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2.5 A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DA HERANÇA

2.5.2 Os ervateiros: um testemunho da herança missioneira

Procurando enxergar um fio que liga a cooperação do passado missioneiro com a atual, o trabalho nas terras de uso comum dos ervateiros pode ser uma herança ou testemunho importante. Zarth (2002, p.29) acredita que “a agricultura e o extrativismo tocado pelos lavradores nacionais [...] forma um elo importante para o entendimento das relações entre a sociedade pastoril escravista e a sociedade dos colonos”.

O problema da pesquisa, no entanto, reside em descobrir se existiu um corte profundo entre a experiência jesuítica e a atual, ou seja, é possível visualizar no extrativismo dos lavradores nacionais práticas de associação e cooperação?

Habitualmente se supõe, não sem justas razões, a existência de um corte profundo entre o processo jesuítico, terminado em 1768, e a vida posterior da região missioneira. Na verdade, a desagregação do sistema jesuítico demorou várias décadas, meio século aproximadamente, e apesar da devastação ocorrida no século XIX, ficaram testemunhos que posteriormente utilizaram em seu proveito outras sociedades que ali se organizaram (CHRISTENSEN, 2001, p.117).

Segundo Christensen ficaram “testemunhos” que apesar da devastação permaneceram e formam o elo de ligação que agora interessa. Quem são eles, portanto? Para esta autora, os “restos dos povos” vivendo dos ervais constituem um traço de união entre esses períodos.

Os restos dos povos, cujos sítios ofereciam vantagens econômicas apreciáveis tais como grandes ervais, constituíram um suporte para pequenos agrupamentos humanos que persistiram em ficar nessas terras abandonadas, único traço de união que pode vislumbrar-se entre um período e outro (CHRISTENSEN, 2001, p.117).

Caso Christensen tenha razão sobre esse traço de união entre os dois períodos, então se faz necessário “entrar” nos ervais, para compreender o que restou da experiência jesuítico- guarani, sob seu aspecto de associação e cooperação.

Do lado português a extração da erva-mate, planta classificada cientificamente por Saint-Hilaire com o nome Ilex paraguaiensis93, se fez logo que essa atividade mostrava-se em

condições de apresentar resultados econômicos a serviço da empresa colonial..

A erva-mate é encontrada, em estado nativo, nas matas da bacia do Paraná, bem como em geral nos Campos Gerais no Sul da colônia. Ela foi primeiro explorada, entre nós, nos Campos de Curitiba, particularmente nas matas do seu limite oriental, onde entestam com a Serra do Mar. Ai estabeleceram os Jesuítas, no séc. XVII, sua fazenda da Borda do Campo, onde exploraram o gênero. Possivelmente foram os primeiros a fazê-lo comercialmente. Mas o certo é que a extração da erva-mate ganhou vulto, e constituía uma das principais ocupações no distrito de Curitiba. Interessante notar que o consumo da erva-mate se vulgarizou muito mais nos países platinos... (PRADO JUNIOR, 2004, p.219).

Com a erva se faz o chimarrão94 desde tempos remotos no sul da América. Depois da

conquista européia, ela continuou sendo extraída tanto dentro do império português como do espanhol. Segundo Christensen (2201, p.118) “a erva-mate é um elemento que define com ênfase a região das Missões...”. A erva-mate representa, portanto, muito mais do que apenas uma árvore, pois em volta dela existe uma cultura que ultrapassa a compreensão material.

O mate continua sendo a bebida mais importante da região herdeira das Missões. Esse hábito, com forte conotação cultural, todavia, é insuficiente para justificar que a cooperação missioneira permanece. Por outro lado é verdade, também, que a roda de chimarrão, onde todos compartilham a mesma cuia, forma um pequeno grupo onde pessoas, emoções, desejos, sentimentos e palavras se aproximam. Isso, porém, não pode servir para esconder as diferenças sociais existentes. Para Ribeiro (1995, p.423) “a roda de chimarrão se faz como sempre e é o círculo de convívio social do gaúcho, freqüentado às vezes pelo patrão para ali controlar a execução de suas ordens e distribuir novos encargos”. Seria um exagero acreditar que o chimarrão diminui as diferenças entre o patrão e o peão ou entre o rico e o pobre.

