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3. Narratividade da emancipação nas entrevistas

3.2. Virtualização e atualização nas entrevistas

3.2.2. Modalizações do fazer

3.2.2.6 Dever e poder-fazer

As confrontações acima observadas, feitas a partir das relações estabelecidas entre as modalidades do querer e do poder-fazer, podem ser complementadas por outra homologação, já relativamente explorada dentro da tradição dos estudos semióticos, aquela que se dá entre as modalidades do dever e do poder-fazer. Greimas e Courtés (2012, p. 374), em uma etapa inicial dos estudos das confrontações modais, afirmavam a proximidade que as duas categorias guardam entre si. Sugeriram que o dever e o poder fossem considerados como “instâncias autônomas” definindo-os como complementares - um virtualizante e outro atualizante - da modalização. Além disso, ressaltaram que a definição das relações hierárquicas dominante/dominado deveria levar em conta essa complementaridade modal. O quadro abaixo reproduz as articulações então feitas.

Figura 11 – Conformidade e complementariedade entre dever e poder-fazer

Fiorin (2012, pp. 121-122) colabora na diferenciação entre as duas modalidades (dever e poder), distinguindo dois modos de determinação, um vindo do sujeito e outro vindo do objeto. A distinção proposta também pode ser descrita pelas modalizações que se dão entre sujeitos (relações intersubjetivas ou de um sujeito consigo próprio) e aquelas que acontecem entre um sujeito e as coisas do mundo.

Uma das consequências da constatação da complementaridade que há entre o dever e o poder é o fato de que a emancipação, aqui concebida inicialmente em termos de liberdade (poder-fazer) e independência (poder-não-fazer), precisa tomar como fundamentais a seu estatuto também as noções de permissividade (não-dever-não-fazer) e facultatividade (não- dever-fazer).

No corpus encontram-se manifestações narrativas de proibição (dever-não-fazer narrativo), que apontam ao impedimento de se realizar determinada ação. Um exemplo disso está no discurso de JS23 (Anexo, p. 11). O entrevistado conta que foi barrado pelo segurança de uma loja de brinquedos por ser negro. Este o tinha impedido de permanecer no estabelecimento, sob a alegação de que iria roubar alguma coisa (proibição). A reação do garoto de voltar à loja mais tarde no mesmo dia com o dinheiro e comprar o item que estava buscando antes foi feita com o intuito de tornar evidente a ilegalidade da restrição que tinha sido imposta a ele, afinal, era seu direito poder entrar e permanecer na loja sem ser molestado. Em termos narrativos, o sujeito, ao agir, estava reivindicando a permissividade do ato (não-dever-não- fazer).

Quando os discursos referem-se à negação da prescrição, é a modalidade do não-dever- fazer que está em jogo. No tópico anterior, um trecho de texto ilustra uma ocorrência textual dessa modalidade narrativa. Na passagem, AV24 mostra como é importante, para a emancipação do jovem de periferia, que ele possa romper com uma espécie de determinismo social vigente (que afirma que os indivíduos que nasceram em famílias pobres devem permanecer empobrecidos, morando em barracos) e morar em casas com melhores condições, evocando uma vitória, ainda que simbólica, sobre tal previsibilidade.

São muitas as ocorrências das modalidades deônticas no corpus, mas antes de lhes dedicar mais atenção é pertinente comentar algumas constatações realizadas por estudiosos da juventude quanto a essa mesma categoria. Harkot-de-La-Taille e Bariaud, no artigo já mencionado, verificam que a imagem de adultez de suas jovens entrevistadas encontra-se muito marcada pela perda da alegria, pelo abandono de amigos, de projetos e de prazeres. Nesse sentido, chegam a afirmar que, durante essa etapa, “paulatinamente o dever vai tomando o dia a dia e deixando menos espaço para o querer” (2013, p. 406). Muitas das queixas dos jovens nesses depoimentos dirigem-se às atividades que precisam deixar de fazer (ir a baladas, sair com os amigos) durante a vida adulta. As autoras identificam, no discurso das jovens brasileiras, que o abandono dessas atividades apenas acontece a partir dos 26 anos, quando se tornariam adultas mais “plenas” (p. 415). A tendência geral corresponde, grosso modo, ao senso comum e

tem algum ponto de convergência com os resultados encontrados pelo já mencionado estudo de Imanishi (2008), dedicado à compreensão da passagem da juventude à vida adulta.

