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Delimitação Teórica Princípio da Proteção à Confiança e Princípio da Segurança Jurídica

3. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA

3.2 Princípio da Proteção à Confiança

3.2.4. Delimitação Teórica Princípio da Proteção à Confiança e Princípio da Segurança Jurídica

Como já supra referido, só muito recentemente o princípio da segurança jurídica se tornou objeto de estudo do direito administrativo. Somente com o advento da Lei n. 9.784/99, que o incluiu no rol dos princípios norteadores do chamado processo administrativo, é que o referido preceito virou foco das luzes do direito público.

No plano constitucional, porém, há tempo que o referido preceito constitui reconhecidamente um dos princípios gerais de direito. Veja-se o que revela sobre o assunto José Afonso da Silva:

A segurança jurídica, consiste no conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas dos seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza de que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída.117

Nesse passo, percebe-se que o conceito proposto por José Afonso da Silva prevê o princípio nos seus aspectos objetivo, quando versa sobre a estabilidade dos atos jurídicos, e subjetivo, quando trata da certeza, ou da confiança, que os indivíduos imputam às relações realizadas sob a lei.

Hodiernamente, a maioria dos principais doutrinadores administrativistas brasileiros também dedica linhas de seus manuais ao aludido princípio. Desta feita, discorre Celso Antônio Bandeira de Mello acerca do princípio da segurança jurídica:

Ora bem, é sabido e ressabido que a ordem jurídica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar, sabendo, pois, de antemão, o que devem ou o que podem fazer, tendo em vista as ulteriores consequências imputáveis a seus atos. O direito propõe-se a ensejar uma certa

117

previsibilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí o chamado princípio da "segurança jurídica", o qual, bem por isto, se não é o mais importante dentro de todos os princípios gerais de Direito, é, indisputavelmente, um dos mais importantes entre eles.118 No mesmo sentido apresenta-se a observação de Marçal Justen Filho:

Tal como já exposto, a segurança é um valor de extrema importância para o Estado de Direito. A segurança, considerada em termos gerais, consiste na redução da incerteza quanto ao futuro. A segurança jurídica indica a redução da incerteza no âmbito da conduta dos sujeitos que atuam na sociedade. A segurança jurídica apresenta uma relevância ainda mais destacada relativamente à atuação estatal. Num Estado de Direito, a conduta dos agentes estatais deve ser previsível.119

Todavia, como já delineado, enquanto a maior parte da doutrina administrativista pátria praticamente desconsiderava o estudo do princípio da segurança jurídica, o eminente publicista Almiro do Couto e Silva, agindo à frente do seu tempo, pioneiramente escrevia sobre o assunto. É, assim, importante que se recorra às suas ideias para melhor conceituar o aludido princípio:

A segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um princípio jurídico que se ramifica em duas partes, uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva. A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes de qualifiquem como atos legislativos.[...]

A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes da sua atuação120.

Desse modo, analisando os dizeres de Couto e Silva, percebe-se que, na opinião daquele jurista, o princípio da proteção à confiança configura a faceta subjetiva do princípio da segurança jurídica. A relação entre eles existente, portanto, absorve em muitos os conceitos de sobreprincípio e subprincípio mencionados no início do presente capítulo. Conforme assinalado anteriormente, a segurança jurídica configura o sobreprincípio, e a proteção à confiança, o subprincípio, quando ambos são relacionados.

A professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro compartilha desse entendimento, lançando sua ideia nos seguintes termos:

118

BANDEIRA DE MELLO, 2010a, p. 124.

119

JUSTEN FILHO, 2011, ps. 1237-1238.

120

Esse silêncio em relação ao princípio da segurança jurídica tem uma justificativa. É que ele tem dois sentidos: um, objetivo, significando a estabilidade das relações jurídicas, e outro, subjetivo, conhecido como princípio da proteção da confiança ou princípio da confiança legítima.121

Rafael Maffini corrobora e complementa tal entendimento, afirmando o seguinte sobre a matéria:

Percebe-se, pois, que o princípio da segurança jurídica, em verdade, decorre de uma confluência qualificada das noções de certeza, estabilidade, previsibilidade, de confiança, o que necessariamente se dá em face da conjugação de várias normas jurídicas, dente os quais se poderiam mencionar a própria legalidade administrativa, a irretroatividade, a proibição de arbitrariedade, a proteção da confiança, dentre outras tantas (regras princípios e postulados) que dão conformação ao sobreprincípio da segurança jurídica, sendo, todavia, mais do que a simples conjugação de tais subprincípios para alcançar uma noção de instrumento de justiça social122 .

