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O ir e vir das almas: formulações tupi guarani a respeito da reencarnação

CAPÍTULO 3 – FAZENDO E FORTALECENDO PESSOAS

3.2. Dos corpos outros: notas sobre as noções de nhanderekuaá e angue

3.2.1. O ir e vir das almas: formulações tupi guarani a respeito da reencarnação

Como apresentado anteriormente, os parentes antigos, aqueles que há muito faleceram, são capazes, sobretudo através dos sonhos, de se comunicar, enviar mensagens e cantos-rezas (mborei) àqueles que estão vivos e podem, também, atuar como seus guias espirituais. Isso acontece, pois quando a pessoa morre o corpo fica na Terra, assim como a sombra da pessoa, ou seu fantasma (angue), entretanto, seu espírito (nhanderekuaá) volta para Ywy Marangatu (Terra Sagrada), onde fica até que deseje, segundo formulações de meus interlocutores, viver novamente ou reencarnar. Conforme explicam as famílias tupi guarani, não são todas as pessoas que escolhem reencarnar; algumas voltam para concluir algo que deixaram inconcluso nesta Terra, provavelmente por terem morrido antes da hora, vítimas, por exemplo, de assassinatos ou doença de branco; outros retornam por saudades dos parentes que aqui ficaram, ou porque ainda tem muito a lhes ensinar. Dizem que as pessoas que não voltam, são aquelas que já têm muita sabedoria e que ficam lá de cima olhando e servindo a eles como guias, porém são poucas as que ocupam tal posição, visto que quase todo mundo quando morre, deixa algo por terminar: um filho que não acabou de educar, uma horta que não viu crescer ou, então, como me disse Marcílio, podem desejar voltar para continuar lutando por seu território, dando continuidade à luta que iniciaram nas outras passagens por esse mundo.

A morte, segundo explicam, é como uma grande viagem, tanto que quando Sr. Firmino, avô de D. Juraci, faleceu, antes de partir chamou a todos a fim de aconselhá-los, conselhos que concluiu com a seguinte frase: Estou indo viajar, uma viagem grande! Não sei

180 Ainda sobre a composição da pessoa e seus corpos-espíritos; certa vez, quando fotografava a roda de

mulheres confeccionando artesanato, D. Juraci me repreendeu por fotografar também seus cachorros. Afirmava que eles possuem apenas uma alma e que ela vai com a pessoa que tira a foto. Isso não ocorreria com a pessoa porque ela tem duas, uma que fica na foto e outra que é a nossa de verdade. Não foi possível uma investigação maior sobre o tema, e não ouvi outras pessoas que o abordassem, mas me parece, aqui, haver uma diferença entre nossa imagem e aquilo que denominam de alma, enquanto capacidade de comunicação e circulação de saberes que propicia a vida, que no caso dos cães não existiria, porém nada posso afirmar.

se demoro para voltar. 181 Ele seguiu seu caminho para Ywy Marangatu, lugar onde as almas, segundo narra D. Juraci, ficam se forem boas durante a vida e se já acabaram sua missão, se não, depois de passarem por lá voltam para terminar de viver. Ao dissertar a respeito das pessoas que vão para Ywy Marangatu pós-morte, utilizando-se do termo alma, e aqui se referindo a nhanderekuaá, suponho que estava a reafirmar que nhanderete (nosso corpo), parcela da pessoa que atualmente tornou-se perecível, permanece nesta Terra, não sobre para o céu. 182

Ela explica que as pessoas que optam por voltar escolhem viver nos locais onde já viveram, junto àqueles que são seus parentes. São comuns os comentários acerca de crianças que vivem na aldeia e possuem características de parentes que já se foram, atributos que não se limitam a seu humor ou personalidade, mas também remetem a marcas nos seus corpos. Uma das netas de D. Juraci traz uma cicatriz na cabeça, localizada no mesmo lugar onde uma parenta antiga (ora bisavó, ora tataravó) fora atingida por uma borduna e veio a falecer. Essa mesma criança, quando ainda era muito pequena, manifestava o desejo de deixar a aldeia, explicam que isso ocorria, pois em sua antiga vida, antes de ter sido morta, desejava se afastar daquele local, por temer quem a ameaçava. Depois que cresceu esse desejo desapareceu, dizem que é porque ela se acostumou ao lugar e que com as novas relações (nascer de outra mãe, viver em meio uma nova família), apagou da memória a vida ruim que tivera antes.

Também comentam sobre a personalidade forte e a risada de sonoridade rouca de um dos netos de D. Juraci, que segundo contam, é a reencarnação de seu bisavô, que tinha a mesma risada e implicava com as mesmas pessoas que essa criança hoje implica. Outro neto, assim como seu falecido avô, tem por habito chamá-la de filha, sendo esse a reencarnação do primeiro. Há ainda, o caso de outra menina que é considerada a reencarnação de sua tia avó, senhora que a mãe dessa menina gostava muito, pois viveu por muito tempo em sua companhia. Essa senhora era branquinha e de olhos puxados como a criança, e tinha um sexto

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Talvez aqui seja possível traçar um paralelo entre os diferentes tipos de viagens realizadas pela pessoa. Seja durante a vida, em busca de um viver bem, ou durante os sonhos, quando recebem seus mborai; seja pós-morte, quando voltam para Ywy Marangatu. Trata-se de tipos de viagens possibilitadas pelos diferentes componentes da pessoa que, como vimos no tópico anterior, tem também desejos e vontades próprias, trilham seus próprios caminhos e nem sempre eles coincidem. Onde transita nhanderekuaá, não necessariamente transita nhanderete, assim como, por onde caminham os ange ou anhã, as pessoas não devem caminhar.

