• Nenhum resultado encontrado

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 LINGUÍSTICA DO TEXTO

2.1.1 Definição de língua, texto, sujeito, contexto e interação

A partir do exposto na seção anterior, percebemos que a LT passou por um processo tanto de ampliação de seu objeto de estudo, como de proposição de objetivos distintos e, por isso, as definições de determinados termos variam de acordo com o momento em que se encontram.

Na fase das Análises transfrásticas, o texto era definido como “uma sequência pronominal ininterrupta” (HARWEG, 196814) e como “uma sequência coerente de enunciados” (ISENBERG, 197015), uma vez que seu principal objetivo era estudar as relações

14 HARWEG, R. Pronomina und Textkonstituition. Munique: Fink, 1968.

15 ISENBERG, H. Der Begrif “Text” in der Sprachtheorie. Berlim: Deutsche Akademic der Wissenschaften.

estabelecidas entre as frases de um texto, isto é, interfrasais16. Nesse momento, conforme Koch (2017, p. 19), “deu-se primazia às relações referenciais, particularmente à correferência, considerada um dos principais fatores de coesão textual”.

Harweg, citado por Koch (2017), postulou que a sequência frasal de um texto é constituída pelos pronomes, ou seja, por uma expressão linguística responsável por retomar outra expressão linguística correferencial. Por conta disso, “o texto é resultado [...] de um ‘múltiplo referenciamento’, daí a definição de texto como uma sucessão de unidades linguísticas constituída mediante uma concatenação pronominal ininterrupta” (KOCH, 2017, p. 19, grifo da autora).

Entretanto, como explicitado na seção anterior, estudiosos perceberam que um texto não era o resultado de uma sequência de frases aglomeradas, visto que a construção de seu sentido exigia muito mais do que simplesmente a soma de suas partes. Dessa forma, tornou-se necessário recorrer ao texto em sua completude, o que acarretaria na possibilidade de interpretação do texto como um todo, especialmente nos casos em que as relações interfrasais não eram constituídas pela estratégia da correferenciação.

Assim, no segundo momento, destinado à constituição das Gramáticas textuais, passou a se considerar o texto, e não mais a frase, como “unidade linguística hierarquicamente mais elevada” (KOCH, 2017, p. 22). Isso porque o texto era visto como uma sequência linear de lexemas e morfemas, os quais estavam, necessariamente, interligados. Por essa razão, para Weinrich, “toda linguística é necessariamente linguística de texto” (KOCH, 2017, p. 22). Além disso, de acordo com Bentes (2005), todo falante, em razão de sua competência textual, tem conhecimento acerca do que seria ou não um texto. Tal conhecimento, por sua vez,

não é redutível a uma análise frasal, já que o falante conhece não só as regras subjacentes às relações interfrásticas (a utilização de pronomes, de tempos verbais, da estratégia de definitivização etc.), como também sabe reconhecer quando um conjunto de enunciados constitui um texto ou quando se constitui em apenas um conjunto aleatório de palavras ou sentenças (BENTES, 2005, p. 250)

Dessa forma, todos os falantes de uma determinada língua possuiriam três capacidades (formativa, transformativa e qualificativa) que comporiam a chamada competência textual. Assim, a definição de texto estava relacionada a essa competência textual, comum a todos os usuários. Ou seja, haja vista que os falantes nativos possuiriam tais capacidades textuais, eles,

16 Ressaltamos que outras definições de texto foram propostas. Porém, apresentamos somente as mais destacadas

por si sós, seriam capazes de definir o que seria um texto ou não. Isso permitiria, portanto, a elaboração de uma gramática textual.

Porém, uma vez que não foi possível a constituição de uma gramática do texto universal, em razão de haver outros fatores influentes na produção textual, que não somente as capacidades explicitadas, essa fase não pôde ser concretizada. Assim, pesquisadores começaram a considerar os aspectos pragmáticos, não só para a produção, como para a interpretação de textos, ou seja, passaram a analisar o texto em uso. Além disso, perceberam que os indivíduos não possuíam, obrigatoriamente, as três capacidades constituintes da competência textual. Por conta disso, a teoria da LT chega a seu terceiro e atual momento.