Chega-se a conclusão, portanto, de que o sentido jurídico atribuído ao princípio da segurança jurídica é mais amplo do que o conferido ao da proteção à confiança. Realmente, o primeiro engloba as noções de estabilidade do direito, que compreende conceitos como prescrição e decadência, além da proteção à confiança.

Cabe, todavia, consignar a ressalva realizada por Almiro da Couto e Silva, quando lembra que, ao menos na Alemanha e no direito comunitário europeu, ambos os institutos em estudo são tratados separadamente123. Ou seja, quando se fala em princípio da segurança jurídica naquele país, está-se referindo unicamente à noção de estabilidade do direito. Quando se deseja referir ao que se chama no Brasil de aspecto subjetivo daquele princípio, faz-se referência, no direito administrativo europeu, ao princípio da proteção à confiança.

3.2.5 Delimitação Teórica - Princípio da Proteção à Confiança e Princípio da Boa-fé Objetiva 121 DI PIETRO, 2012, p. 11. 122 MAFFINI, 2005, p. 41. 123 COUTO E SILVA, 2005, p. 10.

É comum, que doutrina e jurisprudência confundam os princípios da boa-fé objetiva e da proteção à confiança. Entretanto, apesar da óbvia proximidade entres tais institutos, não representam a mesma coisa e sequer se assemelham, o primeiro caracterizando, em muitas situações, como adiante se detalhará, pressuposto da aplicação do segundo.

Com efeito, o princípio da boa-fé possui suas origens no Direito Privado, alcançando a seara do Direito Público, em solo pátrio, com o advento da Constituição Federal de 1988. Esta, no seu artigo 37, caput124, incluiu o princípio da moralidade entre os norteadores do agir da Administração Pública. É o que assinala Carlos Eduardo de Moura:

No Brasil, esse processo foi significativamente facilitado com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1.988 que, em seu artigo 37, caput, passou a arrolar o princípio da moralidade como um dos princípio da Administração Pública.

Para Bacellar Filho esta previsão "introduz o conceito de boa administração, da moral administrativa especializada em face da moral comum"125.

Nesse passo, assim como o princípio da segurança jurídica, também o princípio da boa-fé na esfera administrativa mostra-se dotado de duas facetas distintas, uma subjetiva e outra objetiva.

O aspecto subjetivo do princípio da boa-fé diz respeito às intenções do agente quanto a uma determinada relação jurídica, sendo, pois, variável de indivíduo para indivíduo. Traduz, portanto, estado de ânimo, no qual o agente não apareça investido de má-fé. Já a boa-fé objetiva implica a limitação da esfera de atuação jurídica do agente pelos padrões socialmente recomendados em determinado meio. Desse modo, a boa-fé objetiva enseja um padrão de comportamento que pode ser medido e imposto pela lei, sendo, por conta disso, objetivamente verificável. Esta é a razão de também ser denominada de "boa-fé legal". Nesse sentido argumenta Marcelo Losso:

No que concerne à boa-fé subjetiva, também denominada boa-fé crença, encontra-se vinculada ao estado de ânimo, relacionado às intenções. Pode-se definir como um estado psicológico contraposto à

124

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

125

má-fé ou em que há ausência de má-fé. Nesse sentido, assim conceitua Alinne Arquette Leite Novais: "A boa-fé subjetiva corresponde ao estado psicológico da pessoa, à sua intenção, ao seu convencimento de estar agindo de forma a não prejudicar outrem na relação jurídica."

A boa-fé objetiva, também denominada boa-fé lealdade, enseja imposições comportamentais, significa o dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura e honestidade. Trata-se de uma regra de conduta a ser seguida pelo contratante, pautada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses legítimos e expectativas razoáveis do outro contratante, visto com um membro do conjunto social.126

Dada a obrigação constitucional da Administração de agir sempre pautada pelo princípio da moralidade e investida de boa-fé, muitos autores já utilizaram do princípio da boa-fé objetiva com o sentido jurídico do entende-se o princípio da proteção à confiança. A razão é que o agir da Administração dotado de lealdade e lisura automaticamente também protegeria a confiança legítima do administrado.

