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2. A DELIBERAÇÃO PÚBLICA E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

2.4 A deliberação pública em um ambiente midiático complexo

2.4.3 Deliberação online ao redor de conteúdos do jornalismo

A literatura mostra que a internet mudou significativamente o modo como uma parcela considerável da população recebe notícias e informações. As pessoas podem consumir notícias ao acessar sites de grandes empresas de comunicação, mas também sites de

produtores de notícia em escala não-industrial (p.e., blogs de especialistas, conteúdos noticiosos produzidos por organizações civis e publicações de comentarias dos mais variados tipos). As notícias chegam através da caixa de email, por listas de discussões, fóruns e, claro, através dos sites de redes sociais.

No entanto, por mais que o modo de consumo de informação tenha mudado, autores afirmam que a principal mudança introduzida pela internet foi a possibilidade de interatividade. Especialmente, em termos de deliberação pública, a maior diferença ficaria por conta da possibilidade de manifestação da opinião em relação aos acontecimentos da realidade socialmente compartilhada. O ganho se daria, especialmente, na possibilidade de expressão de desacordos/pontos de vista alternativos em relação àqueles adotados pelos atores que têm lugar na esfera de visibilidade pública (DAHLBERG, 2007; DOWNEY, FENTON, 2003). É um indicativo da complementariedade entre os produtores de conteúdos jornalísticos e arenas online de discussão política uma pesquisa feita por Roberts e equipe (2002). Estes pesquisadores encontraram que quanto mais cobertura dos mass media um tema recebe, mais é discutido nos fóruns online. A cobertura dos media, portanto, prover informações e agendam discussões na internet.

A preferência pelos mass media enquanto fornecedora de informações sobre a realidade social seria explicada pela cultura de uso, credibilidade e, mesmo, pela qualidade técnica e jornalística dos conteúdos. Enfim, devido ao volume, qualidade e credibilidade, consume-se conteúdos produzidos por empresas de comunicação tradicionais, sejam através das tecnologias anteriores ou na web, associada ao emprego da web social para a disseminação, o comentário e a discussão. Especificamente, os sites de jornais online seriam tanto lugar para o consumo de notícias quanto para o comentário, nas próprias seções de comentários, em fóruns ou mesmo nos sites de redes sociais por onde se distribuem os conteúdos (SAMPAIO, BARROS, 2010; SAMPAIO, DANTAS, 2011). Os jornais, com isso, viabilizariam a formação de uma arena discursiva em torno de seus conteúdos. Existe, então, uma possibilidade de aproximar os conteúdos com visibilidade massiva da esfera de conversação, isto é, na internet os cidadãos comuns podem se manifestar na própria página dos jornais online, bem como em sites de redes sociais. Em outras palavras, na internet os conteúdos midiáticos, que podem ser lances

argumentativos sobre questões comuns, podem fazer gravitar comentários e argumentos das pessoas interessadas na temática.

Especificamente, para investigar possíveis ganhos democráticos dos comentários de leitores em jornais online, tanto em termos de pluralidade quanto em termos de deliberação pública, alguns trabalhos já foram levados a cabo. Estes chegam a duas conclusões básicas distintas: a) os comentários pluralizam o discurso dos jornais, enriquecem a experiência de consumo de notícias online e viabilizam uma deliberação pública; b) os comentários funcionam como estratégia de fidelização dos jornais, sem necessariamente promover valores democráticos, sendo em alguns casos oportunidade para a disseminação de comentários de ódio (PALACIOS, 2010; NOCI et. al., 2010; ROBINSON, 2010; NEWMAN, 2009; FIDALGO, 2004).

Os primeiros estudos, de uma perspectiva otimista, entendem que a possibilidade de comentar notícias traz benefícios ao possibilitar a manifestação de opiniões e perspectivas não presentes nos conteúdos jornalísticos e, mesmo, oferecer a possibilidade de discursos alternativos ao apresentados pelos mass media (FIDALGO, 2004; FLEW, WILSON, 2010). Estes ambientes poderiam viabilizar a ampliação do espectro de argumentos apresentados pela matéria. Fidalgo (2004) explica que as seções de comentários podem ser identificadas como elementos importantes na medida em que são capazes de produzir uma maior densidade semântica ou uma camada adicional de informação e de opiniões diversas. Em outras palavras, este ambiente discursivo contribui para o aumento do pluralismo (NEWMAN, 2009). Gomes & Andrade (2010) argumentam que o leitor não é mais apenas receptor, mas também coprodutor dos discursos. Logo, a notícia seria um catalizador de discussões sobre os fatos. No entanto, as autoras admitem que os comentários de leitores podem ser ambientes para a manifestação de preconceitos e entendimentos rasos sobre os problemas sociais. Por outro lado, autores pontuam que os jornais abrem espaços para comentários mais preocupados em fidelizar os leitores – aqui, tratados como clientes (NOCI et. al., 2010; PALACIOS, 2010; ROBINSON, 2010). A oferta dessas ferramentas não acarretaria mudanças estruturais no modo de fazer e consumir jornalismo. Segundo Palacios (2010), as iniciativas de abertura dos grandes jornais seriam apenas respostas às demandas de usuários cada vez mais conectados ao ciberespaço e teriam, no geral, apenas o intuito de fidelizar os leitores.