Depois da destruição das Missões os novos conquistadores passaram a explorar a riqueza econômica, formada principalmente pelo gado e os ervais. Christensen (2001, p.118) observa que nesse período, imediatamente posterior às Missões, “as plantações de erva-mate foram invadidas pelos matos e as estâncias assaltadas pelos tropeiros que levavam impunemente seus gados para as charqueadas de Rio Pardo e Pelotas”.

O extrativismo da erva-mate sofre, portanto, um declínio, mas em poucos anos é retomada como alternativa dos povos “livres”. Segundo Christensen (2201, p.119) “grandes cargas seguiam de carretas, para serem comercializadas nos mais longínquos rincões”.

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Segundo Prado Junior (2004, p.219).

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O extrativismo de erva-mate foi durante muito tempo uma forma de sobrevivência para milhares de homens livres pobres. Encurralados pelos latifúndios pastoris, esses homens embrenhavam-se nas florestas em busca do mate e ao mesmo tempo dedicavam-se a agricultura de subsistência, como típicos camponeses (ZARTH, 2002, p.87).

O Brasil nessa época, com a abdicação de D. Pedro I e a impossibilidade de seu filho assumir, provisoriamente foi governado por regentes (1831-1840). Esse fato, somado a outros, como as dificuldades de colocar o charque (carne salgada e seca ao sol) no mercado brasileiro, causa a Revolução Farroupilha. O charque, ainda no final do século XVIII, tornou- se uma opção viável para explorar os imensos rebanhos bovinos “deixados” pelas Missões.

A Revolução Farroupilha foi um movimento de elite, organizado por uma parcela dos estancieiros do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1835 a 1845. Foi a mais longa revolta regencial que transformou o Rio Grande do Sul, por quase uma década, numa República independente. Segundo Flores (1998, p.22) “a Revolução Farroupilha faz parte dos movimentos liberais que abalaram o Império do Brasil no período regencial”. Embora apontando valores como liberdade, igualdade e humanidade seus principais líderes não aceitavam nem o fim da escravidão muito menos do latifúndio.

A maior parte da região missioneira durante esse conflito esteve sob o controle do governo imperial e atividade extrativa da erva teve novo impulso. Joseph Hörmeyer (1986, P.48) que esteve na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul95 na década de 1850, tenta

explicar aos seus conterrâneos o uso da erva-mate, consumida em grande quantidade: “seu gosto é estranho; contudo, misturado com açúcar, não é desagradável, e as cuias de mate são a primeira coisa que é oferecida ao visitante pelo campeiro...”.

A extração de erva-mate exigia, pelo método utilizado e pela quantidade produzida, o trabalho de muitos braços. Produzir erva-mate fazia parte de relações sociais antigas, antes mesmo das Missões. Segundo Zarth (1998, p.69) “o extrativismo de erva-mate foi, durante muito tempo, uma forma de sobrevivência para milhares de pessoas no interior das florestas”.

Uma das práticas de cooperação mais utilizadas pelos ervateiros, também existente em outras regiões do Brasil rural, foi a do mutirão. Evaristo Affonso de Castro, numa publicação

