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3. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA

3.1 Definição de Princípio

Para se entender o princípio da proteção à confiança, cuja atuação limitadora à mutabilidade dos contratos administrativos decorrente de atos unilateralmente perpetrados pela Administração Pública é o tema central do presente trabalho, é essencial, em primeiro lugar, referir ao sentido com que o termo princípio, polissêmico por natureza, será aqui abordado.

Há muito já se reconhece a importância dos princípios no ordenamento jurídico pátrio. Assim, embora os doutrinadores positivistas tenham por muito tempo relegado importância aos princípios e, por conseguinte, ao papel que exercem no sistema jurídico, hodiernamente, conforme ensina Juarez Freitas, "em vez da primazia das regras legais, cada vez mais no topo do sistema jurídico figuram os princípios e os direitos fundamentais"57.

Justamente por isso, mais e mais decisões judiciais vêm sendo prolatadas com fundamentação unicamente alicerçada em princípios. Algumas dessas decisões inclusive relativizam normas expressamente previstas no ordenamento.

Nesse contexto, esse fenômeno de valorização dos princípios se justifica pela análise do ordenamento jurídico como um sistema. Analisada a questão sob este vértice, conclui-se que o ordenamento jurídico, para sustentar esse status de sistema normativo, deve necessariamente possuir organização, harmonia interna e preceitos que funcionem como sinalização dos caminhos a serem tomados pela hermenêutica das normas nele inclusas. Com efeito, no ordenamento jurídico pátrio, são os princípios os responsáveis pelo cumprimento desse papel.

Sobre a organização do sistema jurídico pátrio, vale evocar as ideias de Geraldo Ataliba:

O sistema jurídico - ao contrário de ser caótico e desordenado - tem profunda harmonia interna. Esta se estabelece mediante uma

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hierarquia segundo a qual algumas normas descansam em outras, as quais, por sua vez, repousam em princípios que, de seu lado, se assentam em outros princípios mais importantes58.

Essa íntima relação existente entre os princípios, que, ainda nos dizeres de Ataliba, enseja que os princípios maiores fixem as diretrizes gerais do sistema e subordinem os princípios menores, os quais, por sua vez, agem da mesma forma quanto às regras, autoriza a mais abalizada doutrina, da qual faz parte o professor Juarez Freitas, a tratar "os princípios e direitos fundamentais como diretrizes superiores às regras"59.

Essa ideia se coaduna com a lição clássica contida na obra de José Afonso da Silva, autor que, seguindo o caminho traçado pelo eminente constitucionalista português José Joaquim Canotilho, trata os princípios como "ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, são núcleos de condensações nos quais confluem valores e bens constitucionais."60

No âmbito do Direito Administrativo, a importância normativa dos princípios é ainda mais relevante. Isso deve-se a que, nesse ramo do direito, segundo ensina Marçal Justen Filho, a aplicação normativa é circunstancial, configurando os princípios a limitação da discricionariedade da Administração na escolha da melhor conduta a ser adotada. Diz o aludido autor:

[A] atividade administrativa traduz o exercício de poderes-deveres, o que significa a vinculação no tocante ao fim a ser atingido. Em inúmeras oportunidades, o direito não estabelece a conduta satisfatória. A escolha da conduta a ser adotada dependerá das circunstâncias, o que não equivalerá a consagrar a liberdade para o agente escolher como bem entender. Nessas situações, pode haver alguma liberdade de autonomia quanto ao meio a adotar, e os princípios serão o instrumento normativo adequado para evitar escolhas inadequadas61.

Odete Medauar também ressalta a importância que os princípios possuem no âmbito do direito administrativo brasileiro, nos seguintes termos:

No direito administrativo, os princípios revestem-se de grande importância. Por ser um direito de elaboração recente e não codificado, os princípios auxiliam a compreensão e consolidação de seus institutos. Acrescente-se que, no âmbito administrativo, muitas 58 ATALIBA, 2007, p. 33. 59 FREITAS, 2009, p. 49. 60 SILVA, 2009, p. 92. 61 JUSTEN FILHO, 2011, p. 109.

normas são editadas em vista de circunstâncias de momento, resultando em multiplicidade de textos, sem reunião sistemática. Daí a importância dos princípios, sobretudo para possibilitar a solução de casos não previstos, para permitir melhor compreensão dos textos esparsos e para conferir certa segurança aos cidadãos quanto à extensão dos seus direitos e deveres.62

