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3. Narratividade da emancipação nas entrevistas

3.2. Virtualização e atualização nas entrevistas

3.2.2. Modalizações do fazer

3.2.2.4 Motivação e fidúcia

Para dar prosseguimento ao estudo do corpus, os elementos narrativos da motivação e da fidúcia são abordados. Considera-se, nesse momento, a temática das viagens, vista, muitas vezes, como uma fonte de estímulo pessoal pelos discursos. JS23 diz, em trecho já mencionado no tópico anterior, que, caso frequentasse uma escola particular, se sentiria frustrado por não realizar as viagens ao exterior que seus colegas de escolas particulares fariam. Nesse caso, em um plano narrativo, haveria o que se pode denominar estabelecimento de um percurso narrativo passional, a insatisfação (a privação do objeto, segundo Barros, 2002, p. 64), desmotivando o sujeito a agir.

SM28, por sua vez, menciona que as viagens que fez com a escola em meio a programas de protagonismo juvenil a fizeram “despertar para várias outras coisas”, em um movimento que se pode denominar narrativamente como um programa de aquisição de saber (Anexo, SM28, p. 18). A título de contextualização, grosso modo, esse tipo de viagem corresponde a atividades de cunho social e de formação voltadas ao segmento jovem, com o objetivo de estimular os seus sensos de liderança e protagonismo. Os deslocamentos feitos no âmbito desses projetos, aproximam-se do que se denomina modalidade narrativa do saber, pois levam os indivíduos a entrar em contato com coisas novas. Tal “desvelamento de mundo” – assim como aquele proporcionado pelas experiências turísticas, pode ser considerado um movimento de abertura, pois permite que interesses por assuntos que antes não eram conhecidos se desenvolvam.

Para o entrevistado AV24, as viagens são igualmente bem-vistas. Ao mencionar algumas pessoas que lhe servem de referência (indivíduos que o motivaram a se emancipar), cita um colega que “saiu andando pelo Brasil”, em um movimento aventureiro em busca de encontros que trouxessem outros sentidos para a vida. A sua fonte de inspiração na obtenção de

27 Greimas (2014, p. 95), ao confrontar as modalidades do poder e do dever-ser localiza a relação não-

independência está associada a cada um desses personagens. O ato de uma pessoa admirar alguém ou suas ações pode significar, do ponto de vista narrativo, uma vinculação entre destinatário e destinador (manipulação).

“a gente tem um respeito muito grande por essas pessoas assim que têm uma caminhada que... que já fizeram várias coisas... uma já teve bar outra já teve: / já saiu andando pelo

Brasil tá ligado? e elas foram ganhando a vida delas assim né? então é isso né?... são as

pessoas do meu dia-a-dia que me inspiraram...” (Anexo, AV24, p. 3, grifos nossos)

AV24 também fala das viagens à Brasília, as quais realizou como meio de ativismo político. Conta que faz esse tipo de deslocamento com certa frequência. Durante uma dessas experiências relatou ter sido vítima de preconceito racial (a única referência disfórica do tema das viagens no corpus). No trecho mencionado, um atendente de hotel recusou-se a atendê-lo por ele ser negro.

A principal modalidade narrativa que se associa ao domínio semântico das viagens no

corpus é a modalidade do querer-fazer. Muitas vezes é por meio do viajar que os jovens

reafirmam a sua disposição de dar continuidade aos seus processos de emancipação. Além disso, a motivação dos entrevistados é também permeada frequentemente pela inspiração de outros jovens ou adolescentes em suas trajetórias, tomada aqui como uma espécie de “reforço tímico” que traz tonicidade à categoria em questão. Esse “reforço” também pode ser descrito analiticamente como uma manifestação das modalidades potenciais (Fontanille e Zilberberg, 2001, p. 256). Na obra citada, os autores ressaltam a importância dessas categorias dentro do percurso gerativo de sentido dizendo que “não basta que o sujeito disponha de todas as competências virtualizantes e atualizantes para que aja e se realize. É preciso também que ele

creia querer, creia dever, creia saber e creia poder” (p. 254, grifo dos autores). Ou ainda, colocam

que “o crer é então a modalidade que corresponde para nós ao modo potencializado, a primeira etapa da construção da competência, a partir da qual todas as outras modalidades poderão se desdobrar” (p. 255).