182 Ao afirmarem que atualmente quando as pessoas morrem seus corpos ficam na Terra, o fazem por haver

relatos de que antigamente os corpos também subiam para a outra Terra, a Terra sem Males, restando aqui apenas os ossos das pessoas. Além dessa referência não ouvi nenhum comentário acerca dos ossos e de sua importância para as famílias tupi guarani tal qual apresenta, por exemplo, Cadogan (1997 [1959]), ao tratar do que chamou de “culto dos ossos”, que consistia em tentar ressuscitar a pessoa através de seus ossos, como Kuaray, fizera com sua mãe no tempo do mito. Ver também algumas passagens sobre o tema em: Fausto (2002), Pierri (2013a) e Ramo Y Affonso (2014).

dedo no pé. A criança nasceu assim, com um sexto dedinho, não sendo parecida nem com a mãe, o pai ou a irmã. Explicam que provavelmente foi ela quem escolheu voltar para esta Terra como filha da sobrinha que tanto gostava.

Dizem que sempre que alguém morre e a pessoa segue seu caminho até o céu, costumam ocorrer grandes tempestades. A chuva é uma forma de apagar seus passos aqui neste mundo, para que ao retornarem possam seguir por outros caminhos, ainda que tragam marcas de quem foram e capacidades similares. Existem relatos de crianças que, de tempos em tempos, se põe a narrar histórias do tempo dos antigos e que nunca tinham ouvido antes, ou então, reconhecem uma reza que ouvem, demonstrando os saberes que carrega consigo e a antiguidade dessa alma. Há também, exemplos de pessoas que foram rezadores(as), que tinham o espirito forte, e que ao retornarem trazem consigo na bagagem a sabedoria que outrora detinham (cantos-rezas, remédios do mato, etc.), entretanto, segundo explicam, é essencial fazê-la circular, e para isso, passam pelos aprendizados necessários a qualquer pessoas: saber ouvir, falar, calar. Toda criança passa por isso, porque ao reencarnar pode retornar com sabedoria, mas os modos de passar adiante e os caminhos que percorrem variam e vão depender também daqueles com quem convivem, do lugar ocupado por ela entre os parentes, e da família que se colocou à disposição para recebê-la nesta Terra. Por isso não se volta a mesma pessoa, apesar de, segundo explicam meus interlocutores, ser praticamente os mesmos corpos-espíritos. As marcas que trazem consigo são uma forma de serem reconhecidos pelos parentes, de mostrar que outrora viveram nesta Terra e que estão de volta, para começar tudo de novo!

Nota-se por suas narrativas que com os corpos-espíritos que circulam entre Ywy Marangatu e esse patamar terrestre, circulam também saberes e poderes, capacidades, que retornam por outros caminhos, apesar de que como vimos, eles não se fechem com a morte da pessoa, visto que aqueles que já faleceram continuam a enviar mensagens aqueles que aqui estão. Vale lembrar, ainda, que se trato de outros caminhos, é por se tratar de outras pessoas, dado que, como apresentado no capítulo anterior, pessoas também são caminhos. É importante frisar que apesar de estrar abordando agora a circulação das pessoas pós-morte, é possível realizar tais deslocamentos em vida, por exemplo, durante os sonhos, como apresentei anteriormente e sobre os quais retomarei mais adiante.

Essa discussão também me remete ao que fora apresentado por Ramo Y Affonso (2014), que aponta que entre seus interlocutores guarani, são comuns as referências a circulação constante do nhe’e (alma, principio vital) entre o patamar terrestre e o patamar celeste, e às outras relações constituídas pelo nhe’e no amba (“lugar onde vivem as almas”)

que permitem que tragam consigo a memória de uma vida anterior à sua chegada nesta Terra e que, segundo a autora, é sempre reatualizada, pois “[...] ele continua indo e voltando do amba de Nhanderu” (RAMO Y AFFONSO 2014: 202). Esses deslocamentos do nhe’e, segundo Ramo Y Affonso, são o que torna possível a vida, entendendo que a morte de fato, ocorre apenas quando o nhe’e desiste de voltar de uma dessas suas viagens ao amba. Nas palavras da autora:

[...] o trânsito do nhe’ë, a sua capacidade de movimento, de ir e voltar, que

permite a troca em que consiste a vida, a sobrevivência. Quando o nhe’ë não

quer mais transitar por certos caminhos, aqueles que relacionam as plataformas celestes dos Nhanderu e a plataforma terrestre, a morte se achega. É quando ele diz: ‘Eu não quero mais voltar’. A distância entre o

nhe’ë e o corpo se torna absoluta, porque passa a ter uma medida fixa; a

morte como inércia ou ausência de movimento [...] (RAMO Y AFFONSO 2014: 242).

Ainda que a autora esteja, aqui, se referindo ao movimento constante de nhe’e e não exclusivamente a um período pós-morte, suas afirmações, de certa maneira, vão ao encontro também do que dizem as famílias tupi guarani acerca da reencarnação, pois os parentes antigos ao voltarem para esta Terra, na figura de pessoas outras, abrem novos caminhos para os saberes, colocando-os mais uma vez em movimento, em circulação. E mesmo aqueles que optam por não voltar a esse patamar terrestre continuam a circular durante os sonhos de Ywy Marangatu para esta Terra, guiando aqueles que aqui estão, trazendo sabedoria, indicando caminhos ou, como afirmou Ramo Y Affonso (2014), possibilitando a vida. Diferentemente do que apresenta Pissolato (2007), que afirma que o nhe’e nunca sai do corpo e, por isso, o deslocamento das pessoas ocorre apenas por meio da concentração, estar pensando em Nhanderu, à escuta do que lhes contam as divindades. 183