Juarez Freitas vai mais longe, assimilando o direito administrativo a "uma rede de princípios fundamentais e regras que devem reger (não só formalmente, mas na substância) o Estado Democrático no âmbito das relações de administração.63" Na mesma obra, Freitas especifica ainda mais a sua visão, fazendo referência ao Direito Administrativo como, "sobretudo, uma rede de princípios, objetivos e direitos fundamentais, com precedência sobre as regras, as quais só devem ser obedecidas teleologicamente.64"

Por todos esses fatores trazidos a lume, infere-se que os reflexos trazidos pelos princípios ao sistema jurídico são potencializados na seara do Direito Administrativo. Desse modo, é importante delimitar as funções que tais institutos protagonizam nesse ramo do direito. Para tanto, Thiago Marrara, ao introduzir a obra Princípio de Direito Administrativo, por ele também organizada, sistematizou as principais e mais poderosas funções assumidas pelos princípios nesse ramo do direito, que são assumidas em sua completude no presente trabalho:

1. a de orientação teleológica do Legislador na criação de legislação infraconstitucional e, mesmo, na proposição de emendas constitucionais relativas a áreas do direito administrativo;

2. a de orientação teleológica da Administração Pública na expedição de atos normativos, atos administrativos e, inclusive, no exercício da função administrativa;

3. a de alinhamento da interpretação de regras constitucionais e infraconstitucionais de direito administrativo quer pelo administrador público, quer pelos cidadãos, magistrados, procuradores etc.;

4. a função de integração de lacunas através da indicação, pelos princípios, de regras não escritas subjacentes ao direito administrativo positivo65.

O sentido emprestado ao vocábulo princípio na presente obra é o de preceito geral, que tem como principal função orientar o sistema de normas como um todo, além de promover uma ordenação geral que vise assegurar a coerência interna do sistema. 62 MEDAUAR, 2012, p. 134. 63 FREITAS, 2009, p. 35. 64 FREITAS, 2009, p. 51. 65 MARRARA, 2012, p. xvii.

Também deixa-se consignado, como já acima delineado, a crença de que os princípios podem decorrer um dos outros, ou seja, de que existem princípios mais amplos que abrangem outros mais específicos. Aqueles são usualmente chamados pela doutrina de sobreprincípios, enquanto estes são denominados de subprincípios. Sobre o assunto, disserta Rafael Valim:

Por fim, temos a destacada função sistematizadora dos princípios. Por constituírem as proposições-mestras do sistema jurídico, os princípios irradiam seu conteúdo estimativo sobre as demais normas, imprimindo-lhes unidade e coerência.

Assim, cada princípio unifica, sob o influxo do valor que carrega, uma plêiade de regras e subprincípios, os quais, ao mesmo tempo que naquele se sustentam, a ele dão concretude. Trata-se de um vínculo normativo que se estabelece, de modo que a desatenção a qualquer das manifestações do princípio implica ofensa ao próprio princípio66. Frise-se não ser necessariamente obrigatório estarem os princípios previstos no texto legal para que pertençam a determinado sistema jurídico. É o que pode-se deduzir também dos ensinamentos de Norberto Bobbio:

Ao lado dos princípios gerais expressos há os não-expressos, ou seja, aqueles que se podem tirar por abstração de normas específicas ou pelo menos não muito gerais: são princípios, ou normas generalíssimas, formuladas pelo intérprete, que busca colher, comparando normas aparentemente diversas entre si, aquilo que comumente se chama o espírito do sistema.67

Nesse contexto, como bem delineado pelo ilustre teórico do direito italiano, o já mencionado caráter sistêmico do direito permite que alguns princípios sejam presumidos de uma análise pormenorizada do sistema como um todo, de uma análise conjunta de um ou mais dispositivos, ou de dois ou mais "princípios maiores" (sobreprincípios). Sobre o assunto, é oportuno transcrever ensinamento do ex- ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Roberto Grau:

Compõem essa ordem, inicialmente, (i) os princípios explícitos, recolhidos no texto da Constituição ou da lei; após, (ii) os princípios implícitos, inferidos como resultado da análise de um ou mais preceitos constitucionais ou de uma lei ou conjunto de textos normativos da legislação infraconstitucional [...]; por fim, (iii) os princípio gerais de direito, também implícitos, coletados no direito pressuposto, [...].68 66 VALIM, 2010, p. 42. 67 BOBBIO, 1995, p. 159 68 GRAU, 2009, p. 47.

Deve-se salientar que esses princípios não explícitos, como oportunamente se verá ser o caso do princípio da proteção à confiança, não são uma criação do legislador ou doutrinária. Tratam-se, isto sim, de uma descoberta no interior dos próprios sistemas jurídicos, na medida em que traduzem uma análise conjunta de diversos dispositivos legais e princípios positivados. É o que mais uma vez ensina Eros Grau:

Isso permitirá a perfeita compreensão de que os princípios gerais de direito - princípios implícitos, existentes no direito pressuposto - não são resgatados fora do ordenamento jurídico, porém descobertos no seu interior69.

