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E a raiva tem dono? Estados que afetam a pessoa: o perigo de acumular

CAPÍTULO 3 – FAZENDO E FORTALECENDO PESSOAS

3.2. Dos corpos outros: notas sobre as noções de nhanderekuaá e angue

3.3.1. E a raiva tem dono? Estados que afetam a pessoa: o perigo de acumular

Além das transformações (-jepota) que podem ocorrer com a pessoa, os encontros com os diversos tipos de gente que habitam os múltiplos mundos tupi guarani, também são capazes de afetá-los causando, por exemplo, tristeza, saudades (ndovy’ai) e raiva (pochy), o que faz com que adoeçam, que contraiam aquilo que denominam de doença espiritual. Esses estados da pessoa que se opõem a alegria (-vy´a) devem ser evitados no convívio cotidiano, pois a alegria, segundo explicam meus interlocutores, está diretamente relacionada às divindades e aos bons saberes que lhes enviam. Dizem que no céu, onde vivem as almas, não existe outro afeto que não seja a alegria, a qual deve ser posta em movimento, circulando entre os patamares celeste e terrestre, e também entre as pessoas que vivem nesta Terra. Dessa forma compreende-se que a alegria está relacionada ao viver juntos, e a maneira como fortalecem seus corpos-espíritos, não se tratando aqui de um estado de euforia, mas de um viver bem. Lembrando, da mesma forma que apresenta Ramo Y Affonso (2014: 91) para alguns Mbya, que alegrar, seduzir e alimentar, são a base do emaranhado de relações em que consiste o parentesco Guarani. Essa tríade, segundo a autora, é o que faz com que as pessoas se acostumem entre si e, assim, permaneçam juntas. Na ausência da alegria, como narram meus interlocutores tupi guarani, o que resta é afastamento, é a distância dos parentes. 194 Todavia, é necessário pontuar, que seduzir e alimentar também são ações cercadas de perigos, pois são formas de se acostumar, também, em mundos outros, como no local onde vivem os mortos,

194 Sobre as alegrais, Heurich (2011), em sua dissertação discute os estados de alegria Guarani, abordando

outros modos de se alegrar para além das vivencias na Opy ou do convívio cotidiano, e que dizem respeito aos estados da pessoa durante os bailes e a embriaguez. Ainda a respeito da alegria Macedo (2013) aponta para alguns Guarani que ela está relacionada diretamente à “proximidade ou distância do nhe’e, que investe o corpo de capacidades cognitivas e agentivas” (MACEDO 2013:186). O afeto alegria seria, segundo a autora, o responsável por aumentar a “potência de agir de um corpo”, enquanto a tristeza, responsável pelo afastamento do

nhe’e, diminuindo sua “potência de agir”, fazendo o corpo definhar. Ainda sobre os estados de alegria e a

maneira como influenciam as pessoas e seus corpos-espíritos, conferir, por exemplo: Gallois (1988), Macedo (2009) e Testa (2014). Um corpo leve, como apresenta Testa (2014: 234-235) não é resultado apenas de práticas rituais e alimentares, mas está também associado à alegria e a tranquilidade. E é a leveza dos corpos que permite a concentração o fazer fluir de saberes e capacidades. Gallois (1988:217) aponta, que a alegria e a tristeza são concebidas pelos Wajãpi como uma alteração no peso da pessoa, mas de maneira oposta ao que ocorre entre os Guarani, a alegria e a plenitude da pessoa são pesados. O peso aqui representa a “manutenção da sociedade, que opta por permanecer nesta terra” (GALLOIS 1988: 220). Retomando o que fora afirmado por Testa (2014), e em oposição ao que fora apresentado por Gallois (1988) para os Wajãpi, Macedo (2009) afirma que “[...] com os Guarani talvez se passe o inverso, já que o peso é um perigo e um desejo latente. Um perigo de ficar confinado nessa terra após a morte e um desejo de aqui durar” (MACEDO 2009:.235). Ainda sobre o assunto, conferir a discussão apresentada por Viveiros de Castro (1986: 476- 477) a respeito dos estados das pessoas e da saída de

kaakï hã (consciência) de seus corpos. A cólera que “cega” as pessoas, a saudade e a tristeza de um ente querido que faz com que “fiquem em outro lugar”, o desejo sexual que aproxima da raiva, dentre outros. Assim como discussões acerca da leveza e peso das pessoas a depender de seus estados.

dos quais é preciso manter certa distância, ainda que seja possível comunicar-se com eles, como apontei anteriormente.