Nessa terceira fase, Teoria do texto, busca-se investigar aspectos relacionados ao texto em uso, isto é, inserido em seu contexto de comunicação, o qual

não se restringe ao contexto linguístico entendido como o que antecede ou sucede determinada fração textual; também não se limita ao que se concebe como situação imediata ou mediata pensada em termos de uma micro ou macrossociologia, respectivamente, nem se trata apenas do que os sujeitos armazenam na memória como resultado de suas experiências, abstraindo-se os traços sociais e culturais, mas, sim, de uma conjunção de elementos de ordem linguística, cognitiva e social (KOCH; ELIAS, 2016, p. 38, grifo nosso).

A partir da citação, percebemos que o contexto é formado pela junção de três elementos. Isso significa dizer que para que a produção e, principalmente, a interpretação textual sejam possíveis, é preciso mobilizar esses conhecimentos. Nas discussões de Firth, citado por Koch (2015a, p. 24), as palavras e as sentenças não possuem sentido em si mesmas, ou seja, fora de seus contextos de uso. Isso acarreta, consequentemente, na escolha do gênero textual a ser utilizado, visto que, de acordo com Marcuschi (2008, p. 154), “a comunicação verbal só é possível por algum gênero textual”.

Não nos deteremos às questões teóricas referentes ao gênero textual17, visto que esse não é nosso escopo teórico, pois, aos nossos interesses, os gêneros funcionam como instrumentos que se encontram “entre o indivíduo que age e o objeto sobre o qual ou a situação na qual ele age: eles determinam seu comportamento, guiam-no, afinam e

17 Ultimamente, tem-se discutido muito em bancas de qualificação de pesquisas desenvolvidas na linha

Linguagem e Interação desta instituição acerca do papel do gênero textual em estudos voltados para a produção de texto, a partir da metodologia da Pesquisa-Ação. A principal inquietação é: inserimos a Teoria dos Gêneros Textuais na Fundamentação teoria ou alocamos na Fundamentação metodológica, por considerarmos o gênero textual como um instrumento, a partir do qual as atividades em sala de aula são dinamizadas? Para este trabalho, optamos por abordá-lo no capítulo destinado à metodologia, visto que o consideramos como um instrumento que possibilita o processo de ensino e aprendizagem.

diferenciam sua percepção da situação na qual ele é levado a agir” (SCHNEUWLY, 2004, p. 21).

Retomando a concepção exposta, na qual para caracterizar o contexto é necessário analisar questões que vão além das apenas linguísticas, Koch (2015a, p. 27) postula que tal termo, conforme é entendido hoje no interior da LT, envolve “não só o cotexto, como a situação de interação imediata, a situação mediata (entorno sociopolítico-cultural) e também o contexto sociocognitivo dos interlocutores que, na verdade, subsume os demais”. No entanto, a autora alerta que nem sempre essa era a definição adotada para “contexto”. Para isso, Koch apresenta duas concepções distintas que sofreram alterações conforme a teoria avançava.

Durante a fase das Análises transfrásticas, contexto era definido como entorno verbal somente – o cotexto. Porém, com o advento de perspectivas pragmáticas, marcando o terceiro momento, preocupou-se com “o estudo e descrição das ações que os usuários da língua, em situações de interlocução, realizam através da linguagem, considerada esta, portanto, como atividade intencional e social, visando a determinados fins” (KOCH, 2015a, p. 26).

Nesse momento, contexto já não era considerado apenas o cotexto, uma vez que os usuários passam a ser considerados como sujeitos ativos que, por meio da língua, agem no mundo. Todavia, isso não era suficiente, pois não se preocupava com os aspectos culturais, tradicionais, usuais e costumeiros, por exemplo, que também interferem nas relações comunicativas. É isso que faz com que, ao viajarmos para outra cultura, não possamos agir e interagir de maneira igual à que realizamos quando estamos inseridos em nossa cultura.

