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CAPÍTULO 3 – FAZENDO E FORTALECENDO PESSOAS

3.1. Modelando corpos-espíritos

3.1.4. Uma breve nota: o corpo-espírito do rezador

Ao tratar do fortalecimento das pessoas e das condições atuais de vida que o dificulta, se comenta muito acerca dos corpos-espíritos dos antigos rezadores (xamãs ou pajés) como um ideal a ser alcançado ou minimamente seguido. Um rezador tem que ser leve e, por isso, é recomendado a ele o consumo apenas de comidas sagradas, aquelas que enviadas pelas divindades são capazes de brotarem sozinhas. Como já foi dito, antigamente, os Tupi Guarani não possuíam o hábito de comer arroz, açúcar, doce e também o feijão (kumandá), esse, quando consumido, não era o mesmo que costuma constar nas cestas básicas, mas outro, fruto das sementes que no começo do mundo Nhanderu colocou à sua disposição. Sobre as sementes, D. Juraci sempre conta a história de uma rezadora, que inspirada por Nhanderu soube que receberia sementes verdadeiras, as quais nunca estragariam e jamais deixariam de brotar, possibilitando o cultivo permanente da comida de verdade. Contam que ao ouvir essa

revelação e tomada de alegria, a mulher se pôs a dançar e rezar durante toda a noite e, enquanto rodava em meio às pessoas, de sua saia longa caiam sementes por todos os lados, de todas as formas e tamanhos. Porém, dizem que tais sementes foram se perdendo com o passar do tempo, as pessoas não se preocupavam em guardar, pois com os mercados era mais fácil comprar os alimentos do que plantar. D. Juraci conta que parte dessas sementes ainda existe em algumas aldeias, sobretudo as sementes do milho verdadeiro dos Guarani, um milho cor de rosa que pude conhecer em uma das casas, onde havia uma espiga que viera de outra aldeia, e que seria usada para plantio.

Ao trazerem exemplos de antigos rezadores, nos momentos em que discursam sobre a maneira como viviam os antigos, as famílias tupi guarani costumam narrar sempre a história de um rezador que, segundo seus relatos, morava com sua esposa e filhos no rio Silveira. Nessa época tudo aquilo que plantavam pela manhã, mal chegava o fim da tarde, já podiam colher. Como a comida era abundante e não necessitavam, como ocorre atualmente, exercer outras funções (professor, agente de saúde, etc.), tinham tempo de viver pensando em Nhanderu, foi assim, que o referido rezador soube que um dilúvio se aproximava. Ele avisou a todos de sua aldeia, porém, apenas alguns o seguiram, aqueles que acreditaram no que Nhanderu tinha lhe revelado, e que conseguiram enxergar o caminho que no dia seguinte, as seis da manhã, desceu pelo raio de sol. Caminho que se fez bem na borda do mar e que fora aberto por Nhanderu para levá-los para Ywy Marãe’y (Terra sem Males), lugar onde poderiam continuar vivendo e se alimentando com a comida sagrada. O rezador seguiu na frente e, em seguida, todos foram subindo em fila por esse caminho. O rezador durante a subida aconselhou sua esposa a não olhar para trás, e não se preocupar com a roça que haviam feito, pois para onde estavam indo não precisariam plantar, era um lugar bonito, onde poderiam se alegrar. Nesse patamar terrestre só sobrariam aqueles que não acreditavam em Nhanderu e que não confiavam em sua força de fazer crescer as coisas. Entretanto, apesar de suas recomendações a mulher olhou para trás e foi, por essa razão, transformada em uma estátua de pedra. E como estava grávida, essa pedra que se encontra no litoral do estado de São Paulo, tem atualmente o formato de uma mulher com barriga. Já os filhos do casal seguiram o pai pelo caminho, porém quando o mais velho começou a subir ele já estava se fechando, para chegar mais rápido à sua abertura, a criança saltou apoiando-se em uma pedra, lugar onde, até hoje, se encontram as marcas de seus pés.

Explicam que nos dias atuais as pessoas não sobem mais dessa maneira, seus corpos são enterrados, ficam nesta Terra. Isso acontece, pois comem qualquer coisa, vivem de qualquer jeito, falta-lhe terra, falta-lhes força e, por isso, perderam a fé. Se hoje houver o

desejo de alguém em se tornar rezador o primeiro passo a ser seguido é fazer um corpo- espírito saudável. Um rezador, dizem, é gente de fé e de corpo são. D. Juraci narra com frequência histórias da vó Pipoca, que foi uma grande rezadora e viveu até os 106 anos, pois ela vivia ouvindo Nhanderu e se alimentava apenas de batata e mandioca assada, acompanhada de carne de caça. E segundo explica, foi justamente essa dieta que fez com que ela trabalhasse e vivesse até essa idade. Cento e seis anos era o que constava em seu registo de nascimento, porém, é de conhecimento de todos que ela era mais velha. Nunca se pode saber ao certo a idade de um rezador ou rezadora, devido à força de seus corpos-espíritos, a idade nunca corresponde ao que nós vemos. Parecem jovens, porém já são muito velhos e cheios de sabedoria.

