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Delimitação da dádiva de si: caminhos de aproximação

5. A DÁDIVA EM SUAS MÚLTIPLAS TESSITURAS E PERSPECTIVAS

5.4. OS VÁRIOS TIPOS DE DÁDIVA

5.4.1. A dádiva de si: fagulhas de nossa humanidade

5.4.1.3. Delimitação da dádiva de si: caminhos de aproximação

Diante do que expomos até agora, percebemos o quanto Mauss se fez presente na vida de seus alunos e professores, mas também foi agraciado pela presença destes em sua vida. Sendo assim, notamos que, desde cedo, a dádiva de si73, a doação de si mesmo fez parte de

sua vida. Notamos também que Mauss reconhecia nas figuras dos seus mestres – Durkheim, Jaurès e Sylvain Lévi – o reflexo de grandes personalidades de extrema dedicação e de uma imensa sabedoria. Assim, acreditamos que os mestres de Mauss doaram-se a ele. Dentro dessa perspectiva de doação, Bruaire (2010, p. 176) nos diz que ―O dom de si, ato puro da infinita potência, tem efetividade incontestável, verdade inabalável, à condição de ser mais que si mesmo [...]‖. Ou seja, para esse autor a dádiva de si é capaz de fazer transbordar o que há de melhor em cada um e tem o poder de grande afetação, haja vista os valores humanos que tal ato mobiliza. Sendo assim, ao doar-se, o ser vai além do que socialmente lhe é imposto. Nessa direção, Henri Bergson (2005) pontua que a doação de si é característica de pessoas excepcionais; e Bruaire, nesse mesmo caminho, diz que tais pessoas ―levam a ética ao extremo da abnegação e da proximidade espiritual‖ (2010, p. 191).

Dessa forma, a dádiva de si é um movimento interligado à nossa dimensão mais sutil, a espiritual, uma vez que, ao se doar verdadeiramente, o indivíduo desvela uma ―vida nova que se anuncia; compreendemos, sentimos que outra moral sobrevém. Portanto, ao falar aqui do amor da humanidade, caracterizaríamos sem dúvida essa moral‖ (BERGSON, 1978, p. 30). Em vista disso, a dádiva de si se caracteriza por tudo o que há de mais humano no ser, o que nele é singular. Nessa direção, Mauss, ao citar um ditado hindu, permite-nos entender o imbricamento existente entre o ‗se doar‘ e o que ‗já lhe foi doado‘: ―O que vós sois, sou-o eu também, tornado neste dia essência da vossa, dando-vos eu dou-me‖ (MAUSS, 2008, p. 172).

73 Fournier (2003, 2006) nos diz que Mauss não se absteve em doar muitos de seus recursos ao movimento

cooperativo, a amigos, alunos e a associações de ajuda a judeus, bem como também interviu pela liberação de pessoas durante a segunda guerra e a pós a segunda guerra também intercedeu pela não condenação à morte de algumas pessoas.

Ante os nossos posicionamentos ao longo do subtópico, gostaríamos de ressaltar, como já dissemos em um capítulo anterior, que todos nós temos momentos de doação de si; e, quando isso acontece, saímos dos condicionamentos externos impostos pela sociedade e nos eximimos de nossos impulsos egóicos, fazendo-nos lançar sobre a marcha da moral dinâmica e nos conectando com nossa dimensão mais sutil, a espiritual.

Dentro dessa perspectiva, depreendemos que os mestres de Mauss tornaram-se importantes não porque compartilhavam do gosto pelo mesmo estilo de vida ou em virtude de suas tendências teóricas, mas, sim, porque cada um deles foi capaz de fazer ressoar em Mauss o que havia de mais humano nele, a partir também do que eles transbordavam de mais humano. Sendo assim, ele aprendeu com seus professores mais do que conteúdos, ele aprendeu a dar vazão à sua humanidade e contribuir também com a fecundação da humanidade de seus alunos. Nessa direção, Freitas nos convida a refletir que ―a aprendizagem pela dádiva implica compreensão de que existe uma tendência espontânea dos indivíduos para dar, receber e retribuir‖ (2005, p. 163).

Destarte, as doações de seus mestres a Mauss o possibilitaram entrar em contato com valores propriamente humanos; e este os retribuiu doando-se a seus alunos, que, por sua vez, devem ter retribuído esta doação a outras pessoas. E é essa propensão mágica do ciclo da dádiva que faz emanar o que de bom cada um possui. Em outras palavras, a aprendizagem pela dádiva acontece pelo movimento contínuo de sua tríade, e este movimento traz em seu bojo o que nos é próprio.

Nesse sentido, Godbout nos diz que ―Desde sempre o homem dá a si mesmo, cria obrigações para si mesmo para obter um mínimo de serenidade diante daquilo que o ultrapassa‖ (1999, p. 151). Radicalizando um pouco as palavras de Godbout, afirmamos que doamos a nós mesmos porque somos humanos, porque possuímos múltiplas dimensões (inclusive as mais sutis), porque somos seres criadores e porque nossos verdadeiros valores não se encontram à venda, mas sim dentro de cada um de nós.

Após todas essas colocações, valemo-nos das palavras de Gilbert que afirma que ―Chega-se, assim, ao dom mais sublime, que não se caracteriza por sua quantidade econômica, mas que provém do ato voluntário originalmente livre, capaz de doar-se a si mesmo, de tudo doar gratuitamente‖ (2003, p. 170). Sendo a dádiva de si este tipo de dádiva sublime – que nos fez percorrer todo esse caminho para compreendê-la –, podemos agora dizer que ela é fecunda dos valores propriamente humanos, que os gesta e ao mesmo tempo os emana. Ela advém de uma moral aberta, que em algum momento foi suscitada por uma outra dádiva que durou. Enfim, a dádiva de si é um movimento humanamente criador. Nesse

momento, pedimos licença para lembrarmos um trecho da música Pop Zen, ―só é seu aquilo que você dá‖. Quando doamos a nós mesmos estamos doando o que de fato é nosso, o que realmente temos de humano. E sob a luz do movimento misterioso/mágico da dádiva de si, buscamos contribuir e ampliar o debate acerca da formação humana.

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