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Os cuidados durante a gestação e no pós-parto

CAPÍTULO 3 – FAZENDO E FORTALECENDO PESSOAS

3.1. Modelando corpos-espíritos

3.1.1. Os cuidados durante a gestação e no pós-parto

Os cuidados com as pessoas e seus corpos-espíritos se iniciam ainda com a criança no ventre da mãe, a qual deve, dentre outras coisas, evitar brigar com o marido, sentir ciúmes ou ficar com raiva (pochy). Ao ouvir durante uma discussão palavras cheias de raiva e ao sentir a agitação da mãe, a criança pode desejar ir embora, o que pode gerar um aborto, visto que quando as almas/espíritos que habitam Ywy Marangatu (Terra Sagrada) optam por descer através dos raios de sol e residir nesta Terra, procuram por lugares onde possam se alegrar. Cabe mencionar, que esses cuidados não são limitados às mães, já que os pais também devem tomar algumas precauções que incluem, por exemplo, evitar dizer perto da criança que não era a hora certa dela vir. Isso a entristeceria, e sua alma poderia desejar partir, o que deixaria o corpo vazio, e esse não seria capaz de ficar de pé. Dizem que isso acontece porque mesmo antes de nascer o espírito da criança já está nesta Terra, em busca de uma família desejosa para recebê-lo. Pierri (2013a: 177), traz relatos semelhantes a esses em sua etnografia sobre alguns Guarani-Mbya, para os quais, antes mesmo da fecundação, o nhe’e da criança já se encontra na Terra, foi enviado pelas divindades e está à espreita de um corpo para se assentar. Depois de encontrar o corpo que irá recebê-lo, como aponta Mello (2006), é a família que

134 Clastres (1990) já havia apontado entre alguns Guarani-Mbya o lugar da palavra enquanto substância, assim

como meus interlocutores, que a apresentam como parte daquilo que os produz enquanto humanos e, também,

parentes. Gow (2003), da mesma forma, nos coloca questões interessantes ao apresentar a palavra, os afetos e a

memória como substâncias em suas discussões acerca do “fenômeno ex-cocama” (GOW 2003: 58). O autor aponta que a constituição e transformação dos corpos se da por meio do compartilhamento de palavras, alimentos e doenças, dando a esses diferentes “tipos de coisas” o mesmo estatuto, o de substância, deslocando nossas ideias do que poderíamos classificar como material e imaterial (NUNES 2012: 186).

deve se responsabilizar pela “sedução do nhe’e”, oferecendo a ele elementos que o faça desejar permanecer neste patamar terrestre, se assentar definitivamente (MELLO 2006: 144)

135. E conforme apresentam Pissolato (2007) e Pierri (2013a), até o momento em que as

crianças começam a engatinhar e a proferir as primeiras palavras, seu nhe’e encontra-se totalmente fora do corpo, apenas quando a fala se torna frequente é que o nhe’e se acomodou de fato, e isso é o que faz com que a crianças fiquem com o corpo duro, ereto. 136 Formulação similar àquela apresentada por meus interlocutores tupi guarani, lembrando o paralelo possível que apontei no capítulo anterior entre o nhe’e (enquanto linguagem) e o nhe’eng (palavra/ capacidade de comunicação), os saberes, que as divindades enviam a essas famílias tupi guarani e que são responsáveis, em conjunto com outros cuidados, pelo fortalecimento das crianças, bem como, pela modulação e nutrição de seus corpos-espíritos. Em suma, por colocá-las efetivamente de pé, já que a fala costuma coincidir com os seus primeiros passos.

Entretanto, como apresentei no capítulo anterior, e ao contrário do que ocorre entre outros povos guarani, a palavra (nhe’eng) não é compreendida por meus interlocutores, pelo menos a partir do meu entendimento limitado da língua, enquanto sinônimo de “alma”, “alma- palavra”, ou “princípio vital”, apesar de, juntamente com nhanderekuaá (nosso espírito) ser parte importante daquilo que coloca a pessoa de pé. Nhe’eng se constitui, aqui, enquanto uma capacidade de comunicação que envolveria, não só o ato da fala, mas também a escuta, a dança, o canto, dentre outras coisas, como já havia apontado Montardo (2009) entre alguns Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Dessa forma, espírito e capacidade de comunicação estariam relacionados de tal maneira, que é possível afirmar que se há nhe’eng é porque se tem nhanderekuaá e vice-versa. 137

