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Depoimento do Escritor Corsino Fortes

Ex.ma Professora Doutora Vania Chaves Ex.mos Catedráticos de Portugal e do Brasil Prezados Conferencistas

Queiram permitir-me recorrer à perenidade de breves secâncias cul- turais entre o Mundo Lusófono e Jorge Amado, nomeadamente: à rele- vância da intertextualidade afro-brasileira no segundo quartel do século passado; às raízes históricas e pontos de afeto entre Brasil e Cabo Verde a potenciar o neorrealismo recebido; à simbólica convivência telúrica entre personagens criadas por Jorge Amado e Baltazar Lopes; à visita de Jorge Amado a Cabo Verde em maio de 1985; a Jorge Amado, um dos lídimos obreiros da Lusofonia.

À minha prezada amiga e escritora Ana Paula Tavares, direi que recebi o convite com a morabeza de quem se sente envolto na angola- nidade fraterna de “Estamos Juntos” e através da Senhora Presidente da Academia Brasileira de Letras e da ditosa filha Paloma Amado, agra- deço com penhor o muito que aprendi das comunicações que me pre- cederam.

40 Corsino Fortes Minhas Senhoras e meus Senhores

As mulheres e homens de cultura do meu país, através da Associa- ção de Escritores Cabo-verdianos, rejubilam com esta honrosa opor- tunidade e rendem as suas homenagens à Comissão Organizadora que materializa o histórico evento sobre a perenidade da memória e legado de Jorge Amado. Evento que possibilita valorar e vivenciar o quilate determinante a nível estético, cultural e político da emergência da inter- textualidade afro-brasileira que a partir dos anos 30 do século passado contribui para a libertação e substantivação do destino da Lusofonia.

Bebendo da inesgotável fonte do Professor Manuel Ferreira, é hoje inconteste a afirmação que as malhas do salazarismo fascista não con- seguiram impedir que a leitura, a partir dos princípios do século, de cer- tos textos nomeadamente de Graciliano Ramos e de Jorge Amado, pe- netrasse em algumas das ex-colónias portuguesas em África, tais como Angola e Moçambique e, com acento especial, em Cabo Verde, exer- cendo assim uma inegável influência na formação literária e estética de muitos jovens escritores africanos.

De Angola, Costa Andrade é determinante ao afirmar aos Amigos Brasileiros:

Entre a nossa literatura e a vossa os elos são muito fortes. Expe- riências semelhantes e influências simultâneas se verificam. É fácil ao observador corrente encontrar Jorge Amado e os seus Capitães da areianos melhores escritores. E acresce que, desde Drummond de Andrade a Solane Trindade, a literatura brasileira está presente nas égides das novas gerações que lutam pela li- berdade. A vossa literatura influenciou a nossa. Forjou a mesma identidade e o hibrido resultou das mesmas coordenadas. É de salientar que estes contributos já vinham do século XIX, com excelente repositório de influências culturais, ideológicas, políticas e literárias do Brasil, onde este país é apontado como modelo para a independência.

É significante este hibridismo de que nos fala Costa Andrade, no- meadamente entre o branco e o negro, quando o próprio Jorge Amado

Depoimento do Escritor Corsino Fortes 41 se assume como afro-latino, no excerto do poema em que patenteia a sua mestiçagem étnico-cultural:

Conheci hoje o negro que há em mim E que vive no meu peito ignorado Sob uma pele branca de europeu

Aquele negro que se deu ao Jorge Amado E que hoje se me deu.

Nessa abrangência, a poeta Noémia de Sousa, de Moçambique, através de signos étnico-culturais e ideológicos, africaniza a estrutura- ção semântica do longo poema “Samba”, no abraço da África-Europa- -Brasil, nesta estância final:

Os ritmos fraternos do Samba

Acordando o meu povo adormecido à sombra dos imbondeiros Dizendo na sua linguagem encharcada de ritmo

Que as correntes dos navios negreiros não morreram, não, Só mudaram de nome

Mas ainda continuam Continuam

Oh ritmos fraternos do Samba.

Entre São Salvador da Bahia e a Baía do Porto Grande, na cidade do Mindelo, ilha de São Vicente, as impressões digitais telúricas e au- tárquicas das obras de Jorge Amado percorrem e encontram a trilha da socialização de uma cultura mestiça que, como uma ponte, se estende de um a outro lado do mar, graças à envolvência das raízes históricas, pontes de afeto e afinidades comuns.

O historiador cabo-verdiano António Leão Correia e Silva, na iden- tificação dessas raízes, pontes e afetos, na sua obra Combates pela His- tóriaregista:

As relações entre Brasil e Cabo Verde perdem-se no tempo, pois a colonização do primeiro a seguir a 1500 foi feita a partir de

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Cabo Verde, uma vez que o arquipélago, transformando-se em interposto do comércio escravo e, ao mesmo tempo, laboratório de pesquisas e experimentações de natureza vária, iria fornecer ao Brasil a mão-de-obra necessária à exploração dos seus vastos recursos naturais.

