• Nenhum resultado encontrado

4. Comentários tensivos e extratextuais

4.1. Algumas considerações tensivas

4.1.2. Juventude como passagem intensa

Harkot-de-La-Taille, no artigo “Construção discursiva do adulto por jovens francesas: perspectiva dinâmica”, mostra que a ideia de juventude, segundo a visão das pessoas “maduras”, remete, por vezes, a um caráter de incompletude, seja pela comparação tardia quanto à idade das crianças (um “não mais”), seja pela precocidade que guarda quando visto com relação aos adultos (um “ainda não”). A crítica à visão da juventude como tempo de passagem e não como momento de presença, feita pela autora, recai também sobre a produção científica que investiga o ser jovem.

“Foco de diversas visadas teóricas, o jovem é perscrutado, auscultado, analisado. Nesse seu ‘entre-lugar’, entendido como no regime do ‘não mais’ e do ‘ainda não’,(5) o jovem é estudado, insistimos, a partir do lugar do adulto (6) – o ‘ainda não’ –, do ponto de vista das transformações, conquistas e dificuldades não conhecidas da criança – o ‘não mais’.” (Harkot-de-La-Taille, 2011, p. 3)

Harkot-de-La-Taille identifica uma construção até certo ponto usual na descrição da subjetividade da juventude que é feita a partir de estruturas linguísticas baseadas no “não mais” e no “ainda não”. A autora conta que essas reflexões foram inspiradas por reflexões de Jean- Paul Sartre que traz tais denominações aplicadas a outro contexto em L’être et Le Néant (1943). Essa formulação é própria de um estudo semiótico ou de cunho linguístico e atua como complementar à compreensão de que a adultez é o período no qual as pessoas são emocional e intelectualmente maduras, e que o jovem não estaria senão passando por um momento de preparação para esse que seria o período ideal da existência e o ápice do desenvolvimento humano.

Por coincidência ou não, a formulação “ainda não” parece desempenhar um papel um tanto quanto funcional na teoria tensiva. Segundo Lopes e Tatit, ela está associada à continuação da parada, no esquema de presença, posição que descreve o prosseguimento da disjunção entre sujeito e objeto (2008, p. 86). A partir dessa constatação, caberia perguntar se a juventude, segundo essa visão, não seria similar àquela da formulação concebida por Erik Erikson, que vê a etapa como uma moratória psicossocial (Identidade: Juventude e crise, 1972, mencionada por Imanishi, 2008, p. 24). Resumidamente, na proposta do autor, a etapa corresponderia a um “período de espera e maturação” dos indivíduos, antes de que estivessem aptos a comprometer-se com o mundo adulto e com a sociedade de modo geral.

Dito isso, uma vez que é vista como um fenômeno de significação, a juventude pode ser analisada por um olhar aspectual. Os contornos distinguem-na da infância (ou da adolescência), anterior, e da adultez, posterior. O fato de que seja concebida como um período de pouca relevância não corresponde a uma necessidade do discurso, mas sim a uma postura pautada dentro de um determinado sistema de valores. Tratar cidadãos entre os 15 e os 29 anos como “não mais crianças” e “ainda não adultos” é relegá-los a um foco reduzido de atenção e pressupõe um descaso diante dessa importante passagem.

Os discursos analisados nas entrevistas mostram que essa etapa é marcada pela vivência de acontecimentos de grande intensidade. Mudanças-chave, tais como o abandono do lar familiar, o enquadramento profissional e a constituição dos fundamentos da identidade pessoal, entre outros elementos, frequentemente ocorrem nessa faixa de idade, mostrando que a juventude tende a ser um período marcante e veloz, no qual muitas transformações acontecem em pouco tempo. A tomada de consciência do aspecto nevrálgico dessa fase não deve ser negligenciada. O próprio discurso legal brasileiro vem procurando corrigir a falta de atenção dada ao segmento, por exemplo, por meio da aprovação do Projeto de Emenda Constitucional de n. 42/200831.

Reconhecida a importância do segmento jovem, é interessante, antes de passar ao tópico seguinte, buscar ocorrências de acontecimentos eufóricos no corpus, uma vez que os estudos, até o presente momento, enfocaram principalmente a disforia. O depoimento de CS20 é o que mais traz elementos para isso. Um exemplo é quando menciona o envolvimento com a banda de música que transformou sua disposição diante da vida de modo geral. Além disso, ao contar que está grávida de seu primeiro filho, também comenta que vive um período de felicidade único, embora não deixe de mencionar as instabilidades do seu humor, “a partir do momento que uma pessoa/uma mulher fica grávida né?... ela sente muitas coisas... ela sente ela sente ela pode estar... triste... ao mesmo tempo ela pode estar feliz ao mesmo tempo ela pode estar... sorrindo... muitas coisas...” (Anexo, CS20, p. 8). A maternidade parece ocupar grande parte das suas expectativas de futuro, de modo que é a única entrevistada que não fala de transformação social e nem se preocupa muito quanto às perspectivas profissionais.

Um exemplo de realização eufórica encontra-se representado na conquista da vida independente de SM28, ao deixar a vida que levava em uma cidade pequena para viver em São Paulo (Anexo, p. 19). O estabelecimento desse caminho próprio igualmente relaciona-se mais

31 A denominada PEC da Juventude regulamentou a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais

do segmento, ao alterar a denominação do Capítulo VII do Título VIII da Constituição Federal e modificar seu art. 227, incluindo o termo “jovem” no texto da Carta Magna. Foi aprovada em 2010 pelo Congresso.

com o que se denomina, no nível tensivo, sobrevir do que com o modo de eficiência do pervir. O entrevistado JS23, como visto no capítulo 3, “Narratividade da emancipação nas entrevistas”, também comenta que foi com rapidez que se viu, em determinado momento de sua vida, já pagando as próprias contas e deixando a casa dos pais. Nesses dois últimos casos, do ponto de vista semiótico, é a presença do acontecimento eufórico que está regendo a aquisição de emancipação por parte do sujeito.

Por outro lado, alguns dos eventos que são recebidos com alegria pelos jovens entrevistados são marcados pelo pervir. Devido a seu caráter implicativo e esperado, este modo de eficiência conta com uma progressividade “controlada” no sentido da construção de intensidade. Nas ocorrências que acontecem dessa maneira, costumam verificar-se investimentos discursivos temáticos como conquistas e crescimento. Ele ocorre, por exemplo, no caso da entrevista de JS23, quando ele entra na universidade e consegue com esforço manter-se estudando dentro da instituição, construindo um senso de êxito a partir das vitórias cotidianas diante das dificuldades (Anexo, p. 10).