• Nenhum resultado encontrado

Princípio da Proteção à Confiança e o Possível Conflito com o Princípio da Legalidade em

3. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA

3.3 Princípio da Proteção à Confiança e o Possível Conflito com o Princípio da Legalidade em

Como é patente na doutrina administrativista brasileira clássica, o princípio da legalidade consiste num dos preceitos basilares do Estado de Direito, e, por conseguinte, da atividade da Administração Pública. Conforme já indicado, a garantia do seu respeito, conjuntamente com a proteção ao princípio da segurança jurídica, é que verdadeiramente transforma um Estado comum em um Estado Democrático de Direito.

Sobre isso, é importante transcrever as palavras de Almiro do Couto e Silva, para quem "a segurança jurídica é geralmente caracterizada como uma das vigas mestras do Estado de Direito. É ela, ao lado da legalidade, um dos subprincípios integradores do próprio conceito de Estado de Direito"131. É o que também ensina a doutrina clássica de Celso Antônio Bandeira de Mello:

130 MARTINS-COSTA, 2004, p. 116. 131

Este é o princípio capital para a configuração do regime jurídico- administrativo. Justifica-se, pois, que seja tratado - como o será - com alguma extensão e detença. Com efeito, enquanto o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é da essência de qualquer Estado, de qualquer sociedade juridicamente organizada com fins públicos, o da legalidade é específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá a identidade própria. Por isso mesmo é o basilar do regime jurídico administrativo (pelo menos aquilo que como tal se concebe) nasce com o Estado de Direito: é uma consequência dele. É o fruto da submissão do Estado à lei. É, em suma: a consagração da ideia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei.132

Com efeito, o princípio da legalidade, no âmbito do direito administrativo, detém a função limitadora da esfera de atuação da Administração Pública ao que disciplina a lei. Hely Lopes Meirelles bem sintetizou o significado que o princípio da legalidade possui neste ramo do direito, ao ressaltar que, "enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza."133

Assim, é de fácil inferência que o surgimento do princípio da legalidade no direito administrativo teve como ideário a limitação da discricionariedade do administrador público na operação da máquina estatal, protegendo, desse modo, os interesses dos cidadãos frente aos do Estado. É o que ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Na primeira fase do Estado de Direito, em pleno período do liberalismo, vários princípios foram formulados com o objetivo de proteger o cidadão perante o poder público: separação de poderes, isonomia, legalidade, controle judicial. Como a grande preocupação era a de proteger a liberdade individual, o princípio da legalidade - que veio exigir a submissão da Administração Pública à lei - tinha sentido bem restrito, já que era imposto naquilo que fosse necessário para proteger os direitos dos cidadãos.134

É o que também assinala Egon Bockmann Moreira:

Em radical simplificação, são duas as ideias-chave em torno das quais se criou o princípio da legalidade: (i) a constituição democrática (oriunda da manifestação popular) e (ii) o governo cuja competência decorre da constituição (e, por isso mesmo, é limitado por ela). Isso

132

BANDEIRA DE MELLO, 2010a, p. 99-100.

133

MEIRELLES, 2011, p. 89.

134

significa que o princípio dirigia-se a, sobretudo, limitar os poderes do soberano e impor abstenções.135

Em sendo assim, fazendo-se uma interpretação histórica do aludido preceito, infere-se ser desarrazoado o argumento levantado por alguns juristas, defendendo a mitigação ou até mesmo a impossibilidade da aplicação do princípio da proteção à confiança nos casos em que o ato que gerou a expectativa legítima for ilegal, em razão de que essa prática desrespeitaria o princípio da legalidade. Ora, se a própria razão de existência do aludido princípio é justamente a proteção dos interesses do cidadão comum contra o poderio estatal, como justificar que a ilegalidade de um ato administrativo, que, frise-se, presumivelmente é válido e é unicamente de responsabilidade da própria Administração, frustre a expectativa nele depositada por administrados de boa-fé?

Nessa perspectiva, é, também, para evitar a aplicação equivocada dos princípios que, como já delineado, nenhum deles é absoluto, abrindo-se a possibilidade de a incidência de determinado preceito no caso concreto ser relativizada pela sua ponderação com os demais princípios também atuantes naquele sistema jurídico. Assim, como já explicitado, nas hipóteses em que ocorrerem conflitos entre dois ou mais princípios, deve-se realizar um exercício de ponderação entre os direitos em questão, verificando-se qual deve ser o mandamento aplicado naquele caso em específico.