135 O envio do nhe’e antes mesmo da concepção, segundo Pierri (2013a), é o que explicita as narrativas sobre

existência de um pássaro denominado Mitã Jaryi (Avó dos bebes) que alerta sobre a presença de um novo nhe’e,

e sobre a chegada de uma nova criança. No caso das famílias tupi guarani, esses anúncios da chegada de um bebê costumam se realizar em sonhos, através de uma maritaca ou papagaio, possibilidade essa, também apresentada pelo autor ao tratar de alguns Mbya.

136 Algumas etnografias sobre os povos guarani (MELLO, 2006, PISSOLATO, 2007, PIERRI, 2013a, dentre

outras), dão conta de que o nhe’e do bebê ainda não está totalmente conectado a seu corpo e costuma seguir seu

pai em suas andanças, por esse motivo, o pai deve evitar andar na mata, caçar, dentre outras atividades que pode fazer com o que nhe’e da criança se perca, levando-a a morte. Entre os Tupi Guarani, as restrições também se

estendem as mães dos recém-nascidos. Se essas se distanciarem deles, fazendo com que os bebês sintam saudades, é possível que sua alma as acompanhe, o que leva ao adoecimento e em alguns casos até à morte.

137 Sobre o termo que utilizam na língua tupi para falar a respeito de seus espíritos, além de D. Juraci, indicada

na aldeia como pessoa fluente no tupi antigo, que me disse desconhecer o uso de nhe’e como alma, uma senhora

que conheci na aldeia Karugwá, oriunda da T.I. Laranjinha (PR), enquanto contava-me sobre os antigos

Nimongarai, relatou-me algo semelhante. Enfatizando, sobretudo, as diferenças nas questões linguísticas, já que

É pelo fato da palavra ser algo que dá corpo que é necessário prestar atenção ao que é dito nas conversas com aqueles que ainda não se puseram de pé, durante a gestação de uma criança, pois a palavra enquanto substância em movimento, que circula dentro e fora das pessoas, também é responsável por dar forma ao feto, além de fazer com que se alegrem e não adoeçam, sendo ela também um elemento de “sedução da alma” 138. Explicam que quando

uma mulher está grávida, além da raiva e do ciúme, devem ser evitados comentários acerca do possível temperamento do bebê, suas características físicas, ou sobre seus pais. Deve-se evitar, por exemplo, comentar sobre manias ou comportamentos de outras crianças que desagradam aos pais, pois o bebê pode escutar e ficar assim. Isso também se estende às características físicas da criança e, por isso, evitam comentários como: que olho estranho! ou que perna torta! A criança ao nascer pode apresentar tais atributos, pois o que é dito também contribui para moldá-las.

Quando pequenas ainda é comum que sejam dirigidas às crianças falas relacionadas à sua beleza nos modos de ser, à sua força ou à sua saúde, que juntamente com a alimentação é o que possibilita que elas cresçam fortes (mbaraeté). Conforme as formulações das famílias tupi guarani, a palavra que Nhanderu lhes envia costuma entrar pela cabeça da criança, através da moleira (fontanela) ainda aberta. E o início do processo de fechamento da moleira costuma coincidir com as primeiras palavras proferidas pelas crianças, normalmente termos que utilizam para se referir aos parentes (pai, mãe, avó, etc.), ou questões relacionadas a seus cuidados pessoais como pedir água ou dizer que esta com fome. É também nesse momento que as crianças se colocam definitivamente de pé, ficam durinhas, e se tornam capazes de andarem sozinhas, o que garante a elas certa autonomia. 139

A moleira, segundo explicam meus interlocutores, fecha-se por volta dos seis anos que é quando a criança adquire efetivamente o domínio da fala e passa a proferi-la de maneira mais precisa e direta. Neste período devem evitar que a criança sofra muitas quedas e bata com a cabeça no chão. Explicam que se baterem muito a cabeça quando crianças se tornam adultos caducos, doidos, não falam nada com nada. O que nos indica aqui, uma dificuldade na comunicação, no ato de compreender e proferir as palavras. Quando aprendem a falar e,

138 A noção de “sedução da alma” aparece, por exemplo, nos trabalhos de Mello (2006) e também no trabalho de

Ramo Y Affonso (2014). Essa última apresenta a “sedução” como elemento fundamental, tanto para a caça quanto para o parentesco, onde seduzir envolve, no caso do parentesco, convencer a ficar junto, “acostumar-se” (Jepokuaa) (RAMO Y AFFONSO 2014: 94).

