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OS LAÇOS/VÍNCULOS INTER-HUMANOS: AS SUTILEZAS QUE EXTRAPOLAM OS CONTEÚDOS QUE ―SE ENSINAM E SE APRENDEM‖

6. PENSANDO A FORMAÇÃO HUMANA À LUZ DA DÁDIVA DE S

7.2. OS LAÇOS/VÍNCULOS INTER-HUMANOS: AS SUTILEZAS QUE EXTRAPOLAM OS CONTEÚDOS QUE ―SE ENSINAM E SE APRENDEM‖

Marcel Mauss nos fala da força dos vínculos, do laço existente entre doador e receptor, e nos diz que essa força é de origem transcendente. Ao observarmos as aulas dos educadores, suas falas e interações com os educandos, percebemos a mágica força do vínculo, a magia do ciclo da dádiva. Trazendo essas reflexões para o campo educacional, nos perguntamos: o que pensar de uma relação pedagógica em que os vínculos inter-humanos são construídos e cuidados?

Falar do cuidado com os vínculos inter-humanos na Educação se faz relevante pela importância dessa temática para o desenvolvimento do trabalho pedagógico. Destacamos a fala de Bruno – educador da Instituição B – sobre o bom relacionamento que mantém com seus educandos e que eles mantêm com a Instituição B e demais educadores desta:

[...] a gente abraça todo mundo, é um carinho com todo mundo, então isso conta muito para o decorrer do tempo. Acho que com o tempo fica aquilo que a gente cultivou enquanto estávamos aqui juntos. Então se a gente cultivou coisas boas, então as coisas boas vão continuar porque foi tudo cultivado anteriormente.

A fala de Bruno anuncia implicitamente o ciclo de dádivas que circula naquela instituição, bem como o colorido das relações que se estabelecem ao longo do trabalho pedagógico e depois deste. Sabemos que, a depender da quantidade de educandos que tenhamos por sala de aula, estabelecer e desenvolver vínculos com os educandos é mais difícil. Porém, acreditamos que todo educador deve buscar criar e aprofundar esses vínculos, não só para a formação de seus educandos, mas para a sua própria. Dentro dessa perspectiva, destacamos as palavras de Bernardo: ―Quando se estabelece uma relação, algum tipo de retorno ocorre, algum encontro se dá. Cabe a nós aprofundá-los‖. Concordamos com Bernardo e pontuamos o que nos diz Amorim sobre o educador que transita entre as linhas tênues do ciclo da dádiva: ―numa atitude diária de dar, receber, retribuir, numa dádiva constante de nós próprios, não com a intenção de receber, mas sim porque ao darmo-nos descobrimo-nos como pessoa [...]‖ (2012, p. 29). Desse modo, podemos dizer que, da relação dadivosa estabelecida entre educador e educando, emergirá algo que tanto poderá ser positivo para o educador quanto para o educando, ou seja, ambos poderão ter seus valores humanos suscitados e impulsionados pela presença do outro.

Outro elemento positivo a ressaltar a partir da constituição de laços na relação pedagógica é que o ambiente educativo se torna mais propício à prática educacional. Destacamos a fala de Bruno sobre o ambiente que ele e os demais educadores da Instituição B (e outras instituições por onde passou) procuram estabelecer junto a seus educandos, enfatizando a questão humana como fator que promove o fortalecimento dos vínculos:

Em todas essas instituições que eu já passei, a gente sempre trabalhou no sentido de [focar] não só a questão de educação, mas focando essa questão humana. [...] Por exemplo, tem um ex-aluno [...] que até hoje ainda procura você para fazer alguma coisa, mas ele só procurou porque tinha um vínculo mais forte do que aquilo que você estava ensinando. Porque muitas vezes você pode ser muito bom naquilo que faz, mas não gera um vínculo a ponto daquele aluno retornar para você e querer fazer alguma coisa. Então, na verdade, o que gera justamente isso é essa questão das relações humanas que existem; as boas relações que existem entre a gente fazem com que, no futuro, eles possam voltar, e então podemos fazer alguma coisa em termos de educação [...] a gente tem essa preocupação de que eles peguem os assuntos, que eles aprendam, mas que também possam repassar isso para a vida deles, e que a relação sendo boa, mais na frente, a gente sempre vai se reencontrar e fazer alguma coisa juntos.

Mais uma vez, percebemos a sutileza dos elementos que extrapolam o conteúdo que ―se ensina e se aprende‖. Frisamos o retorno do educando, citado por Bruno, pois muitas vezes temos muito conhecimento sobre determinada área, sobre determinado tema e não conseguimos estabelecer uma relação pedagógica com nossos educandos; muitas vezes não conseguimos sua adesão às nossas propostas educativas. Ou seja, existe algo além do conhecimento técnico, dos materiais didáticos e dos espaços físicos: eis os laços.