Por conta disso, um novo tipo de contexto surge: o contexto sociocognitivo. Tal contexto é compreendido como os conhecimentos partilhados entre os integrantes de uma situação comunicativa, pois, de acordo com Koch (2015a, p. 26-27),

para que duas ou mais pessoas possam compreender-se mutuamente, é preciso que seus contextos cognitivos sejam, pelo menos, parcialmente semelhantes. Em outras palavras, seus conhecimentos – enciclopédico, sociointeracional, procedural, etc. – devem ser, ao menos em parte, compartilhados (visto que é impossível duas pessoas partilharem exatamente os mesmos conhecimentos). Numa interação, cada um dos parceiros traz consigo sua bagagem cognitiva – ou seja, já é, por si mesmo, um contexto. A cada momento da interação, esse contexto é alterado, ampliado, obrigando, assim, os parceiros a se ajustarem aos novos contextos que se vão originando sucessivamente [...].

Percebemos que a definição atual de contexto não desconsidera os conceitos estabelecidos anteriormente, mas os complementa. Porém, além do conceito de contexto, é necessário que se estabeleça a definição de língua a ser adotada, visto que as concepções de

texto e sujeito a ela estão relacionadas. Koch (2015a) aponta três possibilidades de conceituar língua e, consequentemente, texto e sujeito:

Quadro 2 – Concepções de língua, texto e sujeito

CONC

EPÇ

ÃO

D

E

LÍNGUA Língua como representação do pensamento.

TEXTO

Texto como produto – lógico – do pensamento (representação mental) do

autor, nada mais cabendo ao leitor/ouvinte senão “captar” essa representação mental, juntamente com as intenções (psicológicas) do produtor, exercendo, pois, um papel essencialmente passivo.

SUJEITO Sujeito como senhor absoluto de suas ações e de seu dizer.

LÍNGUA Língua como código, ou seja, mero instrumento de comunicação (grifo da autora).

TEXTO

Texto como simples produto da codificação de um emissor a ser decodificado pelo leitor/ouvinte, bastando a este, para tanto, o conhecimento do código, já que o texto, uma vez codificado, é totalmente explícito. Também nesta concepção o papel do “decodificador” é essencialmente passivo.

SUJEITO Sujeito visto como (pre)determinado pelo sistema. LÍNGUA Língua vista como interacional (dialógica).

TEXTO Texto considerado como o próprio lugar de interação, no qual os sujeitos – dialogicamente – se constroem e são construídos (grifo da autora).

SUJEITO Sujeito visto como ator/construtor social, ou seja, como interlocutor ativo. Fonte: Adaptado pelas autoras desta dissertação a partir de Koch (2015a, p. 17-18, grifos nossos).

A partir do Quadro 2, percebemos que, nas duas primeiras concepções apresentadas, o sujeito não é considerado ativo durante a construção textual do outro, haja vista ser ele um ser passivo nessa relação, o qual tem como função “captar” ou “decodificar” o texto recebido. Para isso, portanto, faz-se necessário, apenas, que o sujeito, receptor e passivo, tenha conhecimento acerca do código linguístico, uma vez que, a partir disso, o texto torna-se totalmente explícito. Dessa forma, o sentido do texto é dado previamente, como algo estanque, pronto, acabado, cabendo ao receptor, apenas, decodificá-lo. Em razão disso, entende-se texto somente como produto, já que, uma vez produzido, acabado está.

Diferentemente disso, a terceira concepção de sujeito apontada considera-o, ativo, como peça fundamental durante a produção textual, visto que a compreensão é entendida como uma “atividade interativa” (KOCH, 2015a, p. 18), ou seja, deixa de ser vista como uma mera captação de uma representação da mente ou como uma decodificação da mensagem transposta pelo produtor. Isso em razão da presença dos implícitos, cuja compreensão está atrelada ao contexto sociocognitivo. Por isso, “o sentido de um texto é [...] construído na

interação texto-sujeitos (ou texto-coenunciadores) e não algo que preexista a essa interação” (KOCH, 2015a, p. 18, grifos da autora).

Assim, texto passa a ser visto como resultado de um processo, isto é, como produto de constantes e ilimitadas alterações, substituições, acréscimos, eliminações, entre outros, consequentes dos momentos de refacção. Como visto, ainda que, sob essa concepção, um texto nunca esteja totalmente pronto/acabado, ele, apesar disso, pode ser considerado, além de processo, como produto, conforme apresenta Marcuschi (2008) na Figura 1. Isso porque, embora o produtor de um texto sempre realize modificações ao revisá-lo, em algum momento, precisará considerá-lo como finalizado. É nesse momento que o texto passa a ser produto de um processo de refacções.

