• Nenhum resultado encontrado

3. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA

3.2 Princípio da Proteção à Confiança

3.2.2 Origens do Princípio

Com o avanço da Ciência Jurídica, só fez aumentar o reconhecimento da importância conferida à proteção à confiança depositada pelos particulares na Administração Pública. Após o fim dos regimes autoritários, tanto a doutrina como a jurisprudência e o poder legislativo (este, embora, mais tardiamente) passaram a se ocupar da proteção dos interesses dos particulares, em contraponto ao chamado poder de império do Estado.

Essa gradativa modificação paradigmática, que visa a proteger os interesses do cidadão comum, nos dizeres de Juarez Freitas, "parece andar de mãos dadas com certa fragmentação da ideia de supremacia da Administração Pública"85, e, segundo Marçal Justen Filho, "retrata a lenta e inevitável transição do autoritarismo para a democracia"86 que atravessou e ainda atravessa o país.

Daí que, nos dias atuais, não mais se admite a ampla discricionariedade de atuação da Administração Pública, mostrando-se os seus atos vinculados ao que preleciona o texto constitucional. Assim, a melhor doutrina tem defendido a tese de que a verdadeira detentora da supremacia, em um Estado Democrático de Direito moderno, não é a Administração Pública, mas sim a Constituição Federal. Sobre o assunto, discorre o professor Juarez Freitas:

84 VALIM, 2010, p. 34. 85 FREITAS, 2009, ps. 39-40. 86 JUSTEN FILHO, 2011, p. 73.

[T]ende a minguar a crença no mito da discricionariedade administrativa solta (substituída, a pouco e pouco, pela noção de discricionariedade vinculada, motivada e justificável racionalmente), sem sucumbir a particularismos contrários à universalização, de sorte que toda discricionariedade (no plano dos mandamentos - Tatbestand - ou na eleição das consequências) está, por força da Constituição, direta e imediatamente vinculada aos princípios, objetivos e direitos fundamentais: daí se extrai a inaceitabilidade de uma discricionariedade pura ou inteiramente imune a controle, ainda que, no mais das vezes, vedada a renovação de prognose do administrador.87

Nesse contexto, a proteção à confiança que os administrados legitimamente depositam nos atos da Administração alcançou patamar de destaque no direito administrativo em escala ampla, em diferentes países. Neste talante, o princípio em comento, apesar de deter aplicação ainda muito incipiente, porém progressiva, em solo pátrio, já é amplamente reconhecido em solo estrangeiro, principalmente na Alemanha, país onde teve origem, assim como na França e na Espanha.

Tal como ocorrido no Brasil, como adiante se detalhará, o berço do princípio vertente, nessas experiências internacionais, não foi normativo, mas sim jurisprudencial. Seu nascedouro foi, mais especificamente, o Tribunal Administrativo Federal alemão, em acórdão prolatado em 1957, o primeiro de muitos outros surgidos naquele Areópago. Somente após sua aparição jurisprudencial, é que, ato contínuo, o princípio passou a ser expressamente previsto na Lei de Processo Administrativo alemã, já em meados da década de setenta88. Desde então, o princípio irradiou-se a outros países do velho continente, vindo a chegar, a posteriori, no Brasil.

Assim, os estudos realizados além mar chegaram um pouco tardiamente no Brasil. Esse ingresso refletiu o recente início da valorização dos interesses individuais quando chocados com os da Administração, uma situação advinda da, ainda relativamente nova, conquista da democracia.

Segundo Judith Martins-Costa, foi um acórdão89 prolatado pelo Supremo Tribunal Federal no ano de 2003, de relatoria do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, o responsável por "propor uma re-significação da segurança jurídica, [...] marcando o trânsito do princípio da segurança jurídica para o que, em outras plagas, tem sido

87

FREITAS, 2009, p. 41.

88 DI PIETRO, 2001, p. 157. 89

denominado de princípio da confiança legítima"90. Para a autora, essa decisão configura o início da efetiva aplicação do princípio da proteção à confiança no direito administrativo brasileiro.