A autora constatou que 23% dos jovens paulistanos dos dias de hoje entrevistados consideram que “assumir responsabilidades” é o ponto negativo de se tornar adulto (2008, p. 105). Mas, por outro lado, para essa mesma pesquisa do Instituto de Psicologia, o principal aspecto considerado negativo do ingresso nessa fase é “enfrentar a competição do mundo do trabalho” (49% das respostas, p. 105). Nesse sentido, falando em termos narrativos, talvez seja possível afirmar que não apenas as modalidades do dever-fazer e do não-dever-fazer encontram-se presentes na construção do conceito de adultez desses jovens entrevistados, mas também - e sobretudo - as modalidades atualizantes (poder e saber) e as realizantes (fazer). Um dos maiores medos de se tornar adulto para eles é não conseguir se realizar profissionalmente.

No que tange às respostas dadas à questão sobre o que há de positivo em se tornar adulto, 64,42% dos jovens disseram que é “tornar-se independente”. 15,58% dos respondentes afirmaram que “constituir uma família” era o melhor aspecto (p. 103). Desse ponto de vista, pode-se considerar que há, aqui novamente, uma forte presença da etapa da competencialização (representada pelo poder-não-fazer, independência), elencada como a parte mais importante de se tornar adulto. Tornar-se independente é especialmente importante para os alunos oriundos de escolas particulares (73,70%). Os estudantes da rede pública tiveram um alto índice nessa resposta (52,81%), mas também viram valor no ato de constituir família (19,48%) e de se tornar cidadãos (15,58%). De modo geral, vê-se que as respostas dos alunos de escolas do governo relacionam-se um pouco mais com funções comunitárias e familiares do que as dos estudantes da rede privada, que, por sua vez, parecem ser mais preocupados com objetivos pessoais.

O roteiro de entrevista do presente estudo não possuía questões especificamente voltadas à depreensão da imagem de adultez dos jovens. Ainda assim, a partir das respostas obtidas, constata-se que eles relatam, sim, um gradativo distanciamento das atividades de lazer para aproximarem-se, cada vez mais, daquelas relacionadas à modalidade do dever no decorrer de seus processos de emancipação. Por outro lado, não necessariamente há atribuição de disforia a essa passagem, como Harkot-de-La-Taille e Bariaud identificaram (2013, p. 406). Talvez os jovens aqui entrevistados já se encontrassem um tanto conformados ou resignados quanto aos deveres que as atividades da vida adulta lhes exigiam.

A declaração abaixo, extraída da entrevista de SM28, que conta como foi o processo de escolha de sua profissão, traz um objeto pertinente para a reflexão sobre as modalidades deônticas.

“E: (...) você se considera uma pessoa que faz o que quer?

S: me conside:ro... em partes... porque:... eu gosto muito de trabalhar no terceiro setor... gosto muito de: / de trabalhar com criança e adolescente... GOSto de trabalhar com

comunicação que: / que é a formação que eu escolhi justamente... por ter u / um:... um

ponto de interrogação... de / de mi / para mim a comunicação é... muito mais alÉM do que:... o forMAL do que o acaDÊmico... mas a comunicação é a que faz as coisas acontecerem ou não né? Então: eu tinha um pouco de dificuldade na minha expresSÃO... e aí comunicação foi... justamente pegar algo que:... eu tinha determinada habiliDAde de relacionamento de / de conVERsa... de... de... agiliZAR de mobiliZAR algumas coisas através da comunicação mas ao mesmo tempo... em várias vezes eu me pegava não conseguindo expressar aquilo que eu de fato:... queria dizer... então... esse NÓ... para mim... estudar

comunicação foi um / um jeito de... desamarrar ou de / de... aprofundar isso... mas... hoje

eu trabalho em um sisTEma de / de horá:rio de roti:na que ainda não é o que acredito para mim... é:... essa regularidade de... / de... ter que cumprir horá:rio de / de ter que estar num lugar de ter que:... fazer várias coisas do sistema CLT que:... que me: que me deixam um pouco:... intrigada nesse processo (mesmo) de / de... / de pensar se é isso que eu quero para mim...” (Anexo, SM28, p. 16)