Na mesma obra acrescenta: “Estilos de vida e modos de organiza- ção da sociedade foram igualmente transplantados das ilhas onde, aliás, se construiu pela primeira vez uma sociedade de convívio prolongado entre negros e brancos.”

Nessa abrangência, o historiador Daniel Pereira, na sua obra Im- portância histórica da Cidade Velhareconta que ali, a partir da Ribeira Grande, ocupando o vale e ensaiando as primeiras culturas rudimenta- res, os europeus ergueram a primeira cidade portuguesa na África sub- saariana, o exato lugar de experimentação de homens, animais e plan- tas, uma espécie de placa giratória entre três continentes, recebendo de todos e a todos dando.

Como resultado desse passado, que entrelaça na dor e no amor afi- nidades e pontes de afeto, o Brasil é considerado pelos cabo-verdianos como um irmão, tão parecidos nas raízes libertárias de afirmação hu- manística.

O poeta trovador B. Leza eterniza este lastro de trocas afetivas de sangue e cultura na morna que a dado passo canta:

Brasil, bô ê nosso irmão Sim c’mabô nôs ê moreno Brasil nô crebo tcheu Nô crebo tcheu de coraçon (Brasil, és nosso irmão És moreno como nós Brasil nós te amamos No fundo do coração)

Todavia, as afinidades literárias foram os vasos comunicantes en- tre escritores brasileiros e escritores cabo-verdianos que trouxeram um

Depoimento do Escritor Corsino Fortes 43 peso fundamental ao percurso literário das elites ilhenas, a partir dos anos 30 e com maior repercussão nos de 40 e 50 do século passado, para a eclosão de uma modernidade estética na literatura cabo-verdiana que prima pelo fincar dos pés na terra crioula, ser o cabo-verdiano proprie- tário cultural das suas ilhas e dos seus valores, libertando-se de vez dos desenraizados modelos estilísticos cultuados na metrópole, que oprimia através da colonização e opressão fascista a sociedade cabo-verdiana.

Escritores como Jorge Amado (de Jubiabá, Capitães da areia e Ga- briela cravo e canela) e tantos outros como José Lins do Rego, Gra- ciliano Ramos, Jorge de Lima (daquela “Nega Fulô”), João Cabral de Melo Neto, Lygia Fagundes Telles, Vinícius de Morais, Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, são comuns e não só nas estantes como na massa crítica dos intelectuais cabo-verdianos ao lado dos nativos como Jorge Barbosa, Baltazar Lopes, Manuel Lopes, que se organizaram no final dos anos 30 e lançaram o movimento literário claridoso, o qual se veio a revelar como uma imensa força aglutinadora cujos ecos repercu- tem até hoje entre o antes e o depois na literatura cabo-verdiana.

Segundo defende Baltazar Lopes, a literatura chegada e recebida em Cabo Verde era um verdadeiro deslumbramento. Razões de ordem social, cultural, histórica e ideológica potenciaram a operacionalidade de influências da literatura brasileira no processo de mudança e trans- formação tão radical que daria origem ao aparecimento da revista Cla- ridadea partir de 1936, data da publicação da primeira revista das nove surgidas, que se estenderam de 1936 a 1960.

Já depois da publicação do romance Chiquinho numa interpretação literária e sociológica, afirmava ele em 1956 que a ficção e a poesia brasileira referencia-nos um ambiente, tipo, estilos, forma de compor- tamento, defeitos, virtudes, atitudes perante a vida que se assemelham aos destas ilhas, principalmente naquilo que as ilhas têm de mais cas- tiço e de menos contaminado. E pensamos – continua Baltazar – que essa identidade ou quase identidade de subjacências não pode ser de- turpação de escritores, ficcionistas e poetas aliterados; deve correspon- der a semelhanças profundas de estrutura social, evidentemente com

44 Corsino Fortes as correções que outros fatores, uns iniciais e outros supervenientes, exigem.

A obra de Jorge Amado chega a Cabo Verde como a modulação lírica de uma prosaica dialética a reivindicar um outro estatuto, a obje- tivar o universo de uma outra brasilidade em relação

aos famintos

aos incompreendidos aos injustiçados

aos marinheiros grevistas aos marginais

ao submundo dos trabalhadores braçais à grande massa de mão-de-obra alienada.