Contam que a raiva costuma cegar as pessoas e não as deixa perceber o seu entorno, apartando-as dos parentes. Já a tristeza, acaba com a vontade das pessoas de sair de casa e leva aqueles que a sentem ao isolamento, o que pode resultar na sua morte. Assim como a saudades, sobretudo dos mortos, que leva o pensamento para longe dos viventes, transformando aquele que a sente em um ser solitário ou, como dizem, quase um morto. O que esses estados têm em comum é a maneira como, através da perda da alegria (-vy´a), geram o afastamento daqueles que vivem juntos, fazendo ainda, com que se tornem fracos. É como se nhanderekuaá (alma ou espírito) fosse, enquanto nosso pensamento, também capturado, levando assim ao adoecimento e à morte, da mesma forma como ocorre nos encontros na mata.

Algumas etnografias sobre os povos Guarani como: Macedo (2009), Testa (2014), Ramo Y Affonso (2014), dão conta de que a raiva, a tristeza, a saudades, tal qual todas as outras coisas desse mundo têm “dono”. Uma pessoa com raiva, por exemplo, pode estar sendo controlada por seu “dono”, nas palavras de Testa (2014):

[...] tais donos, uma vez mobilizados, dominariam as capacidades perceptivas, pensamentos e ações da pessoa, fazendo com que ela enxergue e ouça o que não está lá na realidade ou, melhor, o que não é perceptível às outras pessoas humanas [...] O ponto central é que alimentar esse tipo de excesso, seja em si mesmo ou em outra pessoa, traz para a cena uma relação perigosamente próxima com esses donos e, consequentemente, afasta a pessoa afetada dos modos considerados adequados de desenvolver as relações humanas (TESTA 2014: 92).

Quando movidas por raiva, preguiça, tristeza, diz-se que são seus “donos” que estão influenciando essas pessoas e, assim, como apontou Ramo Y Affonso (2014: 136), esses estados não pertencem a um universo circunscrito a pessoa, lhes são exteriores. Trata-se aqui, como apresenta a autora, de “ser olhado por”, estar sob influência de um desses “donos”. O seu olhar, segundo Ramo Y Affonso (2014), implica em uma aproximação com eles, que tem como consequência o afastamento de nhe’e, e quando esse deixa o corpo da pessoa são os “donos” e suas afecções que acabam por ocupá-lo. Por isso, em muitos contextos, não costumam responsabilizar as pessoas por determinadas atitudes ou, então, procuram “deixar de lado”, compreendendo que “estavam fora de si” quando agiram com raiva, preguiça ou ciúmes. 195 O que, em alguma medida, se afasta das formulações de meus interlocutores tupi

195 Algumas informações apresentadas aqui são pessoais, obtidas durantes minha participação, no ano de 2015,

guarani, que explicam que é pelo fato das pessoas pensarem apenas em si mesmas, não ouvir os parentes, sobretudo nos momentos em que realizam os aconselhamentos, que se colocam à disposição de outros tipos de gente e, por essa razão, podem ser afetados por eles. Suponho que é justamente por esse motivo que a pessoa não deixa de ser responsabilizada por suas atitudes, mesmo que as demonstrações de raiva, tristeza, ou ciúmes sejam resultado da influência de outros tipos de gente, foi ela, ao não se fazer disponível àqueles que vivem juntos, que se colocou à disposição de outros, de um não parente. 196

O sufixo –ja (PIERRI 2013a, TESTA 2014, RAMO Y AFFONSO 2014, dentre outros) ou –jara (MACEDO 2009), como mostrado anteriormente costuma aparecer nas etnografias sobre os povos guarani em correspondência à “dono”, seja das coisas que habitam esta Terra ou dos afetos e afecções, mas como nos apresenta Testa (2014: 88), usando como exemplo o termo Ivaija, o sufixo -ja pode se referir tanto à pessoa que está nervosa ou com raiva, quanto ao “dono não-humano” desse temperamento. Quando questionei meus interlocutores sobre os –ja, ou os “donos”, guardiões desses temperamentos, responderam me que eles não tinham “dono”, a não ser a pessoa que os sentem. Explicaram, tal qual afirmam os interlocutores de Macedo (2009), Testa (2014), e Ramo Y Affonso (2014), que, por exemplo, quando a pessoa sente raiva é porque está “sob o olhar “de algum anhã, ou angue. Porém, ao tratar de pochyja, ivaijá, não fazem referências a “donos” ou anhã específicos, mas sim às pessoas e aquilo que elas acumulam. O sufixo –ja , segundo alguns interlocutores, representa a ideia de excesso, -ja é todo aquele que acumula, sejam bens materiais, se tornando um ridicão, seja tristeza, raiva ou saudades. Se uma pessoa acumula raiva (pochy), por exemplo, diz dela que é pochyja. E é a influência de algum angue e, principalmente, de algum anhã que faz com que a acumule e, esses, como vimos, são considerados “antissociais” e “anti-parentesco”, e nada mais oposto aos modos de relações entre parentes tupi guarani que o desejo de acumular. Assim, concordo com os autores apresentados quando afirmam que a

doutorado no Grupo de Trabalho 66 (O parentesco repensado: novas perspectivas etnográficas sobre a relação) e além dos comentários mais diversos de colegas e professores, tive a oportunidade de ouvir as sugestões de Ana Ramo Y Affonso, sobre algumas questões suscitadas por minha apresentação. E foi seguindo suas sugestões que me atentei para a importância de dialogar com meus interlocutores a respeito desses afetos e seus donos. Todavia, como tal dialogo se deu de maneira tardia, já nessa fase de escrita, o que apresento aqui, não deixa de ser algo inconcluso e repleto de ausências. De qualquer forma, deixo registrado meu agradecimento à Ana por suas sugestões.

