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2. Discursividade da emancipação nas entrevistas

2.6 Família e o mundo dos adultos

Analisando-se os discursos a partir do tema da família, de uma maneira geral, vê-se que os entrevistados mencionam as respectivas famílias nucleares como pontos de partida, ou dependências prévias, a partir das quais é necessário que se faça um movimento de saída para que se possam buscar os interesses concernentes a uma vida própria. Isso vai ao encontro de critérios sociológicos amplamente utilizados na metodologia de estudos da transição e da juventude, que reconhecem no abandono do lar de origem, entre outros pontos, um marco na passagem da vida jovem para a vida adulta (Pimenta, 2007, p. 26).

A extensão do período de permanência dos jovens na casa dos pais (tendência crescente em nível mundial, 2007, p. 20) exige uma relativização quanto à noção tradicional dessa passagem. Se, por um lado, há jovens que ainda não abandonaram a casa dos pais, porque não conseguiram estabelecer-se profissionalmente e, por conseguinte, não possuem recursos para viabilizar tal saída, há aqueles que, embora sejam independentes financeiramente, não deixam a morada da família, por razões variadas (p. 19). As motivações pelas quais um indivíduo permanece na casa dos pais, abandona-a ou retorna ao antigo lar, hoje, não são as mesmas que há algumas décadas. Uma concepção de juventude que tenha a condição de responder às novas disposições tem sido discutida entre os sociólogos da área, na busca de uma maior compreensão sobre essas variáveis.

Para entender um pouco melhor a problemática, Pimenta, citando José Machado Pais, traz algumas palavras que descrevem as dimensões da mudança pela qual os jovens têm passado a partir dos anos 90.

“As tradicionais distinções entre o estudante e o não estudante, o trabalhador e o não trabalhador, o solteiro e o casado dão lugar a novos estatutos intermediários e reversíveis, mais ou menos transitórios e precários (Pais, 1994) e a estilos de vida mais flexíveis, que combinam trabalho e estudo, trabalho e lazer” (2007, p. 94)

A flexibilização, mencionada no nível do trabalho, do casamento e da formação escolar, atinge também o nível da família, cujas relações vêm tornando-se mais variadas em suas naturezas e em suas possibilidades de estabelecimento (casamento homossexual, famílias constituídas por pais ou mães solteiros[as], por exemplo). Diante das novas configurações, os jovens também parecem expressar certa tendência a outros modos de comportamento. O prolongamento da vida no lar familiar seria uma dessas manifestações.

Outro fator que instiga a permanência na casa dos pais é a instabilidade que se verifica na esfera do trabalho, decorrente, entre outras coisas, da inconstância econômica do atual sistema, incorrendo na transferência de valores de incerteza para aqueles que desejam integrar- se ao mercado (Imanishi, 2008, p. 45). Além disso, com a queda do modelo do Estado do bem- estar social e a flexibilização da mão-de-obra, dos locais de produção e do próprio capital, hoje é mais difícil a elaboração de um projeto de vida e de um planejamento a longo prazo no âmbito pessoal (p. 46). Os jovens, por sua vez, veem-se diante de uma constante necessidade de reavaliação e adaptação, em uma esfera de competição que, muitas vezes, significa pressão para que sejam “proativos, criativos, seguros, determinados e, porque não, infalíveis” (p. 45). Diante dessa atmosfera é que se justifica a recusa da juventude dos dias de hoje a deixar os lares paternos e maternos. Mesmo assim, é necessário compreender cada caso em sua particularidade, e, embora essa seja uma tendência que permeia os jovens da pós-modernidade de um modo geral, certamente há exceções.

Pimenta relembra que uma família também pode depender do jovem em muitos aspectos, pois, a despeito da ideia (que parece ser a única possibilidade) que atribui a dependência como vindo dos jovens a seus pais, há casos nos quais o laço de dependência realiza-se no fluxo oposto (2007, p. 69).

Imanishi entrevistou 520 alunos do Ensino Médio de São Paulo (2008, pp. 77-78)21.

Dentre as respostas de múltipla escolha que aplicou, constavam avaliações realizadas pelos jovens sobre o modo como os adultos de hoje dirigem o mundo. No total das respostas obtidas, 27,5 % dos que responderam à pesquisa consideraram que os adultos dirigem bem o mundo, 48,65 % afirmaram que eles o dirigem mal e 22,69 % assinalaram que realizam essa tarefa muito mal. A autora do estudo considera que há um pessimismo com relação à avaliação da capacidade dos adultos de serem responsáveis pelo mundo.

Se esse fato for observado com relação à natureza da escola, verifica-se que “os sujeitos das particulares foram significativamente mais críticos em relação a essa avaliação: 85% consideraram que os adultos dirigem mal ou muito mal, enquanto esta porcentagem caiu para 56% entre os alunos de escolas públicas”. Por um lado, vê-se que os adultos são majoritariamente mal avaliados, por outro, há um percentual considerável de jovens de escola pública (41,99%) que avaliam que eles o dirigem bem . Ou seja, a sanção negativa dos jovens da educação privada encontra certo contraponto no grupo de entrevistados oriundo das instituições do governo que, sim, acreditam (em certa medida) na capacidade dos adultos de dirigir o mundo.