Segundo Noci e equipe (2010), que analisaram 36.059 comentários de 1.754 notícias oriundas de sete jornais da Cataluña (Catalonia) – La Vanguardia, El Periódico, Avui, El

Punt, Segre, Diari de Tarragona e Diari de Girona – os comentários nas notícias é o

modo mais popular de participação da audiência nos sites de jornais online, que permite aos cidadãos um modo mais simples de reagir e discutir os acontecimentos. Ao avaliar os comentários a partir de uma perspectiva da deliberação pública, Noci e equipe (2010) concluem que os comentários em notícias não atendem quase a nenhuma das demandas normativas da deliberação pública. O diagnóstico é que a maioria dos usuários faz apenas um comentário, falta respeito mútuo, há baixa pluralidade e pouca maturidade entre os argumentos. “The majority of comments are not abusive, but they are neither fruitful contributions to a rational debate” (idem, p. 18). Os autores explicam que os jornais têm uma limitação jurídica ao dar amplas oportunidades de participação aos leitores, uma vez que os jornais são juridicamente responsáveis pelos conteúdos postados e frequentemente leitores publicam conteúdos que podem resultar em sanções legais. Uma precaução comum é o estabelecimento prévio de normas condizentes com princípios democráticos. Assim, os jornais podem tomar medidas punitivas sem maiores complicações. Mas, segundo Noci e equipe (2010), ganhos democráticos poderiam ser assegurados se houvesse uma moderação humana prévia para garantir que os comentários postados estão dentro do quadro legal. O recurso humano, para tanto, certamente aumentaria os custos operacionais dos jornais, mas seria uma possibilidade para se para garantir um debate democrático.

No Brasil, a pesquisa acadêmica que procura avaliar a qualidade deliberativa de arenas em torno de jornais é bastante rarefeita, apesar de existirem alguns trabalhos (SAMPAIO, BARROS, 2010; SAMPAIO, DANTAS, 2011). Sampaio e Dantas (2011) analisam um fórum chamado Cidadão Repórter, hospedado pelo Diário de Pernambuco. Os autores relatam que este fórum tinha como objetivo viabilizar a discussão entre pessoas interessadas sobre temas de interesse comum. Os autores explicam que “as mensagens mais debatidas (ou mais interessantes de acordo com os critérios do jornal) são selecionadas e transformadas em matérias no caderno Vida Urbana” (ibid., p.163). O artigo fez uma análise de dois fóruns, um com 31 e outro com 61 mensagens, sobre o trânsito e chegaram à conclusão de que a discussão foi de boa qualidade, de acordo os indicadores de reciprocidade e reflexividade, “evidenciando que os usuários não apenas respondiam, mas refletiam sobre as outras mensagens, apresentando novos argumentos

ou explicando porque os pontos levantados já eram satisfatórios” (ibid., p.171). Ademais, os indivíduos procuraram justificar as posições por argumentação calcada em razões fortes (35% do total das mensagens apresentaram mensagens com justificativas externas e 15% de justificativas internas). Os autores elencam alguns possíveis ganhos democráticos deste tipo de ferramenta: primeiro, a viabilização de uma discussão qualificada entre cidadãos, o que contribui para o entendimento da opinião de outros ou construção de consensos; segundo, o ambiente se configura como organizador de denúncias individuais sobre problemas e irregularidades da cidade, de modo que pode influenciar ações por parte de jornalistas ou de agentes do poder público; terceiro, o fórum permite a organização dos cidadãos para a realização de protestos e manifestações, tanto presenciais quanto online, em busca por soluções para problemas comuns (ibid., p. 175).

Outro estudo investigou a qualidade deliberativa de comentários relacionados a duas matérias sobre acontecimentos políticos, publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo na internet (SAMPAIO, BARROS, 2010). Este estudo demonstra que as ferramentas discursivas oferecidas por jornais online têm grande potencial deliberativo, mesmo que considerados os padrões exigentes da deliberação pública (em termos de reciprocidade, 73,8% dos comentários foram dialógicos e 26,2% monológicos; 31,5% dos argumentos apresentam justificativas externas), não obstante existam disputadas argumentativas acirradas (56,1% dos comentários foram agressivos e 21,5% respeitosos). Os autores assinalam que esta arena discursiva podem resultar em benefícios democráticos na medida em que propicia ganhos de visibilidade para argumentos diversos e amplia o potencial de enriquecimento informativo em torno da temática tratada pela notícia. Tal ganho seria possível, mesmo que o indivíduo não faça comentários, uma vez que é possível ler comentários com novas perspectivas, informações e posicionamentos que provavelmente não estão contidos na matéria do jornal.