196 Sempre que há alguma situação em que a pessoa se encontra com raiva ou triste e alguém tenta lhe

aconselhar e não recebe atenção, costumam dizer frases como: Eu avisei, se ele quer ficar assim é problema dele! Ou, então, quando o conselho é seguido diz-se: Ainda bem que ele me ouviu e escolheu outro caminho, tomou alguma atitude! Nota-se assim, que haveria a possibilidade ou não de se entregar a essas afecções, de se

deixaram afetar. Percebe-se ainda, a importância dos aconselhamentos e a maneira como trazem de volta aqueles que estão distantes com seu pensamento.

pessoa é influenciada por outras tantas afecções, como vimos, ela própria é constituída por uma multiplicidade de relações, porém, não se trata aqui, pelo menos na minha compreensão, de detentores de afetos e afecções específicas, “dono da raiva”, “dono da saudade”, “dono da tristeza” e assim por diante, mas de estados da pessoa que decorrem do seu comportamento “antissocial” e “anti-parentesco” de acumular, que são resultado do fato de estarem “sob o olhar” dos anhã ou angue.197

As famílias tupi guarani explicam que raiva, tristeza, saudades e ciúmes, por exemplo, são elementos que normalmente fazem parte das pessoas, elas já têm um pouquinho dentro delas, resultado de tudo o que já experienciaram nesta Terra. Entretanto, suponho que seu acumulo e seu excesso, consequência da proximidade e influência dos anhã ou dos angue, é o que faz com que os externalizem de maneira inadequada, alterando os modos como se relacionam com as pessoas. O que nos remete mais uma vez à importância de passar adiante, de não acumular, tanto os saberes que enviam as divindades quanto determinados afetos e afecções. Quando estão com raiva são aconselhados a conversar com as pessoas a quem a direcionam, ou quando estão tristes, são estimulados a dividir suas tristezas com parentes e amigos. No momento em que acumulam raiva, por exemplo, e não resolvem suas desavenças, o que têm como resultado são brigas que podem levar não só a agressões, mas em rompimentos e mudanças de pessoas das aldeias. Já ao acumular saudades de um ente que faleceu, podem trazer para perto de si os angue, que são capazes de fazer com que adoeçam. Em razão disso, além da necessidade de passar adiante, essa discussão vem reforçar a importância de se ter corpos-espíritos fortes, para que juntos se alegrem, visto que a alegria, explicam, é capaz de repelir encontros ruins, evitando, assim, que ocorram transformações (- jepota), adoecimento e morte. Reforçando, ainda, a necessidade dos cuidados diários que costumam dedicar uns aos outros 198.

197 No entanto, ainda pode haver outras explicações possíveis se levarmos em conta que as afecções,

compreendidas, aqui, enquanto “o efeito de um corpo sobre outro”, tal qual postula Macedo (2013: 185) não possuem “dono”. E dessa forma, a maneira como os corpos-espíritos serão afetados depende da ocorrência de um bom ou mau encontro e seus efeitos na pessoa. Ou seja, pode-se encontrar com um guardião do mato, porém, ao agir da maneira como se espera nesses contextos, com respeito pelos locais que guardam e por aquilo que neles habitam, não haveria porque ocorrer retaliações que afetam negativamente as pessoas. Pois, como disse anteriormente, os guardiões acabam por causar o mal quando, por um descuido, as pessoas não se atentam aos modos de relação que o momento exige, não é essa sua intenção inicial. Lembrando também como apresenta Macedo (2013), que assim como os donos afetam as pessoas destruindo partes das relações que as constituem fazendo-as adoecer, “[...] os humanos também afetam os domínios-corpos de donos e podem destruir ou reconfigurar suas partes” (MACEDO 2013: 193).

198Formulação similar ao que apresenta Macedo (2013) para alguns Guarani. Segundo a autora hoje em dia “[...]

é quase impossível ijaguyje, mas as práticas na opy visam mbaraete, fortalecendo o corpo para durar nessa terra e não sucumbir aos maus encontros” (MACEDO 2013: 202).

CAPÍTULO 4 - XEKE RUPI...: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS SONHOS ENTRE