• Nenhum resultado encontrado

ELEMENTOS IMPORTANTES PARA A COMPREENSÃO DA DÁDIVA: A SIMBOLOGIA E O FATO SOCIAL TOTAL

5. A DÁDIVA EM SUAS MÚLTIPLAS TESSITURAS E PERSPECTIVAS

5.2. ELEMENTOS IMPORTANTES PARA A COMPREENSÃO DA DÁDIVA: A SIMBOLOGIA E O FATO SOCIAL TOTAL

Para Mauss, a simbologia é de suma relevância na compreensão da sociedade. Segundo ele,

[...] todas estas expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo são mais do que simples manifestações, são sinais, expressões compreendidas, em suma, uma linguagem. Estes gritos, são como frases e palavras. É preciso dizê-las, mas se é preciso dizê-las é porque todo o grupo as compreende. A pessoa, portanto, faz mais do que manifestar os seus sentimentos ela os manifesta a outrem, visto que é mister manifestar-lhos. Ela os manifesta a si mesma exprimindo-os aos outros e por conta dos outros. Trata-se essencialmente de uma simbólica (2009, p. 332).

A partir da colocação de Mauss, notamos que as expressões, os gestos, as palavras, entre outros elementos, se manifestam em virtude de um simbolismo. Ou seja, uma lágrima, a depender da sociedade ou da ocasião, pode expressar uma dor ou uma felicidade, mas, para compreendermos o seu significado, temos que entender o seu simbolismo diante do contexto no qual está inserida. Parece-nos que, para Mauss, a simbologia dá conta das sutilezas que estão por trás de uma ação. Sendo assim, ele nos fala que não podemos compreender as ações se as isolarmos de seus contextos, ou se assumirmos uma postura dicotômica em relação à compreensão dos fatos sociais, taxando algo de normal e seu contrário de patológico, algo de sagrado e seu contrário de profano etc. Para esse autor, tudo que está inserido na sociedade se mistura e pode mudar. Sendo assim, o que parece normal pode, em um dado instante, transformar-se em patológico. Seguindo essa direção, ele chega a outro valioso conceito: o fato social total. Nas palavras de Mauss,

Há aqui todo um enorme conjunto de factos. E eles próprios são muito complexos. Tudo neles se mistura, tudo o que constitui a vida propriamente social das

sociedades que precederam as nossas – até as da proto-história. Nestes fenômenos sociais ―totais‖, como propomos chamar-lhes, exprimem-se ao mesmo tempo e de uma só vez todas as espécies de instituições [...] (2008, p. 55).

Em conformidade com o que afirma esse pensador, podemos dizer ainda que o fato social total é a interligação existente entre tudo que compõe a sociedade. A partir dessa concepção sobre a relevância da simbologia e de sua compreensão sobre os fatos sociais como totais, Mauss pôde entender a lógica que animava as ações dos povos considerados arcaicos e denominá-la de dádiva. Segundo Lira et. al. (2013, p. 22), ―Foi por meio da elaboração do conceito de fato social total que Mauss chegou ao fenômeno da dádiva, fazendo-o concluir que todas as expressões humanas são, no fundo, sinais, símbolos, ou seja, uma linguagem do espírito humano‖. Nessa perspectiva, esse teórico percebeu que as ações humanas não são restritamente motivadas por fatores econômicos como se paira na modernidade. De acordo com Mauss,

A vida material e moral, a troca, funciona aí sob uma forma desinteressada e obrigatória ao mesmo tempo. Além disso, esta obrigação exprime-se de maneira mítica, imaginária ou, se quiser, simbólica e coletiva: assume o aspecto do interesse ligado às coisas trocadas: estas não estão nunca completamente desligadas dos seus agentes de troca; a comunhão e aliança que elas estabelecem são relativamente indissolúveis. Na realidade esse símbolo da vida social – a permanência de influência das coisas trocadas – não faz senão traduzir bastante diretamente a maneira como os subgrupos dessas sociedades segmentados, de tipo arcaicos estão constantemente imbricados uns nos outros, e sentem que se devem tudo (2008, p. 106).