A jovem descreve o percurso que a levou a escolher a profissão exercida até a data da entrevista. Uma referência importante feita nesse momento é a figura do talento. Essa noção pode ser compreendida como uma habilidade natural para a realização de uma atividade. Remete, no universo modal, entre outras modalidades, a um saber-fazer. A opção pela profissão de comunicadora vê-se confrontada com uma desvantagem: o “enquadramento” dentro das normas legais (o “sistema CLT”). Em um primeiro momento, esse tipo de regime trabalhista é tomado como algo que restringe excessivamente as ações das pessoas e que, por isso, é malvisto.

A figura do “sistema CLT”, ou dos “horários” e da “rotina”, para a perspectiva do sujeito parece corresponder a uma prescrição (dever-fazer) vinda do antidestinador. Por outro lado, a mesma figurativização investe também a aquisição das modalidades necessárias à emancipação (em uma última instância, o poder-fazer e o poder-não-fazer), afinal, ela representa a fonte de

remuneração que permite ao ator do sujeito subsistir. Pode-se dizer que há, aí, uma figura polêmica (“trabalho formal”), que executa dois papéis actanciais (objeto do programa e do antiprograma narrativos), e toma, desse modo, para o sujeito, um valor ambíguo.

Além disso, falando em termos discursivos, é interessante ressaltar que esse envolvimento com a atividade profissional de comunicadora acontece no começo do que virá a ser uma etapa da vida marcada por deveres e compromissos (a adultez). O desenvolvimento da atividade comunicativa, nesse âmbito, desempenha a função de assegurar a continuidade de pelo menos um elemento da infância na vida que se desenvolve posteriormente a esse período, trazendo uma vinculação à modalidade narrativa do querer, naturalmente relacionada à mentalidade das crianças.

O encontro com o fechamento de possibilidades causado pelo regime empregatício significa, no nível narrativo, um questionamento da crença do sujeito no objeto. Fontanille e Zilberberg articulam os termos dessa categoria em quatro posições: “afirmar”, “duvidar”, “negar” e “crer” (2001, p. 265). Segundo a classificação dos autores, pode-se considerar que o sujeito investido por “SM28” teria passado da fase do “duvidar” (ceticismo), chegando ao que se denomina “negar” (niilismo). Mesmo tendo sido quase invalidadas pelo discurso, as vantagens do contrato profissional, contudo, não haviam sido descartadas, em um nível pragmático, até o momento da entrevista, o que significa que há, no trecho, pelo menos algum indício da presença da categoria narrativa do “crer”.

Quanto ao nível discursivo, na temporalidade anterior ao narrado, há uma passagem na qual a jovem diz que a comunicação é sentida como um jeito de desatar um nó. Nesse momento, ela aproxima-se de uma figura que já tinha sido observada durante o estudo da palavra liberdade (“Introdução” da presente dissertação). A facilidade natural e durativa para esse ofício que declara possuir está ligada a uma dificuldade que a entrevistada tinha na infância. A superação desse obstáculo é, para ela, uma espécie de projeto para o futuro, feito em nome de seu talento.

A incomunicabilidade, sob a perspectiva modal, remete a uma impotência. No texto em questão é a incapacidade de se expressar que está em jogo. Isso aparece por meio da frase “várias vezes eu me pegava não conseguindo expressar aquilo que eu de fato:... queria dizer”(Anexo, SM28, p. 16). A dificuldade na comunicação talvez remeta igualmente a uma carência mais ampla que a mera incompetência (não-saber-fazer). Aquilo que não se conhece (não-saber-ser) tampouco pode ser expresso.

Tudo leva a crer que há, nesse caso, um sujeito virtualizado mas disjunto dos valores atuais (poder e saber). A profissão de comunicadora representa discursivamente o objeto de

valor com o qual o sujeito espera entrar em conjunção. A questão levantada pelas reflexões sobre esse trecho de texto remete a uma problemática comum à maioria dos jovens entrevistados por Imanishi, a incerteza quanto ao futuro profissional (2008, p. 105).