De outro norte, tendo-se falado em "princípios gerais do direito", merece ser trazido a lume excerto da obra de Celso Antônio Bandeira de Mello que nos auxilia na tarefa de definição daquele instituto:

[P]rincípios gerais de Direito são vetores normativos subjacentes ao sistema jurídico-positivo. Não, porém como um dado externo, mas como uma inerência da construção em que se corporifica o ordenamento. É que os diversos institutos nele compreendidos - quando menos considerados em sua complexidade íntegra - revelam, nas respectivas composturas, a absorção dos valores substanciados nos sobreditos princípios.70

Tal noção é essencial ao presente estudo, dado que, segundo palavras do próprio Bandeira de Mello, o princípio da proteção à confiança, assim como os correlatos princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, que também serão abordados no texto, se enquadram entre os princípios gerais do direito. São portanto, "da própria essência do Direito, e sobretudo no Estado Democrático de Direito sua vigência é irrefragável.71"

Por último, é igualmente importante, ainda, valer-se dos ensinamentos de Aléxy para afirmar que, a despeito da relevância de todos os princípios pertencentes ao sistema no ordenamento jurídico, a sua incidência em casos específicos não é absoluta72. Isso porque, há situações em que dois ou mais princípios podem colidir e, nesses casos, as situações fáticas e jurídicas que os circundam devem ser analisadas para se descobrir qual deles possui maior grau de concretização relativamente ao caso, devendo, após descoberto, ser aplicado à situação.

69 GRAU, 2009, p. 47. 70 BANDEIRA DE MELLO, 2010b, p. 179. 71 BANDEIRA DE MELLO, 2010b, p. 179. 72 ALÉXY, 2008, ps. 93-103.

Aléxy caracteriza esse exercício, de verificação dos diferentes graus de concretização dos princípios em uma determinada situação como "ponderação de princípios". O professor Luiz Henrique Urquhart Cademartori, da Universidade Federal de Santa Catarina, em obra escrita conjuntamente com Francisco Carlos Duarte, bem explica a concepção de ponderação de princípios proposta por Aléxy:

Considerados prima facie, os princípios são todos válidos e hierarquicamente iguais, sendo que a sua colisão somente ocorre nos casos concretos, quando um princípio limita a irradiação de efeitos do outro. Quando se depara com a colisão de princípios, o intérprete deverá valer-se de um critério hermenêutico de ponderação de valores jusfundamentais que Aléxy denomina de "máxima da proporcionalidade", a qual é composta de três máximas parciais: adequação, que, ao estabelecer a relação entre o meio empregado e o fim atingido, mede seus efeitos a partir de hipóteses comprovadas ou altamente prováveis; necessidade, que estabelece que a medida empregada (vale dizer, a norma) deve considerar, sempre, o meio mais benéfico ao destinatário, e proporcionalidade em sentido estrito que é a ponderação com base nos valores junsfundamentais propriamente ditos, os quais, na jurisprudência da Suprema Corte da Alemanha, encontram na noção de dignidade da pessoa humana uma espécie de meta-valor a orientar a interpretação dos demais direitos fundamentais.73

Desse modo, frise-se que é esse modelo de ponderação de princípios proposto por Robert Aléxy que permite que o princípio da proteção à confiança, em determinadas hipóteses, relativize outros princípios igualmente importantes no âmbito do direito administrativo, tais como, por exemplo, o princípio da legalidade em sentido estrito74.

Em sendo assim, crendo-se que o sentido da expressão princípio, para o presente trabalho, restou devidamente delimitado, pode-se adentrar ao tema principal do capítulo, qual seja, o princípio da proteção à confiança.

73

CADERMATORI; DUARTE, 2009, p. 127.

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Sobre o assunto, cabe, ainda, uma última ressalva: a despeito de a teoria da ponderação de princípios proposta por Aléxy deter aplicação ampla na jurisprudência brasileira, a sua utilização raramente é promovida nos termos da obra original. Fala-se em ponderação de princípios de maneira superficial, justificando-se qualquer hipótese de sua relativização no escólio daquele autor, sem, todavia, realizar-se a correta subsunção do caso concreto ao método de ponderação por ele proposto. Nesta senda, para o aprofundamento desse ideário, sugere-se a leitura do artigo "O proporcional e o razoável, de autoria de Virgílio Afonso da Silva.