Como notamos, nas sociedades arcaicas age-se em prol de uma vinculação, de um estreitamento de relação; e isso se dá através do ciclo da dádiva, ou seja, pela tríade do dar, do receber e do retribuir. O que circula nesse ciclo não são apenas bens materiais, mas tudo que, por ventura, faça parte da vida, que simbolize algo. Sobre o que o circula entre os nativos, Mauss nos diz que

O que eles trocam antes de mais nada não são exclusivamente bens e riquezas móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São antes de mais nada amabilidades, festins, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras cujo o mercado não é senão um dos seus momentos e em que a circulação das riquezas mais não é do que um dos termos de um contrato muito mais geral e muito mais permanente. Enfim, estas prestações e contraprestações contratam-se sob uma forma preferencialmente voluntária, através de presentes, de prendas, se bem que sejam, no fundo, rigorosamente obrigatórias sob pena de guerra privada ou pública. (2008, p. 58)

Com base na assertiva acima, podemos dizer ainda que as ações humanas acontecem em torno de uma simbologia que ultrapassa a ideia de mera acumulação de riquezas. Vale ressaltar ainda que, mesmo os estudos de Mauss tratando de sociedades arcaicas, este teórico nos revela, mesmo que timidamente, que as sociedades (desde as primitivas até as atuais) são regidas a partir da tríade do dar, do receber e do retribuir. Ou seja, os homens, por serem naturalmente seres coletivos, são impulsionados – ao longo da sua existência – a construírem vínculos, e estes são estabelecidos a partir dessa tríade. Isso é a essência da dádiva para Mauss.

Na mesma direção, Godbout (1999) pontua que a dádiva está bem presente na sociedade moderna e que ela mesma diz respeito ao que circula em prol da construção dos vínculos sociais. Dentro dessa discussão, Freitas (2005, p. 98) também nos diz que a regra da dádiva funciona da seguinte forma: ―liberdade e obrigação de dar, liberdade e obrigação de receber, liberdade e obrigação de retribuir‖. Sendo assim, na dádiva, obrigação e liberdade caminham juntas. Ao mesmo tempo em que o individuo sente-se obrigado a restituir aquela dádiva recebida, o doador faz questão desobrigá-lo.

Assim, dizemos nós – homens modernos – ao recebermos uma dádiva: ―obrigado‖; isso se dá pelo sentimento de obrigação à restituição ante a dádiva recebida; e, em seguida, nos dizem: ―não há de que, não foi nada‖; nos libertando daquela obrigação de retribuição. Tudo se passa dentro de um simbolismo que impulsiona o ato de dar.

Dentro desse viés, a dádiva não é desinteressada e nem gratuita. Porém, como bem nos diz Godbout (1999, p. 118), ―se não existe dádiva gratuita, existe pelo menos gratuidade na dádiva‖, posto que os atores da dádiva arriscam-se em direção ao outro, doam algo – ou se doam – sem ter certeza de retorno de coisa alguma desse outro. Ou seja, existe um movimento particular de alguém sem, necessariamente, existir uma retribuição correspondente.

5.2.1. A dívida do ponto de vista simbólico e a obrigação-livre da dádiva

Na dádiva, ao contrário do que se passa numa transação comercial, a dívida é inevitável. O indivíduo que está dentro do ciclo da dádiva sabe que deve ao outro, no entanto a dívida pode ser positiva ou negativa. Quando positiva, tem-se a impressão que se deve muito ao outro. Segundo Lira et. al., essa dívida positiva, no ciclo da dádiva, ―é, antes, um estado de espírito, no qual cada um considera que, em termos gerais, recebe mais do que dá‖ (2013, p.9). Godbout (1999) nos dá um exemplo de dívida positiva quando fala do estabelecimento de relação entre cônjuges. Quando se está dentro de uma relação harmônica,

os cônjuges dizem dever muito um ao outro; já quando estão em um processo de separação, cada um acha que deu demais, sente que o outro lhe deve muito, limitando, assim, suas relações a um cálculo contábil. No que tange a dádiva negativa, Amorim (2012, p. 6) nos diz que ―podemos defini-la como valor de laço que circula entre as pessoas, que supõe geralmente mercantilização e que é realizada esperando algo em troca, quase que obrigando a que tal aconteça‖. A título de exemplificação desse tipo de dádiva, basta pensarmos nos presentes que são dados pelos políticos em época de eleição e que têm como finalidade ‗obrigar‘ o eleitor a retribuir com seu voto.

Um dos fatos importantes na dádiva é a obrigação livre. Ao passo que você recebe, você se sente impelido a doar, mas essa obrigação não é estabelecida por uma regra, por uma lei ou contrato, é uma obrigação oriunda do próprio ser, que tem a liberdade de continuar alimentando o ciclo e mantendo a relação ou de não querer fazer mais parte dele e envenená- lo48, devolvendo a dádiva o mais rápido possível.

Outline

Documentos relacionados