Em razão dessas definições expostas, o processamento de um texto, segundo Koch (2015a), em relação não apenas à produção, mas também à compreensão, depende da interação entre produtor e interpretador. Dessa forma, para que possa haver entendimento, ambos são considerados estrategistas, pois precisam mobilizar diferentes estratégias, na medida em que participam do “jogo da linguagem” (KOCH, 2015a, p. 21), a fim de construir sentido ao texto, o qual,

se constitui como tal no momento em que os parceiros de uma atividade comunicativa global, diante de uma manifestação linguística, pela atuação conjunta de uma complexa rede de fatores de ordem situacional, cognitiva, sociocultural e

interacional, são capazes de construir, para ela, determinado sentido (KOCH,

2014b, p. 30, grifos nossos).

Além desses fatores, Koch (2015a) cita a estratégia textual, a qual corresponde às sinalizações presentes na materialidade linguística. Para isso, ainda conforme a autora, são componentes desse jogo: a) o produtor/planejador; b) o texto e; c) o leitor/ouvinte. Em consonância a isso, Marcuschi (2008, p. 96), da mesma maneira que Koch, postula “os três pilares da textualidade”: autor, texto e leitor. Desse modo, o autor defende que “a produção textual, assim como um jogo coletivo, não é uma atividade unilateral” (MARCUSCHI, 2008, p. 77). Isso porque, enquanto atividade sociointerativa, envolve a tomada de decisões conjuntas.

Dessa forma, inserimo-nos, na teoria da LT, sob a perspectiva sociointeracionista, visto ser ela um “lugar de ‘inter-ação’ entre sujeitos sociais, isto é, sujeitos ativos, empenhados em uma atividade sociocomunicativa” (KOCH, 2015a, p. 21). No entanto, entendemos que, ao produzir textos, o indivíduo não interage apenas com o outro, mas, também, consigo mesmo, uma vez que, conforme Koch (2015a, p. 18), é no texto que os

sujeitos “se constroem e são construídos”. Além disso, nas palavras de Fiorin (2013, p. 30), “a linguagem é uma forma de o homem agir no mundo, porque há ações que se realizam ao dizer e ações que ocorrem em consequência do que se diz”, portanto, “‘falar é agir’ tanto sobre si, como sobre os outros e sobre o mundo” (BATISTA, 1997, p. 21-22).

A partir do exposto, adotamos, para nossa pesquisa, a terceira concepção de língua, sujeito e texto apresentada, uma vez que consideramos nossos sujeitos como seres ativos, com os quais, conjuntamente, desenvolvemos e realizamos as atividades inseridas na proposta deste trabalho, a fim de promover avanços em relação a aspectos referentes ao gênero textual debate público regrado. Além disso, compreendemos o texto como processo, e não mais como produto – como era visto nos dois primeiros momentos da LT. Isso porque o texto está em constante desenvolvimento, não alcançando seu final nunca, ainda que, por diversas razões demandadas pelas situações sociais, seja necessário finalizá-lo em algum momento.

Isso justifica, também, nossa escolha pelo trabalho por meio da Sequência Didática como aporte metodológico, sobre a qual dissertamos na subseção 3.3.2 (p. 134), já que ela possibilita que a dinamização do estudo em sala de aula ocorra de maneira gradual e processual, de modo que, a cada etapa, o aluno reforce o conhecimento já adquirido e avance, progressivamente, em relação às fragilidades identificadas.

Nesta pesquisa, elegemos como foco, além das questões referentes à argumentação, inerentes ao gênero textual selecionado, o critério da coesão textual, uma vez ser ele o responsável pela “estruturação da sequência [superficial] do texto (seja por recursos conectivos ou referenciais); não são simplesmente princípios sintáticos” (MARCUSCHI, 2008, p. 99). Como recorte teórico, tendo em vista a amplitude de tal critério, optamos por focalizar a progressão referencial, a qual se caracteriza como “aquela em que um componente da superfície do texto faz remissão a outro(s) elemento(s) nela presentes ou inferíveis a partir do universo textual” (KOCH, 2016, p. 31). Assim, na sequência, abordamos a progressão referencial com maior detalhamento, uma vez que embasará nossa análise.