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3. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA

3.2 Princípio da Proteção à Confiança

3.2.1 Noções de Segurança e Confiança

Ao longo da história, um dos principais motivos que levaram os homens a se organizarem em sociedade foi a busca pela segurança. Nesse talante, a própria existência de normas positivadas e, por conseguinte, do chamado Estado de Direito, alicerça-se fundamentalmente na necessidade da concessão de segurança aos cidadãos, a qual, por sua vez, advém da confiabilidade destes na Administração. Canotilho, conhecido constitucionalista português, afirma que "o homem necessita de uma certa segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se considerou como elementos constitutivos do Estado de direito o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança do cidadão.75"

Sendo assim, a valorização da segurança jurídica consiste em requisito indispensável para que determinado país esteja organizado sob um "Estado de Direito", conforme preleciona o talvez mais famoso teórico da chamada ciência jurídica, o austríaco Hans Kelsen:

Se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo Estado é um Estado de Direito, esta expressão representa um pleonasmo. Porém, ela é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica.76

A função precípua do Direito é, de fato, garantir segurança aos cidadãos. É tal função que permite aos homens viverem harmonicamente, promovendo a estabilidade das relações travadas sob a égide da lei, relações essas que, com o advento do direito, passam a ser chamadas de "jurídicas".

Sobre isso, diz Celso Antônio Bandeira de Mello:

A função nuclear do Direito é o estabelecimento de uma ordem. Vale dizer: o objetivo essencial buscado pelas normas jurídicas é a fixação de pautas de comportamento, graças ao quê tanto a sociedade como

75

CANOTILHO, 1993, p.371

76

seus membros têm por definido o que pode e o que não pode ser feito. Sem isto haveria o caos, a incerteza, a insegurança completa.77 Acrescenta sobre a matéria o ilustre publicista brasileiro:

[A] "segurança jurídica" coincide com uma das mais profundas aspirações do homem: a da segurança em si mesma, a da certeza possível em relação ao que o cerca, sendo esta uma busca permanente do ser humano. É a insopitável necessidade de poder assentar-se sobre algo, reconhecido como estável ou relativamente estável, o que permite vislumbrar com alguma previsibilidade o futuro; é ela, pois, que enseja projetar e iniciar, consequentemente - e não aleatoriamente, ao mero sabor do acaso - comportamentos cujos frutos são esperáveis a médio e longo prazos. Dita previsibilidade é, portanto, o que condiciona a ação humana. Esta é a normalidade das coisas.78

Nessa toada, cabe considerar, também, excerto de artigo de Éderson Garin Porto:

A confiança desempenha, segundo entendimento de Niklas Luhmann, um papel de redutor da complexidade social, afastando certos receios e reduzindo o fator "tempo" no desenvolvimento da sociedade, através da criação de uma atmosfera de confiabilidade, propícia para a evolução social. Por outras razões, John Rawls também advoga em defesa da proteção das expectativas legítimas. Segundo o autor estadunidense, a tutela da confiança é corolário do Estado Democrático de Direito e deve ser observada como forma de fazer valer as escolhas feitas pelos indivíduos na posição original, cobertos pelo véu da ignorância.79

Desse modo, ante essa função organizacional do Direito mencionada por Bandeira de Mello, que não retira de vista seu objetivo de garantir a estabilidade das relações jurídicas, é essencial que o ordenamento jurídico do país proteja a confiança dos cidadãos. Sobre o assunto, preleciona Manuel Frada:

[C]abe a qualquer ordem jurídica a missão indeclinável de garantir a confiança dos sujeitos, porque ela constitui um pressuposto fundamental de qualquer coexistência ou cooperação pacíficas, isto é, da paz jurídica.80

Sobre essa noção de confiança, que, embora um elemento subjetivo das relações humanas, é essencial ao desenvolvimento e fortalecimento destas - seja esse relacionamento perpetrado entre particulares ou entre estes e a Administração Pública - é importante recorrer a Manuel Frada. O eminente jurista português 77 BANDEIRA DE MELLO, 2010b, p. 168. 78 BANDEIRA DE MELLO, 2010b, p. 168-169. 79 PORTO, 2006, p. 130. 80 FRADA, 2007, p. 19.

assinala que a confiança "continua a exercer uma presença básica e imprescindível na vida social, pois de outro modo não se encetaria relacionamento humano algum."81

Portanto, a própria existência do Estado Democrático de Direito, bem traduzido na forma de governo que efetivamente possibilita aos administrados exercerem papel de protagonistas, seja política ou economicamente, - forma comumente denominada de República82 -, só se justifica e se torna plena quando há uma sólida relação de confiança entre a Administração Pública e os cidadãos.

Essa relação requer, como sublinha Geraldo Ataliba, a previsibilidade da ação estatal. O autor argumenta nesse sentido, correlacionando tal previsibilidade com o (então estranho à doutrina brasileira) princípio germânico da proteção à confiança.

O quadro constitucional que adota os padrões do constitucionalismo - do ideário francês e norte-americano instalado no mundo ocidental, nos fins do século XVIII - e principalmente a adoção de instituições republicanas, em inúmeros Estados, cria um sistema absolutamente incompatível com a surpresa. Pelo contrário, postula absoluta e completa previsibilidade da ação estatal pelos cidadãos e administrados. É que o legislador atua representando o povo e expressando seus desígnios. [...] Heins Paulick, da Universidade de Wurzburg, mostra como a previsibilidade da ação estatal é consequência do prestígio da segurança jurídica. [...]. Esse princípio, instrumento do similar 'princípio da proteção da confiança' - também cultivado pela doutrina germânica e prestigiado pela jurisprudência -, traduz-se no postulado de 'certeza pronta e definitiva sobre a quantia de dívida tributária' [...]. 83

Pode-se, assim afirmar que o princípio da Segurança Jurídica e, por consequência, o princípio da proteção à confiança alcançam status de Direito Fundamental no ordenamento jurídico pátrio. Essa convicção escora-se, por exemplo nas palavras de Rafael Valim, in verbis:

Importante, finalmente, considerar - retomando a classificação material e formal do conceito de "Estado de Direito" - que o princípio da segurança jurídica integra o plexo de garantias dos direitos fundamentais; é dizer: a segurança jurídica está entre os elementos

81

FRADA, 2007, p.19.

82

Nos dizeres de Geraldo Ataliba, o termo República significa o "regime político em que os exercentes de funções políticas (executivas e legislativas) representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade, eletivamente e mediante mandatos renováveis periodicamente." (ATALIBA, 2007, p. 13)

83

formais do conceito de "Estado de Direito", os quais, como já dito, são preordenados a assegurar a plena realização dos elementos materiais do conceito. Além disso, há uma notória fundamentação recíproca entre o princípio da segurança e o Estado de Direito, sendo aquele elemento indispensável deste, ao mesmo tempo em que este é condição necessária daquele.84

Em suma, impõe-se a conclusão de que o referido regime político, assim como o próprio Direito em si, é completamente avesso à surpresas. A confiança representa um dos seus alicerces básicos, o que torna essencial a sua proteção pelo ordenamento.