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Quando em 1532 Martim Afonso de Souza, que andara erguendo padrões lusitanos em ambas as margens do Rio da Prata, regressava de sua famosa expedição, deixou à terra relegada apenas um nome de batismo: - Rio Grande de São Pedro. A tradição guardou o velho topônimo porque do Diário de Navegação de Pero Lopes ele passaria logo para o mapa de Gaspar Viegas (1534). Com o tempo estender-se-ia como gota de azeite a todo o território, absorvendo finalmente as referências indiscriminadas de Adjacências do Paraguai, Terra dos Tapes, Continente de Viamão, Província das Missões e mais algumas dezenas de topônimos (Na obra À Margem da História do Rio Grande do Sul – o historiados Riograndino da Costa e Silva conseguiu apurar, após demoradas pesquisas, nada menos de 41 variações toponímicas referentes à área que veio a constituir o atual Estado do Rio Grande do Sul) (VELLINHO, 1970, p.131).

de 1887, descreve um mutirão no Noroeste do Rio Grande do Sul. O trabalho no preparo da roça, realizado com ajuda dos vizinhos e amigos, como um hábito transmitido pelos guaranis, era executado com afinco e entusiasmo, como uma virtude desses lavradores nacionais, numa atividade encerrada com a alegria do fandango.

...depois que os ervateiros concluem a safra de erva, que comumente é pela entrada do verão, vão então preparar terras para a cultura de cereais, e, para esse fim, procedem da maneira seguinte: o que quer fazer uma roça e derrubada de matos convida a todos seus vizinhos e amigos para um putchirão, em dia determinado para cujo efeito, pelo hábito transmitido a eles pelos guaranis, todos se prestam voluntariamente no dia aprazado e se apresentam todos munidos de suas foices de roça e machados, e no dia seguinte de madrugada começam o trabalho com afã, trabalhando todos em comum cada um no seu eito, durante todo o dia, cada qual empenhando-se em distinguir-se dos outros no trabalho; ao por do sol concluem com o putchirão e se dirigem ao paiol, onde os espera uma lauta ceia com bebidas alcoólicas e um caramanchão ornado de muitas moças, para o fandango, acompanhado de canto em dueto de melodias melancólicas usadas pelos sertanejos (CASTRO, 2009, p.278).

O ervateiro era também um lavrador que utilizava a terra para subsistência. De acordo com Zarth (2002, p.170) “o ervateiro era um lavrador nacional que se dedicava ao extrativismo de erva-mate e à agricultura de autoconsumo nos ervais públicos”. No século XIX, o extrativismo da erva-mate constituiu-se numa importante atividade econômica e, segundo Zarth (2002, p.220) “era uma atividade de homens livres, produzindo numa sociedade onde as principais atenções eram dedicadas à pecuária dos homens abastados”.

Para realizar sua atividade o ervateiro deveria obter da administração municipal uma permissão e seguir as normas estabelecidas. Segundo Zarth (1994, p.463) “os ervais eram considerados públicos e seu extrativismo regulamentado pelas câmaras municipais...”. Zarth (2002, p.223) completa que “o extrativismo era controlado através dos códigos de posturas municipais, que previam o credenciamento dos ervateiros, aos quais, eram concedidas licenças para explorar o produto”. Veja bem que o extrativismo não era livre, mas controlado.

O controle se justificava porque grande parte da arrecadação municipal dependia da erva-mate. Segundo Zarth (1994, p.463) desde 1835 “a Câmara de Cruz Alta que disciplinava o extrativismo do mate, julgava-se com poder para impedir a privatização dos ervais, pois o produto era a principal fonte de renda do município”. Zarth (1998, p.69) complementa que os ervais “em grande parte, localizavam-se em terras públicas, devolutas, sobre as quais os lavradores nacionais avançavam lentamente, disputando-as com os indígenas”.

A Lei de Terras interfere diretamente nessa atividade, pois dificultava o acesso aos ervais. Embora a produção de erva-mate tenha continuado, conforme relata Christensen (200, p.120) que “por volta de 1870 a região missioneira contava com uma população de 170 mil

habitantes. [...] Nessa época, a economia ervateira brasileira encontrava-se no auge...”, essa atividade vai aos poucos e de forma continua sendo afetada pela legislação que avançava sobre os territórios de uso comum, visando uso mais voltado à agricultura.