Antes de entrar na análise da fidúcia das passagens em questão, é importante mencionar que, para tal descrição, o verbete das modalidades epistêmicas (encontrado em Greimas e Courtés, 2012, p. 172), já utilizado no âmbito da análise da confiança de Sundjata (cf. capítulo 1 do presente trabalho), segue sendo de utilidade. Além dele, a proposta de Fontanille e Zilberberg (2001), de considerar o crer como parte de um complexo discursivo que compreende o saber e o conhecer é também adotada (p. 265). Vale a pena examinar de uma

maneira um pouco mais detida essas duas formas de compreensão semióticas da problemática do crer.

Ainda que não venham de um mesmo “momento” da teoria (a data de publicação do

Dictionnaire raisonné de la théorie du langage é 1979 e a de Tension et Signification, 1998), as

duas abordagens do assunto não são incompatíveis, podendo ser vistas como complementares. Greimas e Courtés (2012, pp. 172-173) dedicaram-se à articulação da modalidade epistêmica a partir da metodologia do quadrado semiótico, distribuindo-a nas quatro posições habituais (crer-ser, não-crer-ser, crer-não-ser, não-crer-não-ser28), constituindo com elas o que chamam

de estrutura modal epistêmica. Além disso, afirmaram o traço “gradativo” das modalidades epistêmicas. Segundo esse princípio, elas podem ser vistas em contraste com as categorias aléticas, que são chamadas de contraditórias, no sentido de que excluem qualquer gradiente.

Posteriormente, com a formulação do esquema de presença, no qual a categoria da potencialização desempenha papel fundamental, o crer adquiriu um lugar mais próprio no percurso gerativo do sentido (Fontanille e Zilberberg, 2001, pp. 123-147). No livro, ela foi desdobrada em assumir e aderir, segundo a sua utilização por forças endógenas ou exógenas ao sujeito (p. 256). No que tange a essa categoria, os autores de Tensão e Significação não chegam a propor encaminhamentos específicos para as suas articulações com as modalidades do ser e fazer, mantendo-se em uma explicação geral do fenômeno (p. 266). Trata-se de um tópico ainda controverso em termos teóricos, contudo, é importante debatê-lo, uma vez que valer-se dele é importante para a descrição do processo emancipatório.

Além das propostas mencionadas acima, o quadrado da agitação e do crer intersubjetivo, também elaborado por Fontanille e Zilberberg (p. 267), faz-se pertinente para a compreensão do fenômeno narrativo da modalização epistêmica, que envolve a aquisição de emancipação trazida pelo discursos dos jovens entrevistados.

Figura 10 – Categoria da agitação

Esclarecidos alguns dos termos que regem a modalidade do crer, pode-se retomar a análise de textos do corpus. A entrevistada SM28, por meio de seu discurso, demonstra dispor de certa segurança quanto à sua colocação profissional. Diz que é apaixonada pela possibilidade de transformação e vê a si mesma como uma agente de mudança social, que tem o poder de fazer com que o mundo ou o seu entorno seja diferente (Anexo, SM28, p. 15). Além disso, conta que, com treze ou quatorze anos, trabalhando socialmente, já fazia campanhas para que as pessoas doassem sangue, uma vez que elamesma ainda não tinha idade suficiente para fazê-lo. Há também uma interessante passagem na qual relata que era briguenta, e que foi perdendo essa característica conforme atingia a adolescência.