A aludida decisão trata, resumidamente, da concessão de efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário interposto pela autora contra acórdão que indeferiu a sua transferência de instituição de ensino superior federal, em razão da assunção de cargo para o qual foi aprovada por intermédio de concurso público. A decisão do Tribunal Regional Federal da 4a Região havia reformado a prolatada em primeiro grau - responsável por conceder a transferência de universidade - às vésperas da sua colação de grau no curso de direito na nova universidade. Segundo Gilmar Mendes, o Ministro relator, tal decisão feriria o princípio da segurança jurídica, o qual, hodiernamente, conta com assento constitucional, caracterizando um subprincípio do princípio do Estado de Direito, estando aquele primeiro relacionado com o princípio da proteção à confiança. Por todos esses motivos, o recurso mereceria provimento.

Almiro do Couto e Silva91, seguido por Rafael Maffini92, também afirma que essa decisão explicita o acolhimento do preceito em análise pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Menciona, também, outra gama de acórdãos93, do STF e também do Superior Tribunal de Justiça - alguns deles anteriores ao mencionado por Martins-Costa -, os quais, muito embora não alicerçados na utilização expressa do mencionado princípio, referir-se-iam ora à segurança jurídica, ora à boa-fé objetiva, com o seu sentido.

Essas decisões abriram espaço para a discussão da matéria, tanto que, hodiernamente, com os recentes avanços nos estudos doutrinários sobre o assunto, a proteção à confiança já é explicitamente mencionada em acórdãos proferidos

90 MARTINS-COSTA, 2004, p. 112. 91 COUTO E SILVA, 2005, p. 15. 92 MAFFINI, 2005, p. 98.

93 STF, MS n. 24268/MG, Relator: Min. Ellen Gracie. Relator para Acórdão: Min. Gilmar Mendes,

Tribunal Plenos, Data da decisão 05/02/2004; STF, MS n. 22357/DF, Relator: Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno. Data da decisão: 27/05/2004; STJ, RMS 407/MA, Relator: Min. Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma. Data da decisão: 07/06/1991; STJ, Resp. 1073/SP, Relator: Demócrito Reinaldo, Relator para Acórdão: Min. Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma. Data da decisão: 22/06/1992; etc.

pelos tribunais superiores. Já existem, com efeito, várias decisões que demonstram isso94.

Na doutrina, o pioneirismo no Brasil corresponde à Almiro do Couto e Silva, autor que, ainda na década de oitenta, escrevia sobre a aplicação dos princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança no direito administrativo pátrio. Assinale-se que são diversos os artigos relacionados ao tema, produzidos pelo jurista gaúcho, que serviram de consulta para a realização do presente trabalho.

Porém, o tema só passou a ganhar mais destaque na doutrina publicista brasileira com o advento da Lei n. 9.784/99, responsável por regular o processo administrativo na esfera federal. No seu artigo 2o, essa lei inseriu o princípio da segurança jurídica no rol dos princípios de aplicação obrigatória naquele ramo do Direito.

Esse aspecto foi assinalado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

O princípio da segurança jurídica só mais recentemente começou a ser mencionado nos livros de direito administrativo. Mesmo no meu livro direito administrativo (cuja primeira edição foi publicada pela editora Atlas em 1990) tal princípio só começou a ser mencionado a partir da 11a edição, de 1999 (mesmo ano da promulgação da lei de processo administrativo), porque foi incluído entre os princípios do processo administrativo pelo art. 2o, caput, da Lei n. 9.784, de 29-1- 1999, que regula o processo administrativo na esfera federal.95

94 ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. JUIZ SUBSTITUTO DA MAGISTRATURA DO

ESTADO DO CEARÁ. CONTROLE JUDICIAL DO ATO ADMINISTRATIVO. LIMITAÇÃO.