Explorando a questão do coletivo, ouvimos também de Bruno uma importante fala sobre a relevância dos laços para o trabalho em grupo:

Como estamos trabalhando em grupo, acho que a questão da união que a gente tem é primordial. [...] Justamente por serem tão unidos, as coisas fluíram naturalmente durante esse período, porque eles eram muito unidos no começo[...] essa união se deve justamente a como a gente tem esses laços que a gente criou.

Os vínculos criados nessa relação pedagógica vão além da sala de aula; os vínculos/laços criados com os educandos acabam por influenciar positivamente o caminho do educador, quando este tem dificuldades. A memória dos elementos positivos de sua profissão, dos bons momentos vivenciados em sua jornada pedagógica, faz com que muitos educadores resistam às dificuldades e persistam no exercício educacional. Isso também acontece de forma recíproca com os estudantes, pois, para o ―além da sala de aula‖, muitos deles têm esse lastro de relação humana com algum(ns) educador(es). É como responde a educadora Aline, ao ser

questionada se o modo como seus educandos se portam em sala de aula compensa o esforço dela enquanto educadora:

[...] [falando sobre os alunos de uma determinada turma] eles não são excelentes alunos de língua portuguesa, mas acredito que eles são boas pessoas; porque eu não ensino só língua portuguesa, você acaba passando um pouco da experiência da sua vida, você dá conselhos; às vezes você está dizendo uma coisa que um deles estava precisando ouvir, mas o pai não falou, a mãe não falou. Então é pensando nessas turmas que eu relevo quando tenho problema em minha profissão.

Podemos dizer que os elementos da dádiva também se encontram presentes na fala e na prática da educadora Aline, pois, da mesma forma que ela doa a seus educandos algumas de suas experiências de vida – com o intuito de enriquecer as experiências deles –, a própria relação que é criada em conjunto com eles – relação que é construída e mantida também pelos educandos – se mostra como uma retribuição para a educadora em forma de conforto, de sensação de acolhimento, de reforço positivo de sua prática pedagógica.

Esta sensação de retorno positivo foi comum e constante em todos os educadores. Destacamos um trecho da entrevista com Bruno quando este nos fala sobre o esforço de seus educandos enquanto elemento compensador de seu esforço profissional. Ele foi além dos elementos puramente pedagógicos e relatou que:

Com relação aos meninos, se compensa? Acho que sim, porque a parcela que eles dão, não só de aprender, mas de amizade, de companheirismo [...], a gente convive junto aqui durante dois anos, se vendo de segunda à sexta, e às vezes no sábado, [...] então a gente tem uma história que é criada entre a gente e que mais do que aprender ou não aprender, o elo de amizade que a gente cria conta muito.

Ou seja, importam também o elo, o vínculo, o laço, a amizade, e não apenas o aprendizado dos educandos. Nesse sentido, Cláudio, educador da Instituição C, foi além e nos disse que

O que vale para mim no ato de educar [...] é a capacidade de você criar vínculo, é a capacidade de ampliar a percepção em torno de si e do outro, a partir do encontro que se estabelece no exercício de educar. [...] O valor para mim não está no retorno positivo não, [...] para mim o retorno positivo é na verdade a própria criação do vinculo, a própria experiência do vínculo, essa capacidade de você não se perceber nem diferente nem à parte da vida do aluno. Talvez ele caminhe para lados opostos do que você imaginava, mas se você é capaz de criar o vínculo com ele, isso vai independente dos lados que ele vá, independente do caminho que ele trilhe; isso é real, isso permanece.

Os próprios vínculos que foram/são criados por Cláudio e seus educandos constituem, para ele, o próprio retorno positivo de seu esforço profissional. A dádiva, mais uma vez, se faz presente, ao percebermos que esse posicionamento de Cláudio está intimamente ligado às memórias que tem de seus tempos de educando; o que foi recebido por ele, de seus educadores, agora constitui um jeito de ser e de existir para ele, que nos disse que o momento em que se sente mais realizado em ser educador é

Quando eu vejo que eu proporciono efeitos e afetos nos outros – sejam outros educadores ou outros alunos, ou até em mim mesmo – que meus professores sempre proporcionaram em mim, eu me sinto realizado.

Traduzindo para a linguagem da dádiva maussiana e da duração bergsoniana, o que um dia foi recebido de seus educadores o marcou, durou, e hoje constitui uma das fontes criadoras de sua doação a seus educandos; numa espécie de retribuição à humanidade. Nessa perspectiva Vieillard-Baron, ao tratar da relevância da duração bergsoniana, nos diz que ―o passado é a dimensão própria do espírito, e ele abre o futuro‖. (2007, p. 97), e Godbout (1999, p.197) afirma que ―a dádiva conserva o vestígio dos relacionamentos anteriores, para além da transação imediata. Ela tem memória [...]‖. Sendo assim, percebemos que a fala dos educadores e seus modos de agir respaldam-se em dádivas anteriormente vivenciadas que se fazem presentes.

7.3. A REALIZAÇÃO VISTA PELOS OLHOS DE QUEM SE DOA: PEQUENAS

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