A partir dessas narrativas é possível refletir sobre algumas questões. Um rezador, como pretendi demonstrar, deve possuir um determinado tipo de corpo-espírito a fim de se fazer forte, o que possibilita que mantenha uma forma de comunicação privilegiada com Nhanderu. Viver como os deuses, com o intuito de se aproximar deles. Todavia, ser ou não ser rezador ou rezadora não é uma função restrita a determinadas pessoas, sendo, portanto, um estado variável, posto que aquele que hoje é reconhecido como rezador, amanhã pode deixar de sê-lo. Pissolato (2007), nos fala que tal capacidade depende do reconhecimento por parte da comunidade, o que o legitimaria, mesmo que temporariamente, enquanto rezador ou ainda, nas palavras da autora:

[...] se por um lado, só é xamã quem recebe dos deuses capacidades para agir como um especialista na cura e/ou reza; seus poderes e conhecimento não podendo ser transmitidos por outros xamãs. Por outro lado, só permanece xamã, quem persiste na prática de disponibilizar seus poderes de cura e reza ao longo de um período, e tanto mais, se nesta atividade tronar-se reconhecido e mantém-se com o passar do tempo (PISSOLATO 2007: 348).

A autora também afirma que assumir “[...] a posição de xamã não é algo decorrente de um processo transformador da pessoa que o faz” (PISSOLATO 2007: 348), entretanto, suponho que não se trata somente de uma questão de reconhecimento sobre a sua eficácia ao “disponibilizar seus poderes”, ou apenas de “inspiração”, tal qual propõe a autora, mas passa também pelas transformações da pessoa, de seus corpos-espíritos e, consequentemente, de suas capacidades, incluindo aqui a capacidade de inspirado, ouvir Nhanderu. E assim, concordo com Pissolato (2007: 345-346) quando afirma que não existem técnicas de iniciação de um rezador ou xamã, mas discordo quando diz que não há transformação da pessoa envolvida nesse processo, visto que, segundo afirmam meus interlocutores, é preciso fazer um outro corpo, fortalecer seus espíritos. O que ocorre por meio do consumo de alimentos

sagrados, da concentração e do convívio com os parentes, o que possibilita que se aproximem das divindades e, assim, recebam saberes e poderes, os quais usarão na cura, na fabricação dos remédios do mato, na escuta e transmissão de nomes, dos aconselhamentos e também dos mborei (cantos/reza). 155 Lembrando que qualquer um pode ser apontado como rezador ou rezadora, desde que sejam pessoas que sigam determinadas prescrições que, em resumo, se referem à maneira como modulam seus corpos-espíritos e que, também, diz respeito, como vimos anteriormente, às relações entre aqueles que vivem juntos. Os saberes estariam, segundo as formulações de meus interlocutores, disponíveis a todos, se revelando para aqueles que se colocam a escuta de Nhanderu, a qual é facilitada quando se vive como os antigos, mais próximos da maneira como ensinam as divindades. Entretanto, são os parentes que costumam apontar aqueles que têm o espiritual desenvolvido, não havendo quem se identifique com tal função ou assuma, espontaneamente, possuir determinadas capacidades. Algo comum nas etnografias sobre os povos ameríndios, a exemplo de Fausto (2001) e suas discussão a respeito do sistema xamânico Parakanã, sobre qual afirma que ainda que haja um sistema xamânico em operação, não há xamãs entre eles, não há “[...] especialistas que desempenham a função pública de pajés, nem pessoas a quem se atribua um poder de cura estável e definitivo” (FAUSTO 2001: 336). 156

Em suma, o que faz um rezador(a) é seu corpo-espirito forte que possibilita uma comunicação mais efetiva e contínua com Nhanderu, porém é uma função que pode ser assumida por qualquer um e, como afirmei anteriormente, aquele que hoje é apontado como um rezador, amanhã pode deixar de sê-lo. E assim, o que o define não é o que ele é, enquanto algo fixo, mas o que ele faz. Esse é o caso, por exemplo, de uma parenta de D. Juraci que vive na T.I. Araribá ou dela própria, que a depender do contexto é chamada a realizar uma reza. Enquanto ela afirma que tem o espírito fraco, por não viver mais da forma como ensinavam seus parentes antigos, outros a apontam como uma pessoa de espiritual fortalecido,

155

Apesar de não falar em transformação da pessoa ou iniciação xamânica, Pissolato (2007: 246) apresenta algumas formulações de seus interlocutores que dão conta que o petÿgua (o cachimbo) é uma forma de treinamento para pajé. E como afirma Testa (2014) e Ramo Y Affonso (2014), o tabaco se constitui enquanto alimento do nhe’e, aquilo que o fortalece. Suponho assim, que o petÿgua ou o tabaco, é capaz de transformar um espirito fraco, em espirito forte, o que indicaria, ao contrário do que afirma Pissolato (2007), a presença de

transformação da pessoa ao longo do processo de assumir, mesmo que temporariamente, a função de rezador.

156 Sobre o conceito de revelação abordado aqui, ver, por exemplo, o trabalho de Montardo (2009). A autora nos

fala que: “[...] Tanto abrir como revelar remetem a noções de que tudo já existe e está sendo aberto ou revelado para aquela pessoa naquele momento. Isso explica porquê de os xamãs não se considerarem donos do conhecimento, pois este está ‘fora’ e é revelado conforme a situação” (MONTARDO 2009: 50). Tema que retomo no próximo capítulo ao discutir a respeito daquilo que as famílias tupi guarani denominam de sonhos

conhecedora de vários mborei, uma das poucas que é capaz de viajar em sonhos para outras Terras, trazendo a eles sabedoria. Já sua parenta era reconhecida como uma grande rezadora, porém, atualmente tem consumido muita bebida alcoólica e comidas da cidade, as quais são excessivamente gordurosas; o que tem afetado suas capacidades e fazendo com que deixe de ser reconhecida como uma grande rezadora. E assim, tal função pode ser compreendida de forma relacional e contextual, e que para além do reconhecimento da comunidade que os rezadores agregam a sua volta, passa pelas transformações nos seus corpos-espíritos, como disse D. Juraci de sua parenta: hoje ela bebê, vive nos bailes, perdeu a claridade!

3.1.5. De corpos misturados: o lugar dos não indígenas na constituição dos corpos-