Tupi Guarani realizam quando dançam e cantam, momento no qual seus corpos ficam mais leves, possibilitando que subam ao céu, chegando mais perto de Nhanderu54. Isso, no entanto, não acontece mais, pois dança e canto só se realizam de forma efetiva, quando tem sua casa de rezas, quando se tem seu lugar, quando estamos nas nossas terras, lugar onde Nhanderu nos plantou! Por esse motivo a demarcação tem se apresentado como algo tão importante, na medida e que ela assegura que as famílias tupi guarani continuem se deslocando por um vasto território, circulando entre aldeias e entre Terras Indígenas demarcadas. E dessa maneira, possam principalmente, realizar o outro movimento, aquele que os aproxima das divindades. Porém, nem todos os lugares ocupados, hoje, por indígenas são propícios à realização dos seus modos de ser, seu viver bem e assim, a busca pela terra boa, pelo lugar onde podem se fortalecer vivendo junto aos parentes, não cessa. Ouvi inúmeras vezes pessoas narrarem sonhos com lugares ainda não visitados, os quais explicam, podem vir a ser novos locais de ocupação, pois se tratam de conselhos enviados pelas divindades, caminhos abertos por Nhanderu. No último capítulo voltarei a esses sonhos que indicam lugares e as viagens da alma com o intuito de conhecê- los. Por ora caminho para as relações entre parentes e alianças constituídas por aqueles que residem e visitam Ywy Pyhaú. 55

53 Tais mudanças, no interior de uma aldeia, também foram etnografadas por Pissolato (2007) entre alguns Mbya

no Rio de Janeiro, e em suas palavras: “[...] É possível interpretar a alteração das rotinas de trabalho de uma família ou casal, as mudanças constantes em arranjos residenciais num mesmo local e o fazer e desfazer de casas e varandas que os acompanham como maneira de por em prática esse ethos de quem não fica parado. Não apenas se anda entra aldeias ou se buscam lugares, mas procuram-se maneiras alternativas de afazeres e de relações nas quais se permanece. Muda-se o lugar da casa e, com isto, criam-se aproximações e distancias relativas; muda-se o fogo e o modo de reunião em trono dele, mudam-se o que se faz e com quem se faz, de modo que a rotina local seja capaz de assegurar um espaço razoável de alteração de modos de pensar e sentir das pessoas” (PISSOLATO 2007: 166).

54 Sobre seus corpos retomo no capítulo três desta tese.

55 No que tange os aspectos políticos envolvendo a demarcação desse território, é possível consultar minha

pesquisa anterior (ALMEIDA 2011), onde, como já foi dito, discuti de maneira mais detida a respeito dos processos de regularização fundiária e das “práticas de territorialidade” tupi guarani.

CAPÍTULO 2 - AQUELES QUE VIVEM JUNTOS: RELAÇÕES ENTRE PARENTES