139Ramo Y Affonso (2014), apresenta em sua tese algumas questões interessantes relacionadas à “palavra” e

seus múltiplos desdobramentos, de substâncias a pessoas. Dentre algumas de suas afirmações a autora aponta que “palavra” já é relação, e “[...] ayvu e nhe’e são também pessoas”. E mais adiante afirma que a “palavra” é lugar da potência “[...] palavras em movimento, a ensaiar traduções e transformações das mais diversas” (RAMO Y AFFONSO 2014: 368-369).

consequentemente, a andar, além da autonomia adquirida que garante que não permaneçam onde não tem vontade, as crianças já vão aprendendo a forma desejável de se portar com os parentes e a maneira correta de se dirigir a eles e também às divindades, dando continuidade, ao longo de toda vida, ao processo que se iniciou antes mesmo do nascimento. E assim, como apresentei anteriormente, é possível notar que os cuidados com e pela palavra, mesmo na fase adulta, não cessam, e que o “corpo duro” e “ereto” de que falam, por exemplo, Pissolato (2007) e Pierri (2013a), implica, além da fixação do nhe’e, na possibilidade de se relacionar de maneira mais efetiva com os parentes e com Nhanderu, fortalecendo uns aos outros através da troca de palavras e, consequentemente, da boa sabedoria implicada nessa troca. 140

Logo após o nascimento, já se iniciam todo um novo conjunto de cuidados. Por exemplo, ao deixarem o hospital, pois os partos são realizados na Santa Casa de Itaporanga, a maioria das crianças sai portando uma fita vermelha que fora amarrada em um dos braços pela mãe ou pela avó. Essa fita deve permanecer até que a criança comece a andar, e tem como intuito evitar mal olhado, o que resultaria no adoecimento do recém-nascido.141 É recomendado também, que o umbigo seco da criança seja enterrado para que ela deseje permanecer na Terra, trazendo-lhe sorte e força. Pode-se ainda, dar o umbigo seco da criança a uma vaca, para que ela ao comer e defecar fixe a criança nesse mundo, o que contribui também para que se torne uma criança tranquila. Outra opção, igualmente relacionada ao umbigo do recém-nascido, é enrolá-lo em um pedaço de tecido e guardá-lo na carteira do pai, o que acalmaria a criança quando distante dele, evitando que sintam saudades e que cresçam desobedientes.

Também não é aconselhável manter dentro de casa animais pequenos, ainda em fase de amamentação (como cachorros, gatos, etc.). Alguns, durante a noite, têm por hábito mamar no lugar das crianças sem que a mãe perceba, o que pode fazer com que a criança cresça fraca, sem leite. Certa vez, enquanto discutíamos a respeito da importância da amamentação,

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Ainda sobre o “fazer-se duro”, de maneira similar ao que aponta Gallois (1988: 202) para os Wajãpi, até que a criança comece a falar ela é considerada “mole”, expressão que, como afirma a autora, não diz respeito apenas à estrutura física da pessoa, mas sim a seus princípios espirituais, que devem ser constantemente amarrados ao corpo para que não queiram partir, da mesma forma como ocorre entre as famílias tupi guarani.

141 O uso da fita vermelha como forma de neutralizar os perigos a que um recém-nascido está suscetível me

remete a algumas etnografias como as de Gallois (1988) e Lagrou (1998), onde descrevem o uso entre seus interlocutores de pinturas corporais após o nascimento, sobretudo com o urucum. A pintura de urucum, no caso kaxinawa apresentado por Lagrou (1998: 92), seria uma forma de neutralizar, por imitação, o sangue da mãe que cobriu a criança na hora do nascimento. Já no caso Wajãpi apresentado por Gallois (1988: 202), o urucum “[...] tem a propriedade de neutralizar os princípios cósmicos perigosos para as crianças, que não podem controlar suas relações com o sobrenatural”. Explicação similar a de meus interlocutores tupi guarani sobre o uso das fitas vermelhas nos braços da maioria dos recém-nascidos.