Funções da arena discursiva ao redor dos media online

A partir do caminho percorrido até aqui, sustenta-se que as arenas discursivas ao redor dos mass media, entendida como os ambientes de expressão dos cidadãos comuns, a exemplo das seções de comentários, fóruns e sites de redes sociais, cumprem algumas funções democraticamente benéficas de uma perspectiva deliberativa. Pode-se enumerar ao menos quatro, não necessariamente excludentes:

a) Ampliação do espectro dos argumentos: as esferas de conversação na internet podem funcionar como ampliadores da diversidade dos argumentos, dificultando o predomínio de argumentos que não suportem o escrutínio público. Em outras palavras, este ambiente discursivo contribui para o aumento do pluralismo (NEWMAN, 2009; FIDALGO, 2004).

b) Processamento das informações: conforme o diagnóstico de Maia (2008) para a conversação cotidiana, a conversação online, “é importante para o processamento da informação, no sentido de ampliar o entendimento que os participantes têm sobre determinado assunto” (p.205). Em especial, a deliberação online pode reenquadrar os argumentos e discursos apresentados pelos mass media, problematizando as questões de acordo os interesses da esfera da cidadania ou ao menos de acordo o interesse dos participantes da deliberação.

c) Vigilância e ressonância de assuntos de interesse da rede: os indivíduos, sabendo dos interesses da rede da qual fazem parte, pesquisam, filtram e espalham conteúdos que são de interesse comum. Deste modo, procede uma distribuição orientada de conteúdos, que, na prática, funciona como uma vigilância coletiva dos interesses comuns. Em caso de crises ou violação de direitos, estas redes podem ser empregadas para mobilização e orquestração de discursos e ações. Estas seriam as funções, de modo geral, da esfera pública desenhada por Habermas, mas que na internet, sobretudo nos sites de redes sociais, teriam ferramentas mais eficientes, tanto por conta do design da plataforma quanto por conta da cultura de uso orientada para a partilha de conteúdos.

d) Agendamento de temas, questões e bandeiras na pauta das empresas de jornalismo e mesmo das instituições do sistema político autorizadas e especializadas na produção de decisão política. Conforme discutido no tópico 2.4.2, as redes sociais online conseguem abordar os temas de tal modo que estes adentram à esfera de visibilidade pública, tanto através dos procedimentos de coleta e produção de notícias do jornalismo, quanto pela disseminação nas próprias redes sociais. E, com isso, uma vez que as demandas ganham adesão da plateia aumenta-se as chances destes temas entrarem na pauta das instituições do sistema político encarregadas da decisão política.

Três ponderações, contudo, são necessárias. Primeiro, não se defende que o ganho democrático ocorre na simples existência da conversação cotidiana na internet, mas no modo como se conectam em outras arenas, com a esfera de visibilidade pública, ou influenciam ações do sistema do político. Entende-se as esferas de conversação como parte de um sistema e não como um fim em si mesmo. Ademais, não se trata de um espaço à parte ou mesmo separado.

Segundo, essas arenas atendem de diferentes modos os pressupostos deliberativos. Em alguns momentos, elementos básicos da deliberação não são atendidos satisfatoriamente, mas estas arenas podem continuar importantes por conta da sociabilidade em torno de temas políticos, como arena para o teste das implicações políticas de determinados argumentos, opiniões e posições, bem como para o desenvolvimento das habilidades argumentativas e retóricas dos cidadãos que participam da discussão.

Terceiro, é necessário distinguir a conversação sociável da conversação política. Como explica Maia (2008) “a conversação sociável é ocasional e espontânea ao passo que a “conversação política” visa a modificar preferência e “resolver conflitos, decidir políticas públicas ou proteger os interesses de alguém” (ibid., p. 202). A conversação sociável ocorreria, geralmente, entre pessoas com afinidade de pensamento, enquanto a conversação política ocorre quando há um problema a ser discutido e as pessoas podem ter afinidade ou não. Na conversação política as pessoas conversam em função da busca de um consenso sobre a uma determinada questão. Enquanto a conversação sociável tem um propósito transitório com forte carga afetiva. Contudo, a conversação sociável não é oposta à conversação política, trata-se de outro fenômeno que pode contribuir para a formação de discussões políticas. No entanto, respeitadas as limitações das situações comunicativas, a internet parece oferecer boas condições para as pessoas tomarem conhecimento sobre os problemas que afetam a coletividade ou mesmo para se engajar na construção coletiva de soluções para estes problemas, por possibilitar a discussões entre cidadãos comuns, além de oferecer um amplo estoque de informação oriundo de uma variedade grande de fontes.