Sobre esse caráter não absoluto dos princípios, é importante recorrer ao enunciado de Rafael Maffini:

[N]ão é dado olvidar que "princípio absoluto", consoante os hodiernos estudos de hermenêutica jurídica, consiste numa contradição em termos, porque se algo é princípio jurídico não pode ser absoluto e, sendo absoluto, não se lhe pode reconhecer a feição de princípio. Justamente por isso, adiantando-se a conclusão do item ora desenvolvido, é que não se afigura adequado afirmar que o princípio da proteção à confiança não teria aplicabilidade no Direito Administrativo em face do princípio da legalidade.136

Especificamente sobre o princípio da legalidade, colaciona-se o seguinte trecho da obra de Juarez Freitas:

135 MOREIRA, 2012, p. 47. 136

[A] legalidade é valioso princípio, mas princípio entre outros de igual hierarquia alojados no texto constitucional. Daí se exige a "atuação conforme a lei e o Direito". O princípio da legalidade só experimenta significado na interação com os demais princípios e direitos fundamentais. Quer dizer, pensar o Direito Administrativo exclusivamente como mero conjunto de regras legais seria subestimar, de forma ruinosa, a complexidade do fenômeno jurídico- administrativo.137

Assim, nas hipóteses em que os efeitos da anulação de um ato administrativo ilegal forem mais prejudiciais do que o próprio ato, ferindo a confiança legítima neles depositada por cidadãos de boa-fé, o princípio da legalidade deverá ser deixado de lado em prol dos princípios da proteção à confiança, em primeiro plano, e, como pano de fundo, em benefício do princípio da segurança jurídica.

Nesse contexto, deve-se frisar que o que se está propondo passa longe de uma completa relativização do princípio da legalidade, posto que, como já dito, este representa um dos preceitos basilares de um Estado de Direito. Reconhece-se que a aludida relativização reveste-se de caráter excepcional, somente podendo ser perpetrada em determinadas hipóteses, quando a anulação do ato viciado viole a confiança legítima nele depositada por um particular de boa-fé.

Cabe ainda consignar que a moderna visão acerca do princípio da legalidade estende seus efeitos desde o respeito às normas em si para a defesa da necessidade de respeitar os preceitos do sistema jurídico como um todo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro é clara sobre essa mudança de paradigma relacionada ao princípio da legalidade:

No entanto, não parou aí a evolução do princípio da legalidade. Consideráveis alterações foram introduzidas com o modelo do Estado de Direito Democrático, que passou a inserir na ideia de legalidade, considerada em sentido amplo, os valores e princípios consagrados no ordenamento jurídico constitucional. [...]

A referência à lei e ao direito significa que ficou para trás o período em que o princípio da legalidade significava a submissão da Administração Pública à lei em seu sentido puramente formal, para passar a abranger o direito em tudo o que isto significa de valores e princípios contidos implícita ou explicitamente no ordenamento jurídico.138

O entendimento de Juarez Freitas, que denomina de "legalidade temperada" essa concepção moderna do princípio da legalidade, caminha nesse mesmo sentido:

137

FREITAS, 2009, p. 72.

138

[D]eve haver respeito à legalidade, todavia encartada no plexo das características e ponderações que a qualifiquem como sistematicamente justificável (interna e externamente). Não significa que se possa alternativamente obedecer à lei ou ao Direito. A legalidade devidamente temperada requer a observância cumulativa dos princípios em sintonia com a teleologia constitucional, para além do textualismo normativo estrito. A justificação apresenta-se menos submissão do que respeito fundado e racional. Não é servidão ou vassalagem, mas acatamento pleno, livre e concomitante à lei e ao Direito.139

Portanto, chega-se à conclusão de que, ao contrário do defendido pelos juristas que justificam a impossibilidade da manutenção de efeitos de atos administrativos inválidos para cidadãos de boa-fé, ante a violação do princípio da legalidade em sentido estrito, aquela prática é, na verdade, garantida pela invocação do princípio da proteção à confiança. Esta, por sua vez, decorre dos consagrados princípios da segurança jurídica e do Estado de Direito, abrangidos pelo sentido moderno imputado ao princípio da legalidade.

Considerando todo o referido, crê-se já ter oferecido um panorama geral do princípio da proteção à confiança, podendo-se agora explorar o problema do seu uso como limitação à mutabilidade dos contratos administrativos.

139

4. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA COMO LIMITAÇÃO À