Nesse sentido, e voltando aos dados do presente estudo, em se observando o fato de que os jovens entrevistados no âmbito desta dissertação passaram todos por escolas públicas, vê-se que há uma convergência entre os resultados aqui obtidos e os dados mencionados acima. Em ambos os casos, há euforia e disforia no que tange à avaliação dos integrantes do “mundo dos adultos”. No corpus deste trabalho, analisando-se em especial a figura dos pais, os entrevistados também a julgam de maneira ora positiva e ora negativa em seus depoimentos.

Na análise feita anteriormente neste capítulo, apontou-se que o tema família foi depreendido como eufórico e disfórico, tanto para os entrevistados do trabalho de Harkot-de- La-Taille e Bariaud, quanto para os do presente estudo. Diante dessa constatação, endossa-se a hipótese de que há um regime dialógico entre relacionamento familiar e independência no discurso dos jovens de São Paulo. Os entrevistados não veem a vida em família e a vida emancipada como caminhos necessariamente excludentes e reconhecem que a interferência de uma na dinâmica da outra, por vezes, pode se dar sem inconvenientes. Ao mesmo tempo, a saída do lar familiar é um “degrau” no caminho da emancipação que é almejado por todos.

Como visto, os jovens que concederam entrevista ao presente estudo, de maneira geral, não veem a proximidade das suas famílias como um impeditivo à emancipação. JS23, por

21 Trata-se de um interessante estudo realizado a partir dos dados obtidos com a aplicação questionários

com alunos de escolas públicas e particulares da cidade de São Paulo. As perguntas dividiram-se entre dissertativas e de múltipla escolha.

exemplo, em trecho já mencionado, relativiza a importância que residir na casa de familiares possui para ele e para a constituição de seu senso de independência. Como visto, diz que ser independente é poder sonhar os próprios sonhos e “não o estar dentro da casa da mãe, ou o estar dentro da casa do pai ou do tio” (Anexo, JS23, p. 9).

CS20, por sua vez, vê com tranquilidade a possibilidade de permanecer na casa de sua mãe por mais uns anos, embora dê importância ao fato de ser independente. No trecho abaixo, relata que pretende morar por mais um tempo onde está e só depois mudar de casa.

“C: eu pretendo... por enquanto eu pretendo ficar lá na casa da minha mãe... onde eu estou lá... depois... seguir a minha vida adiante... né?... porque:: ser independente é muito imporTANte... na nossa vida... é isso

E: mas você acha que:... vai sair um dia ou você acha que:: você pode continuar lá? C: lá eu acho que eu posso continuar...

E: pode?...

C: posso... eu posso continuar lá mas... um dia eu sei que eu vou ter que sair... que sair... e viver a minha vida né?... como uma pessoa independente... é isso...” (Anexo, CS20, pp. 7-8, grifo nosso)

Ao ressaltar a importância de reconhecer o momento do abandono do lar familiar de origem para uma compreensão mais profunda dos processos de transição para a vida adulta no Brasil, Pimenta (p. 26) também conta que essa variável é apenas uma de cinco. As outras são a trajetória escolar, a inserção na vida ativa, a qualidade das ocupações e a constituição de uma nova família, segundo propõe em seu estudo sobre as representações, identidades e trajetórias de jovens no país.

Para encerrar a análise do nível discursivo das entrevistas coletadas, é possível realizar, ainda, algumas considerações a título do estabelecimento de um diálogo entre as etapas de análise. Em primeiro lugar, é interessante pontuar que, no nível discursivo, o investimento actorial do sujeito não se encontra necessariamente atrelado à articulação fórica do tema da transformação social. Ou seja, não é porque o sujeito é investido com um ator individual que ele deixa de manifestar euforia diante desse tema. Assim, SM28 e JS23, por exemplo, a despeito de se referirem euforicamente à luta pela alteração das realidades nas quais vivem, utilizam estruturas linguísticas individualizadas em seus discursos.

Ainda no que diz respeito à relação entre actorialização e tematização, vê-se que existe a tendência de que alguns temas sejam mais usados por narradores que se valem de atores individuais, e, outros, por narradores que usam atores coletivos para expressar suas ideias.

Assim, medo, rejeição, ensimesmamento, tristeza, dúvida, beleza e conhecimento são exemplos de temas predominantemente individuais. Por sua vez, os temas pressão social, segregação, perda, convívio e colaboração tendem mais à actorialização coletiva (alguns deles por razões óbvias).

No que toca à temporalização, é interessante observar que CS20 foi a única que considerou independência um fenômeno pontual e que se declarou plenamente “independente”. Além dessas particularidades discursivas, essa entrevistada destaca-se por ser a mais jovem do corpus e por ser somente ela que trabalha no setor de prestação de serviços, não tendo qualquer envolvimento profissional com organizações do terceiro setor. Os demais concebem independência como um fenômeno durativo e não terminado. Além disso, SM28, AV24 e JS23 trabalhavam, no momento de concessão das entrevistas, em ONGs ou associações. No cruzamento do critério da espacialização com a figura da família, viu-se que a saída da casa dos pais durante a etapa da juventude geralmente não é vista como imprescindível para a obtenção de independência nos discursos do corpus. As viagens e as saídas ou passeios (eufóricas) constituem o principal mecanismo de expansão territorial dos sujeitos.