contaram-me a história de uma mulher que decidiu ter em casa uma cobra, mesmo sendo advertida que se tratava de um animal antissocial, que não fora criado para viver entre as pessoas. Ela ficava debaixo da cama, em um cesto, e quando esta ia amamentar seu filho a cobra emitia um som com seu chocalho que fazia a mãe da criança adormecer e, então, subia no lugar do bebê e deixava a ponta de sua cauda para que a criança pegasse, como se fosse os seios da mãe e, assim, o bebê não chorava, evitando que a mãe acordasse. A criança depois de dias sem ser amamentada começou a enfraquecer, quase morreu. Até que finalmente, a mãe achando estranha a forma que o bebê mamava em seu seio, despertou de seu sono e viu que sobre a cama estava a cobra e não o seu filho. Depois disso, nunca mais se criou bichos em casa junto das crianças pequenas, e aprenderam que não devem deixar as crianças sem o leite da mãe, pois este é um dos elementos que garante sua existência neste mundo.

O leite materno para os Guarani, como Mello (2006) já havia apontado, é fundamental para garantir a permanência da alma da criança nesta Terra e, por isso, se a mãe não tiver leite o bebê deve ser amamentado por uma de suas tias materna ou avós. Dessa forma, nota-se que “[...] a importância do leite materno extrapola a esfera nutricional ou fisiológica do corpo e está diretamente ligada à formação da pessoa no sentido espiritual” (MELLO 2006: 145). Além da permanência da alma da criança nesta Terra, através da alegria trazida pela ingestão do o leite materno, sendo ele um dos elementos de “sedução” dessa alma, também explicam, que o leite contribui com a formação dos ossos da criança, o que está diretamente conectado ao endurecimento de seu corpo. Quando uma mãe por algum motivo fica sem leite e deixa de amamentar seu filho, é recomendado que procure por alguém que o faça ou, então, que recorram a algum remédio do mato, chás e banhos de ervas que fazem com que o leite volte a ser produzido. Se for o caso de procurar uma ama de leite, é necessário que esta esteja vivendo o mesmo período do pós-parto, ou seja, se a mãe do recém-nascido encontra-se no período da dieta, é recomendável que sua ama de leite também esteja, pois amamentar um recém-nascido com leite de uma mãe, que fora do período de resguardo, já se alimenta com alimentos diversos (carne vermelha, sal, limão, etc.) pode fazer com que a criança sinta cólicas e venha a ter problemas na constituição de seu sistema digestivo.

Explicam que o olho gordo, traições do cônjuge, ou alimentação inadequada da mãe, como por exemplo, o consumo de carne de porco ou limão, pode fazer com que o leite seque ou que seu sabor seja alterado, o que leva a criança a rejeitar os seios da mãe. Ainda com relação ao leite materno, afirmam que não é indicado que mulheres menstruadas sentem-se na cama onde dormem as mulheres que estão amamentando, o sangue da menstruação e seu cheiro forte, também fazem o leite escassear. O que demonstra que os corpos e as substâncias

que os constituem se afetam mutualmente, ou como nos apresenta Lima (2000), “[...] os corpos se definem primeiramente por suas relações com outros corpos, cada um dos quais dependentes também de suas outras relações imanentes” (LIMA 2000: 11).