OPORTUNIDADE E CONVENIÊNCIA. EXIGÊNCIA DO ENUNCIADO DA QUESTÃO NÃO VALORADA NO ESPELHO DE CORREÇÃO DA PROVA DE SENTENÇA PENAL. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA CONFIANÇA E DA MORALIDADE. INCLUSÃO DE NOVO ITEM NO ESPELHO DE CORREÇÃO.REDISTRIBUIÇÃO DOS PONTOS. 1. É cediço que o controle judicial do ato administrativo deve se limitar ao exame de sua compatibilidade com as disposições legais e constitucionais que lhe são aplicáveis, sob pena de restar configurada invasão indevida do Poder Judiciário na Administração Pública, em flagrante ofensa ao princípio da separação dos Poderes. 2. Desborda do juízo de oportunidade e conveniência do ato administrativo, exercido privativamente pelo administrador público; a fixação de critérios de correção de prova de concurso público que se mostrem desarrazoados e desproporcionais, o que permite ao Poder Judiciário realizar o controle do ato, para adequá-lo aos princípios que norteiam a atividade administrativa, previstos no art. 37 da Carta Constitucional. 3. Mostra-se desarrazoado e abusivo a Administração exigir do candidato, em prova de concurso público, a apreciação de determinado tema para, posteriormente, sequer levá-lo em consideração para a atribuição da nota no momento da correção da prova. Tal proceder inquina o ato administrativo de irregularidade, pois atenta contra a confiança do candidato na administração, atuando sobre as expectativas legítimas das partes e a boa-fé objetiva, em flagrante ofensa ao princípio constitucional da moralidade administrativa. 4. Recurso ordinário provido. (grifou-se) (STJ, 5ª. Turma, RMS 27.566/CE, Rel. p/ac. Min. Laurita Vaz, j. em 17.11.2009)

95

Com a promulgação da referida lei, praticamente todos os mais conhecidos teóricos do Direito Administrativo96 pátrio passaram a mencionar o referido princípio nos seus manuais. A menção incide, inclusive, na questão da proteção à confiança, que, como adiante se observará, consiste na faceta subjetiva daquele princípio.

Por último, no que tange ao acolhimento do princípio da proteção à confiança na legislação, muito embora não esteja expressamente previsto no ordenamento, trata-se de um princípio constitucional implícito, conforme mencionado na seção anterior do presente capítulo.

No âmbito do direito administrativo, há dispositivos que podem ser considerados reflexos do seu acolhimento por este ramo do Direito. Talvez o melhor exemplo seja o já mencionado artigo 54 da Lei n. 9.784/99.97 Sobre o assunto, assim se expressa Rafael Maffini:

O dispositivo legal citado, [...], consiste numa verdadeira limitação à autotutela administrativa, porquanto se presta a obstaculizar o dever- poder invalidatório da Administração Pública desde que implementadas algumas condições. Trata-se, pois, de uma das mais nítidas formas de concreção ao princípio da proteção da confiança, uma vez que determina que uma conduta administrativa, mesmo que perpetrada de modo contrário à ordem jurídica, seja preservada em face de um plexo de circunstâncias (efeitos benéficos, boa-fé dos destinatários, lapso temporal significativo) das quais se extrai que a confiança legitimamente depositada pelos destinatários de uma conduta inválida preponderará num juízo de ponderação intrínseco à própria regra em relação à prerrogativa invalidatória da Administração Pública.98

Na lei n. 8.666/93, a chamada Lei de Licitações e Contratos Administrativos, há outros dispositivos que também refletem a constância do princípio da proteção à confiança no direito nacional. Esses dispositivos serão oportunamente analisados, no próximo capítulo do presente trabalho.

96

Além de Maria Sylvia Di Pietro (2011, ps. 85-90) cabe citar: MEIRELLES, 2011, ps. 99-101; BANDEIRA DE MELLO, 2010a, ps. 123-125; MEDAUAR, 2012, ps. 144-145; e, JUSTEN FILHO, 2011, ps.1237-1240.

97 Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos

favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. § 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento. § 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.

98