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Definir autismo não é tarefa fácil. Desde sempre que o autismo nos é apresentado como um mundo distante, estranho e cheio de enigmas. Leo Kanner, pedopsiquiatra austríaco no hospital universitário John Hopkins, foi quem pela primeira vez o fez em 1943, num artigo científico da sua autoria "Autistic disturbance of affective contact", publicado na revista Nervous Child, (vol. 2, pp. 217-250). Este médico estudou e descreveu a condição de onze crianças (oito rapazes e três raparigas) consideradas especiais, "(...) cujo comportamento

descreveu como sendo «marcadamente e distintivamente» diferente do da maioria das outras crianças" (Hewitt, 2006, p. 7), e que tinham em comum um "«isolamento extremo desde o início da vida e um desejo obsessivo pela preservação da rotina», denominando-as de «autistas»" (n.d.)1.

No ano seguinte, Hans Asperger, pediatra de Viena, na sua tese de doutoramento, publicada na revista Archiv fur psychiatrie und Nervenkrankheiten, apresentou um trabalho onde "(...) descreve um grupo de rapazes que tinha um QI médio ou acima da média, mas para quem era «difícil encaixar-se socialmente»" (Hewitt, 2006, p. 9). Hans constatou que estas crianças revelavam "(...) frequentemente uma preferência pelo jogo solitário, em vez de se juntarem aos jogos das outras crianças. A maior parte delas denunciava ansiedade ou perturbação se ocorriam mudanças inesperadas no seu quotidiano (...)" (Hewitt, 2006, p. 9). Verificou contudo, tratarem-se de crianças "(...) que tinham a capacidade de falar fluentemente, mas que tinham em comum uma falta de compreensão e de capacidade relativamente à importância e ao uso da conversação social" (Hewitt, 2006, p. 9). Esta forma semelhante de distúrbio, uma síndrome mais ligeira foi denominada de Asperger syndrome. Lima (2012, p. 1) afirma que Hans caracterizou a síndrome de Asperger "(...) por um contacto social inapropriado com comunicação peculiar, criando palavras originais, com pobreza de expressões faciais e de gestos e com movimentos estereotipados, inteligência normal ou acima da média".

Hewitt (2006, p. 9) refere que dos estudos decorrentes de Kanner e de Hans, sobressai porém que ambos os grupos de crianças apresentavam características intimamente ligadas, especialmente no que toca à propensão "(...) para manterem interesses obsessivos ou invulgares, e uma preferência pelas rotinas".

Em 1979 foi criada a expressão "espectro do autismo" por Lorna Wing e Judith Gould quando, através de um estudo epidemiológico realizado com 35.000 crianças, concluíram que um vasto número de crianças revelava "(...) algum tipo de dificuldade na interação social, associada a dificuldades na comunicação e falta de interesse em atividades, no entanto, não enquadravam o diagnóstico formal

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para o autismo. Nesse sentido, criaram o conceito de spectrum" (Lima, 2012, p. 1). Segundo Wing e Gould, a noção de um espectro de perturbações autísticas é baseada numa tríade de transtornos ao nível dos domínios social, de comunicação e de comportamento.

Corroborando as características até aqui apresentadas, Siegel (2008, p. 21) ilustra uma definição do autismo como sendo:

"(...) uma perturbação do desenvolvimento que afecta múltiplos aspectos da forma como uma criança vê o mundo e aprende a partir das suas próprias experiências. As crianças com autismo não denotam o interesse habitual na interacção social. A atenção e a aprovação dos outros não tem a importância que habitualmente assumem para as crianças em geral. O autismo não resulta numa absoluta ausência de desejo de pertença, mas antes na relativização desse desejo".

Em 1980 foram definidos os primeiros critérios de diagnóstico no

Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-III). Atualmente, e

a partir dos critérios constantes no DSM-IV-TR, a perturbação do espectro do autismo é definida como sendo uma perturbação global do desenvolvimento, assente num défice grave e global de três áreas do desenvolvimento: interação social, comunicação e comportamento, cujas características analisaremos mais à frente.

Segundo Siegel (2008) são várias as designações atribuídas às diferentes perturbações do espectro do autismo, sendo o "autismo" o termo mais reconhecido e utilizado de um grupo de distúrbios coletivamente designados por perturbações globais do desenvolvimento. O autismo (ou perturbação autística) é assim considerado um subtipo de uma categoria mais ampla de PGD, englobando outros transtornos como a síndrome de Asperger, perturbação global do desenvolvimento sem outra especificação (SOE), síndrome do X frágil, síndrome de Rett, e perturbação desintegrativa da segunda infância, cujas características de diagnóstico se encontram intimamente relacionadas com as de autismo.

Em suma, poderemos afirmar que a expressão "perturbações globais do desenvolvimento" constante no DSM-IV reporta-se às "perturbações do espectro do autismo" servindo estas para designar o autismo e as PGD não autistas tal como ilustram as Figuras 1 e 2. Estas figuras ilustram pois o campo do autismo em relação às várias outras PGD, clarificando igualmente as ligações de

proximidade entre o autismo e outras PGD, com as quais é por vezes confundido. Siegel (2008, p. 23) sublinha porém, que "os diagramas não podem reflectir na totalidade a exacta imbricação, ou a exacta extensão de cada um destes grupos de diagnóstico, pretendendo sim dar uma ideia geral de como vários termos usados nos diagnósticos se relacionam entre si".

Figura 1 Perturbações globais do desenvolvimento:

perturbações do espectro do autismo Fonte: Siegel (2008, p. 22)

Fonte: Siegel (2008, p. 22)

Figura 2 Perturbações globais do desenvolvimento: perturbações do

No DSM-IV-TR (2002), e como Lima (2012) igualmente nos apresenta, nas perturbações globais do desenvolvimento incluem-se a perturbação autística, perturbação de Rett, perturbação desintegrativa da segunda infância, perturbação de Asperger, e perturbação global do desenvolvimento sem outra especificação, não sendo aqui enquadrada a síndrome do X frágil tal como o era no DSM-IV. Siegel (2008, p. 39) porém, refere que "a síndroma do X frágil nem sempre é estritamente considerada uma «PGD não autista» porque, ao contrário de outras PGD, a sua causa é conhecida". Defende contudo, que a síndrome do X frágil possa ser vista como uma PGD não autista devido aos numerosos sintomas de autismo ou de PGD, como são os de comportamento.

Mas, em que consistem afinal todas estas estranhas e fascinantes perturbações do desenvolvimento que acarretam consequências para a vida? Dedicaremos a próxima secção a proporcionar uma visão descritiva suficientemente precisa quer do autismo (perturbação autística), quer de outros transtornos do desenvolvimento que se relacionam de algum modo com ele, constantes do DSM-IV-TR.