“sempre fui muito briguenta... é:... desde pequena... primeir / antes de entender do: / briguenta de bater mesmo:... me xingavam eu batia... mas depoi / depois de adolescente já era um briguenta de discutIR de questionAR e teve uma época da minha vida que eu dei

uma paRAda assim uma aPAGAda nisso... fiquei meio / meio dePRÊ meio... meio... meio não

questionadora... e aí... aí uma professora uma vez me chamou e falou assim ‘S... porque que você deixou de ser briguenta por que que você parou de questionar? porque que você:... é:: se escondeu’ né?... e isso:... reverberou na minha vida... depois dessa conversa... e aí:... voltei a ser / ser briguenta mas (dessa vez) de / de um / de um jeito:... diferente... por /por

buscar mais... os meus objetivos as minhas vontades...” (Anexo, SM28, p. 19, grifos nossos)

Se o querer é a modalidade narrativa que permeia as ações do ator “SM28”, este valor narrativo está vinculado discursivamente à transformação social. Na passagem acima transcrita, vê-se que a vitalidade da protagonista encontra-se ligada à capacidade de “brigar” pelos seus sonhos e de atuar nesse tipo de militância. A base que fundamenta as ações desse ator está muito fortemente vinculada à convicção (crer) de estar atuando pela mudança do mundo. Além

disso, pode-se afirmar que, nessa passagem, no plano narrativo, a aquisição do crer do sujeito (“SM28”) dá-se por uma manipulação reflexiva. O ator discursivo, nesse extrato de texto, investe os actantes destinador, destinatário e sujeito operador. Em termos correntes, isso corresponderia a dizer que a segurança desse indivíduo vem da sua autoconfiança.

Observando-se com mais atenção o trecho acima, vê-se que há, por parte do ator “SM28”, certa relutância quanto à ação de questionar e lutar pelos seus ideais. Isso pode ser considerado, do ponto de vista narrativo, fruto de um contrato de manipulação estabelecido com o antidestinador. Mas, segundo outras possibilidades descritivas, tal passagem poderia referir-se, talvez com mais precisão, ao duvidar (não-crer-ser), categoria posicionada na etapa da potencialização. O quadrado da agitação, de Fontanille e Zilberberg (p. 267), traz ainda uma terceira possibilidade analítica, que determina o fenômeno como uma manifestação de “medo” (a negação da firmeza).

Voltando à passagem transcrita, a partir desse questionamento, segue um período difícil para a experiência subjetiva, regido pelo que se pode denominar um valor de não-querer-fazer figurativizado pelos temas do apagamento e da estagnação. Além disso, ocorre o que a entrevistada descreve como uma depressão. No nível narrativo, isso parece se relacionar à falta de confiança interna, que influencia negativamente a capacidade de agir do sujeito. Ao entrar em crise quanto às próprias capacidades, o ator “SM28”entra em contato com uma insuficiência que torna evidente a necessidade de alguma mudança em sua vida, que o auxilie em sua recuperação. Em termos narrativos, pode-se dizer, a partir da análise dessa passagem, que o destinatário precisa de um destinador mais tônico para seguir adiante.

É o ator “professora” que investe o papel desse destinador tônico, e faz com que a conjunção do sujeito com o querer-fazer ocorra, mesmo diante das dificuldades decorrentes da crise de confiança reflexiva. O novo contrato possibilita o reencontro do sujeito com o crer-ser, dando novas forças ao progresso do PN. Ao final da etapa de manipulação, há um novo momento do sujeito, renascido após o período de questionamento e inquietação. Por fim, ele chega ao que, no quadrado da agitação, denomina-se a serenidade. Após isso, movimenta-se novamente em direção à conjunção com o estado de firmeza, talvez ainda mais confiante que anteriormente. Tal constatação se vê expressa pela frase: “voltei a ser / ser briguenta mas (...) de um jeito:... diferente (...) por buscar mais... os meus objetivos as minhas vontades” (Anexo, SM28, p. 19). Essa última afirmação consolida o êxito do PN do sujeito, expresso no discurso da entrevistada.