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3. Narratividade da emancipação nas entrevistas

3.1.1 Manipulação instauradora

3.1.1.1 Manipulação reflexiva

No depoimento dos entrevistados, de modo geral, observa-se que os relatos que tratam de emancipação muitas vezes iniciam-se por uma motivação que se pode chamar reflexiva. Muito embora não seja a única forma de construção que rege a etapa de transmissão de valores modais (pois a transitividade também encontra-se presente em algumas das passagens do

corpus), o sincretismo actancial parece ocupar uma posição-chave no que toca à construção do

senso de independência dos sujeitos.

Os entrevistados que se dizem mais “responsáveis” por suas próprias ações (manipulação reflexiva) usam construções linguísticas também mais pautadas na assertividade. Por vezes consideram que a independência é um processo que, no momento da narração, já se encontra completo (ou quase), como um ciclo praticamente cumprido em suas vidas. CS20 e JS23 são os que declaram estar mais próximos disso. O segundo deles afirma a importância de a própria subjetividade ser fonte de inspiração para os projetos futuros (Anexo, JS23, p. 9). Pouco antes na mesma entrevista, havia afirmado considerar a si próprio como uma pessoa independente. Seu discurso estabelece, no nível narrativo, um percurso a partir da negação da manipulação oferecida pelo antidestinador (“pais”). O querer-fazer do sujeito investido por JS23 também parece encontrar uma fonte de motivação em outro PN, fracassado, investido pelo mesmo ator da manipulação. Nesse programa anterior, o sujeito (“seus pais”) não pôde entrar em conjunção com o objeto (“experiências de progresso variadas”). A influência de um PN fracassado sobre outro, que acontece na sua sequência, será observada com mais detalhe adiante no presente capítulo.

Se, por um lado, o entrevistado nega o legado familiar, por outro, as forças que fazem com que possa tornar-se independente também encontram certa influência positiva vinda de seus parentes. No trecho da entrevista que está transcrito abaixo, JS23 reconhece que, na busca do seu caminho de vida, o que os pais puderam lhe proporcionar também lhe trouxe benefícios.

“E: (...) o que você busca... é: ou buscava quando você: estava começando a procurar mais / ter mais liberdade e autonomia na sua vida?

J: primeiro... acho que o que eu busCAva era: eu queria mudar a história da minha família porque eu venho de uma família que ela: vem de classe baixa e:: que nenhum dos meus familiares cursaram a faculdade ainda né?... eu sou o primeiro a entrar em uma faculdade...

e:: falei... bom... quero: ser o primeiro quero... um dia entrar... porque: ou / outras pessoas da minha família e outros... tipo o meu filho ou o filho da minha irmã... os meus sobrinhos...

possam estar dentro de uma faculdade ou estar querendo alguma coisa diferente do que aquela:... do que a vida que meus pais tiveram...

E: legal... é:... você se tornou independente porque quis?

J: sim... eu me tornei independente porque quis porque eu queria mudar... algo mais além do que minha família já era... tinha para oferecer... apesar de não ter sido uma coisa tão ruim o que minha família tem para oferecer mas assim... eu queria mais... acho que até um pouco ambicioso...” (Anexo, JS23, p. 9, grifos nossos)

Mesmo reconhecendo valor no aporte das “coisas” que seus pais tinham a lhe oferecer, o entrevistado deixa entender que a motivação de buscar uma vida independente veio por vontade própria. Falando em termos narrativos, há, aqui, uma manipulação predominantemente reflexiva. No trecho transcrito, ela se dá tanto pela comunicação do valor modal do querer como pela do dever. A modalidade volitiva é investida pela figura da ambição, ao passo que a deôntica se dá pela figurativização dos benefícios que o ator “JS23” pretende oferecer aos filhos ou sobrinhos futuramente.