A preocupação com produção do leite materno é algo anterior à gravidez, as meninas desde muito pequenas eram estimuladas a colocar sobre os seios pequenos tatuzinhos, conhecido popularmente como tatuzinho-bola, e que costuma se esconder sob pedras onde há grande humidade no solo. As meninas deveriam andar em círculos em torno do buraco onde se encontram os bichinhos, cantando um mborei em reverência a eles para, posteriormente, assoprando no interior do buraco, fazê-los sair. Esses tatuzinhos eram colocados nos seios das meninas com intuito de sugá-los para que se abrissem e, assim, durante a gravidez, produzissem leite em abundância. Marcílio, no entanto, contou-me que tal costume não vem sendo praticado pelas meninas, que tem vergonha de fazê-lo. Explicou ainda, que quase não cantam o canto-reza direcionado a esse bichinho, apesar de necessário, pois na sua ausência o leite das meninas escassearia.O canto na língua tupi diz: Mandavy kyvy kyvy'i / Mandavy kyvy kyvy'i /Mandavy kyvy kyvy'i /Ero tori, ero tori tori /Ero tori, ero tori tori /Ero tori, ero tori / Ero takua, ero takua takua / Ero takua, ero takua takua Ero takua, ero takua.E conforme explicou-me Marcílio, Mandavy kyvy kyvy'i é o nome do tatuzinho-bola, e esse canto é uma saudação a ele, bem como uma forma de lembrar as meninas da presença de Nhanderu e da necessidade de tocarem o takuapu, bastão de ritmo utilizado pelas mulheres durante os cantos em apresentações e nas casas de rezas. Sendo essa, também, uma forma de fortalecer essas meninas. 142

Além da preocupação com a não escassez do leite depois do nascimento da criança, também há outras prescrições pós-parto que devem ser seguidas e que são dirigidas aos seus genitores, e que têm como intuito evitar não só o enfraquecimento das crianças, mas também dos próprios pais e mães, bem como, dar continuidade a seu processo de fabricação. Os pais devem evitar percorrer longas distâncias nos primeiros meses após o nascimento da criança, pois ela sente falta, pode desejar ir atrás de seu pai, o que faz com que adoeça de saudades. As crianças quando passam por isso na infância e mesmo se curando das possíveis doenças, podem se tornar crianças enjoadinhas, que choram por qualquer coisa. Explicam ainda, que devido à proximidade entre a criança e seu pai, a saudade do recém-nascido nesse período é a

142 Acompanhei a gravação desse canto e sua explicação por Marcílio em 2007, durante os trabalhos do Grupo

Técnico (GT) da FUNAI. A gravação foi realizada pela Prof. Dra. Niminon Suzel Pinheiro, que participava como Etno-historiadora no processo de regularização fundiária. É possível encontrar tal canto também no álbum

Ñandere Reko Arandu – Memória viva Guarani (2000), com a fala do Cacique Xeromõi João da Silva Verá Mirim da Aldeia Sapukai.

mesma de seu genitor e, em razão disso, a criança não é a única que pode ser afetada por doenças. Quando estava na aldeia acompanhada de uma mulher recém-mãe e que passava por uma separação, eram constantes suas observações relacionadas ao bebê que acordava durante a madrugada no mesmo horário que seu pai costumava acordar, o que ocorria com frequência, mesmo na sua ausência. Diziam que a criança sabia que mesmo longe ele estava se levantando. Também não pude deixar de notar que chegando ao fim da tarde, quando seu pai vinha visitá-lo, antes mesmo que ele chegasse, o bebe já ficava agitado, ao que sua mãe dizia: parece que ele (apontando para o bebê) já está vendo ele (pai) na entrada da aldeia. O casal está vivendo junto novamente e a criança não desgruda de seu pai, o que se justifica, segundo a mãe da criança, pelo medo do bebê que se lembra de quando este foi embora e da saudade que sentiu. Vale notar, que nesse período, o pai da criança começou a emagrecer e vivia abatido, ele sentia não só o sofrimento de seu bebê recém-nascido, mas dos outros filhos que naquele contexto também adoeceram de saudades. E por isso, há de se considerar que pós- parto é também um momento de vulnerabilidade dos genitores da criança, que ficam suscetíveis, tanto quanto ela, ao olho gordo, às simpatias, ou aos bichos noturnos que circulam pela aldeia. 143 Alias, afirmam que a separação do referido casal fora causada por um feitiço, realizado por uma benzedeira não indígena a pedido de uma jovem, também não indígena, e que o atingiu por estar vivendo um período de vulnerabilidade. No geral, tenho a impressão que isso ocorre pelo fato do casal encontrar-se uma zona fronteiriça em que estão se transforando de marido e mulher em pai e mãe, o que implica não só em alterações nos seus modos de relação, mas em seus próprios corpos-espíritos, ou seja, nas relações que os constituem, como pretendo demonstrar em seguida, ao tratar do resguardo das mães. Lembro ainda, que apesar do resguardo da mãe, ou a dieta, ser cumprida pela maioria das mulheres,