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2. Discursividade da emancipação nas entrevistas

2.2 Dependência e independência

Como mencionado acima, a dependência e a independência são bons pontos de partida para a compreensão dos procedimentos que subjazem ao sentido de emancipação no plano discursivo. A independência, por vezes, é tomada como fenômeno pontual e, outras vezes, como durativo contínuo (Barros, 2002, p. 91). A temporalização com a qual é localizada discursivamente (concomitante, anterior ou posterior à narração, ou aos tempos do narrado) também varia. Para a conceituação de tempo da narração e do narrado, foi utilizada a proposição de Mariana L. P. de Barros (2009).

O jovem AV24, nos primeiros momentos de sua entrevista, afirma não saber se é independente. Para ele, a resposta ao questionamento feito pelo entrevistador (“você se considera uma pessoa independente?”) é uma incógnita. O entrevistado afirma o seguinte: “independente eu não sei assim porque::... a gente vem com a nossa caminhada com nosso percurso a gente:... acaba tendo:: a colaboração de tanta gente né? então você não sabe se você

está ar/ se você está totalmente independente né?” (Anexo, p. 1, grifo nosso). A dúvida se dá,

em primeiro lugar, porque a independência, para ele, corresponde a uma passagem importante e que dura no tempo. Nesse sentido, rege continuamente as ações das pessoas. Também se nota que a aquisição de independência é tida por ele como um processo “em curso”.

Ao ressaltar a influência de elementos externos no caminho de se tornar independente, o entrevistado reconhece ter dependência em algumas áreas da vida, em especial naquelas relacionadas ao campo afetivo (“você precisa de amor... você precisa dar amor... você precisa... é::... comER... você faz a comida para o outro comer... ou alguém faz para você comer...”, Anexo, AV24, p. 1, grifos nossos). Assim, não apenas pelo último trecho transcrito, mas também por outras passagens que se apresentam ao longo da entrevista, vê-se que a dependência é disposta, por esse entrevistado, como tema não disfórico.

CS20 por sua vez, responde à mesma questão de uma maneira distinta.

“E: (...) você se considera uma pessoa independente? C: sim

E: por que?

C: porque eu não... sei lá... não dependo de ninguém?... ah... sei lá... eu gosto de fazer as

coisas tudo sozinha... é isso... deixa eu ver... que mais?... é isso... é isso” (Anexo, CS20, p. 5,

Com um estilo mais sucinto, a entrevistada afirma ser independente, e justifica essa constatação por meio da afirmação de que considera eufórico o ato de fazer as coisas só Vale pontuar que cada um desses dois entrevistados utiliza em seu discurso uma acepção própria para a independência. O primeiro deles confere valor não disfórico ao relacionamento com os outros, considerando necessário que o jovem se valha disso como uma forma de chegar a alcançar mais liberdade em sua vida. Refere-se à dependência como algo inerente ao jogo de relações humanas no mundo, que é concebido por ele como uma rede. Para AV24, independência não poderia existir sem o reconhecimento dessa premissa.

A segunda entrevistada valoriza, sobretudo, os valores e as ações vinculados à independência e ao fazer individualizado, sem fazer, nesse momento do discurso, menção às relações de dependência. CS20 trata independência de um modo pontual. A passagem na qual afirma isso, do ponto de vista da temporalização, refere-se a um ato feito em anterioridade quanto ao tempo da narração.

SM28 traz, ainda, uma terceira forma de tratar o tema.

“eu sempre / sempre gostei de / desse: / dessa pegada de estar mais: independente de fazer

minhas COIsas... de escolher o que eu quero faZEr de escolher o que eu quero estudar eu

acho que / que uma das coisas que / que fiCOU muito da / da minha formaÇÃO da / da educação que que recebi... dos meus pais e mais ainda da minha mãe é que:... é:... eu podia

ser... várias coisas... que eu tinha oportunidade de / de:... de SER né?” (Anexo, SM28, p. 18,

grifos nossos)

O narrador euforiza a independência e, mesmo não chegando a se posicionar diretamente quanto à dependência, nota-se que o primeiro termo é mais bem visto por ele do que o segundo. Menciona os pais como referências importantes em seu processo de aquisição de independência, concebido a partir do que se pode denominar uma aspectualidade durativa contínua (expressa pela palavra “sempre”). Nesse momento, do ponto de vista narrativo, o ator “pais” desempenha o papel de destinador transitivo, pois é o responsável pela comunicação dos valores necessários à vida independente do ator “SM28”. No trecho transcrito anteriormente (de CS20), há sincretismo actancial, ou seja, um ator somente desempenhando os papéis de destinador, destinatário e sujeito. Eis uma das principais diferenças entre os dois últimos extratos de texto.

“acho que:... a independência não vem do momento que:... você sai da sua casa / eu acho que ela sai do momento em que você começa a libertar sua mente para as coisas novas... quando você deixa de... de sonhar o sonho de outras pessoas e querer sonhar o seu sonho e ir em busca dele... acho que é o que te torna independente... não o estar dentro da casa

da mãe, ou o estar dentro da casa do pai ou do tio {E: ahn {J: se tornar independente é poder

sonhar... tentar realizar seus sonhos... os SEUS sonhos não os sonhos que seus pais querem

que você sonhe” (Anexo, JS23, p. 9, grifos nossos)

Quando se constata que, para essa passagem, a independência não está relacionada diretamente à condição de moradia dos jovens, pode-se afirmar que o foco de atenção foi desviado do ator “pai, tio ou outras pessoas”. A presença ou a ausência deles não é considerada determinante na constituição dos indivíduos. Nesse sentido, pode-se afirmar, com base em critérios tensivos, que o texto confere baixa tonicidade à ação desse ator, preferindo, ao contrário, ressaltar o que realmente considera um diferencial para a problemática da aquisição de independência pelos jovens, a capacidade de sonhar os próprios sonhos. Essa ênfase pode ser verificada até no nível prosódico, quando se ressalta o pronome possessivo, em “os SEUS sonhos”. Nesse sentido, as estruturas encontradas no discurso desse entrevistado aproximam- se do sincretismo actancial, também encontrado em CS20. Do ponto de vista da temporalização, nota-se que a concepção de independência presente em JS23 remete a um ato durativo. Além disso, o processo de emancipação relatado encontra-se em relação de concomitância com o tempo da narração.