No discurso dos entrevistados, as aproximações dos pais são ora tratadas como eufóricas (manipulação transitiva que confere ao sujeito os valores modais necessários à independência), ora como disfóricas (a ação do antidestinador, que se contrapõe aos programas de aquisição de independência e liberdade, que caracterizam a emancipação). Principalmente nos discursos nos quais o ator do destinatário é igual ao do destinador (manipulação reflexiva), a aparição de outro ator, imbuído da função de transmitir capacidade ao sujeito, por vezes é vista com desconfiança, como uma ameaça ao “bom-caminhar” do PN. O próprio JS23 traz outro exemplo disso.

ao mesmo tempo que / que tem aquele lance dos pais cobrarem dos jovens quererem ser emancipados... depois tem um lado meio paternalístico... porque você tem que estar perto da família / porque você tem que / ah porque você tem que ajuDAR... porque você tem que

dá / estar mais focado familiarmente... então é uma coisa mais tipo... é meio estranho... dizer (...) é que cobra e não cobra... de um lado cobra que você tenha: a emancipação de outro lado... é: você tem que estar mais junto do que o: / da onde você nasceu das suas raízes...” (Anexo, JS23, p. 10, grifos nossos)

No trecho analisado, constata-se que um ator coletivo (“os pais”) desempenha, nesse discurso, dois papéis actanciais, o de destinador e o de antidestinador. O primeiro desses dois PNs corresponde a uma manipulação transitiva pelo dever. O segundo PN também se refere à transmissão de valores deônticos, mas restringe em excesso a ação do sujeito, ao ponto dele não poder se afastar do antidestinador (“a sua família”) e ganhar a distância necessária para seguir o próprio percurso. Nesse sentido, do ponto de vista do indivíduo JS23, pode-se afirmar que a ação familiar, apesar de partir de “boas intenções”, adquire um caráter prejudicial. Segundo a terminologia tensiva, o percurso transmitido por esse primeiro fazer-fazer pode ser considerado emissivo, pois remete ao que se denomina a parada da parada (Lopes e Tatit, 2008, p. 86). O segundo PN seria pautado pelo princípio remissivo22, ao representar a perpetuação da

dependência dos filhos, a disjunção entre sujeito e objeto narrativos, ou, ainda, a continuação da parada.

Além das críticas à ação dos pais (antidestinador), o discurso faz também, mais adiante em seu desenrolar, uma avaliação negativa sobre a ação de outro ator (que investe o mesmo papel actancial). É a “sociedade”, que seria responsável, ao ver do narrador, pelo encontro com oportunidades que não representam benefícios reais em termos de emancipação. O problema com essa manipulação narrativa reside no fato de que as modalidades transmitidas não oferecem uma competencialização que permite ao sujeito entrar em conjunção com o objeto. Outro trecho da entrevista também faz uso de estruturas de manipulação que levam a um antiprograma.

falta um pouco de oportunidade não só oportunidade de:... falar “ó está aqui o: / o

emprego está aqui a vaga... o bolsista ou está aqui o... a vaga na universidade” mas sim a

oportunidade de mudar com um incentivo falar tipo: ‘pô vai lá você pode fazer mesmo’ ou... ‘você não está conseguindo?’ vamos lá nós dois e:... a gente começa a caminhar e:... depois

você segue sozinho” (Anexo, JS23, p. 12)

O emprego e a vaga na universidade correspondem a figuras discursivas que, em muitos contextos discursivos, recobririam o que se denomina valores narrativos de poder e saber-fazer. Contudo, nesse extrato de texto, as figuras, ao serem transmitidas ao ator do sujeito, não

significam a conjunção com a competência desejada. Talvez representem uma certa vantagem para ele, mas o que é dado não oferece garantias de que irá durar. Assim, a manipulação mais apreciada pelo destinatário (“JS23”) é a do segundo programa mencionado (“acompanhamento efetivo”). A recusa do antiprograma pauta-se em uma disposição narrativa que pode ser verificada em outros discursos. Um exemplo está naqueles textos nas quais um indivíduo não confere grande valor a um benefício assistencialista, pois ele simplesmente “dá o peixe, mas não ensina a pescar”.

Do ponto de vista da manipulação reflexiva, tem-se verificado que o interesse do destinatário-sujeito nos discursos do corpus costuma estar na duratividade dos valores transmitidos. Além disso, em um registro mais coloquial, pode-se afirmar que há nos discursos dois tipos de indivíduos, os que são mais decididos e assertivos (mais regidos pela pontualidade) e aqueles mais profundos, por exemplo, os que buscam respostas interiores e exploram questões existenciais (próximos da duratividade).