Todavia, nos últimos anos, com a recente importância dada pela doutrina administrativista brasileira ao princípio objeto do presente trabalho, tornou-se patente, entre os autores que lhe dedicam estudo que os aludidos institutos não se confundem. Considere-se sobre isso o que argumento a professora Judith Martins- Costa:

Distinguem-se, pois os princípio das boa-fé e da confiança: aquela, a boa-fé, liga-se, primeiramente, ao dever geral de cooperação, impondo, para tal fim, pautas de correção, lealdade, probidade e consideração aos interesses legítimos do parceiro (civiliter agere); esta, a confiança, prende-se, primeiramente, à geração de expectativas legítimas cuja manutenção pode constituir um dever jurídico (dever de manter a confiança suscitada) e cuja frustração pode ocasionar responsabilidade por danos (responsabilidade pela confiança).127

Assim, o princípio da boa-fé, no seu aspecto objetivo, visa incentivar a lealdade e cooperação de ambas as partes de uma relação jurídica, no caso do direito administrativo, a Administração Pública e o administrado. O princípio da proteção à confiança, por sua vez, protege as expectativas legítimas que os atos promovidos pela administração geram nos administrados, seja a sua atitude pautada pela boa-fé ou não.

126

LOSSO, 2008, p. 75.

127

Também Rafael Maffini distingue os dois institutos:

A interconexão entre a boa-fé objetiva e a proteção da confiança deve ser, segundo se entende correto, colocada de outro modo. Sendo a boa-fé objetiva um princípio que almeja um estado de coisas qualificado pela busca de condutas leais e, em relações bilaterais, pela busca de comportamentos reciprocamente leais, tal imposição se apresenta nas relações de Direito Administrativo numa via de duas mãos, tanto impondo um comportamento franco da Administração Pública para com o administrado, como impondo a reciprocidade de tal dever de lealdade, ou seja, uma conduta reta do administrado em relação à Administração Pública.

A proteção à confiança, por seu turno, afigura-se uma feição mais ampla, deduzida, imediatamente, da imposição de segurança jurídica e, mediatamente, do Estado de Direito, que visa à obtenção de um estado de estabilidade, previsibilidade e calculabilidade dos atos, procedimentos ou simples comportamentos das atividades estatais. Ocorre que nem sempre tal proteção estará diretamente condicionada à boa-fé do administrado. Não se trata, portanto, de uma relação necessária128.

Como já mencionado no presente capítulo, Rafael Maffini sistematizou as hipóteses de aplicação do princípio ora estudado no direito administrativo. Para esse autor, nem sempre a boa-fé objetiva do administrado consiste em requisito indispensável para proteger a sua confiança legítima. Assim explica:

[N]os atos de natureza concreta, quando praticados de modo contrário à ordem jurídica, os destinatários da função estatal de administração pública somente poderão se valer do princípio da proteção substancial da confiança se portarem, de sua parte, um comportamento que, segundo parâmetros objetivos e subjetivos, poderia ser qualificado como de boa-fé. Tal pressuposto, por seu turno, não se apresentaria imprescindível, por exemplo, no que tange aos atos estatais de índole normativa ou em relação aos precedentes administrativos.

Assim, em termos de conclusão, poder-se-ia afirmar que o princípio da proteção da confiança e princípio da boa-fé imbricam-se, numa necessária confluência para um estado de lealdade a se exigir tanto da Administração Pública quanto daqueles que são os destinatários de sua função. Entretanto, tais princípios não são portadores de um sentido absolutamente idêntico. A relação havida entre eles consiste no fato de que a proteção da confiança, sobretudo em relação a atos administrativos concretos, individuais e pessoais, terá a boa-fé do administrado como pressuposto, não como fonte (sobreprincípio) ou como resultado (subprincípio). Nesse sentido, lembra-se da passagem de Judith Martins-Costa, pela qual "a confiança (cum fides) adjetiva-se na boa-fé (bona fides)".129

128 MAFFINI, 2005, ps. 54-55. 129

Assim, nas hipóteses em que a presença da boa-fé por parte do administrado for requisito para a aplicação do princípio da proteção à confiança, aquela não representa um sobreprincípio ou subprincípio deste, mas sim, em verdade, um pressuposto do seu emprego na correspondente relação jurídica.

Vale ainda, para individualizar a proteção à confiança relativamente à segurança jurídica e à boa-fé, apresentar escólio da obra de Judith Martins-Costa, para quem "a confiança é [...] mais que o apelo à segurança da lei, é também mais do que a boa-fé, embora a suponha; é crédito social, é a expectativa, legítima, da ativa proteção da personalidade humana como escopo fundamental do ordenamento.130"

Uma vez delimitados os marcos teóricos dos princípios da proteção à confiança, segurança jurídica e boa-fé objetiva, resta ainda, antes de verificar a sua aplicação aos contratos administrativos, observar como se dão os eventuais conflitos entre aquele princípio e o princípio da legalidade.

3.3 Princípio da Proteção à Confiança e o Possível Conflito com o Princípio da