Tal substantivação humanística se empolgou a elite cultural, tam- bém não deixou de emocionar uma expressiva franja de homens e mu- lheres anónimos, por se reverem no retrato social e individual do rea- lismo autêntico e simplista das personagens que se misturam com o povo das ilhas. Chegam então a Cabo Verde os moradores do Tabuão da Baixa do Sapateiro e do Pelourinho, habitantes suarentos dos en- cardidos sobradões do Salvador e das velhas ladeiras; chegam e entre- cruzam com Nha Rosa Calita, Mamãe Velha, Nhô Chic’Ana, Totone Menga Menga, Chiquinho, Toi Mulato, Chico Zepa, Parafuso. Che- gam, respiram e entrecruzam com a degradação socioeconómica e po- lítica de um tempo cabo-verdiano que Baltazar Lopes localizou, um tempo que trazia no mais recôndito dos seus propósitos os genes do protonacionalismo.

Assim, o Professor Alberto de Carvalho diz que “Baltazar Lopes realiza um «Chiquinho» com um máximo de verosimilhança na sua ficção do universo humano, tornando-o, como Jorge Amado, mais real do que a própria realidade, através de uma técnica inédita na literatura cabo-verdiana, que só posteriormente viria a ser seguida e explorada pelo neorrealismo português.”

Como um coração que bate à porta da sua morada, com a morabeza do patrício que chega à ilha, ao lar, após séculos de peregrinação lite-

Depoimento do Escritor Corsino Fortes 45 rária e cultural ao redor do mundo, foi redobrado o deslumbramento da chegada de Jorge Amado e esposa, Zélia Gattai, a Cabo Verde, em maio de 1986, na comitiva do Presidente da República Federativa do Brasil, José Sarney.

Regressada a comitiva ao Brasil, Jorge Amado e Zélia Gattai pro- longam a estadia por mais um mês para dar satisfação tanto à frater- nidade ampla como à massa crítica e emocional da cabo-verdianidade. Fez questão de visitar o desativado Campo de Concentração do Tarra- fal, presídio onde penaram Luandino Vieira, Chico Lyon de Castro e tantos outros amigos. Foi-lhe mostrada também a cela onde o poeta e histórico político angolano Agostinho Neto cumpriu a sentença.

Assistindo a um batuque na Praça Pública, na cidade de Santa Ca- tarina, Jorge Amado e Zélia Gattai sentem-se na Baía de Todos os San- tos, já que as cabrochas cabo-verdianas na vertigem da dança ao som do canto são iguais às mulatas cabo-verdes do Brasil no requebro e na graça. Zélia Gattai aponta ao marido uma das formosas batucadeiras: “aquela parece com uma filha de Santo, Olega Aleketu”. Estamos na Bahia, responde Jorge, o ritmo e os deuses são os mesmos, os encanta- dos dançam acima das ideologias.

Assim, não espanta que o poeta e ensaísta Gabriel Mariano tenha encontrado “vivo” em São Vicente Quincas Berro d’Água entre os ma- rinheiros da Praia do Bote e Rua de Passâ Sabe.

Jorge Amado durante a sua estada em Cabo Verde deu uma histórica e determinante entrevista ao Movimento Pro-Cultura através dos jovens intelectuais José Luís Hoppfer e Daniel Spínola. A perspicaz acutilân- cia das questões debruçou-se sobre: 1) as circunstâncias e a evolução da sua escrita; 2) a evolução formal e a caraterização ideológica da res- petiva obra; 3) a recrudescência do movimento literário-cultural negro brasileiro e 4) a polémica sobre a problemática do crioulo em Cabo Verde.

Jorge Amado, servindo-se da sua vivenciada mundividência, res- pondeu com base numa dialética do contraditório: dos trinta romances escritos, tudo se deveu ao povo baiano, uma literatura social criada so-

46 Corsino Fortes bre a realidade brasileira, sobre a vida popular na cidade e no campo. Se há uma evolução formal, há sempre uma unidade funcional na de- fesa do interesse do povo contra os seus inimigos, ao lado da liberdade contra a opressão, ao lado da luta para o fim da miséria e da fome, para uma vida e um futuro melhor. Enfatiza que já não tem paixão pelas classificações literárias, que não passam de rótulos presos com alfine- tes.

Esteve no meio da luta contra o racismo e sabe que o melhor re- médio para o combater é a mistura de raças, de sangue e de culturas. E aconselha aos criadores cabo-verdianos, poetas e ficcionistas, que escrevam o crioulo ultrapassando a oralidade com vista à fixação da língua como literária.

Regressando às impressões digitais e telúricas do neorrealismo bra- sileiro e nomeadamente das obras e personagens de Jorge Amado ins- critas sobre o estro de Oswaldo Alcântara, pseudónimo poético de Bal- tazar Lopes da Silva, dois momentos se destacam. No primeiro, o poeta funde os universos do Brasil e Cabo Verde entre vozes e instrumentos de corda neste excerto:

Passa a serenata

Mas no coração dos que temem a luz do dia que vai nascer Ficam os gemidos do violão e do cavaquinho

Vozes crioulas nesse noturno brasileiro de Cabo Verde

E, aprofundando o abraço de fraternidade ampla, na interpenetra- ção de territórios e latitudes entre brasilidade e africanidade, Oswaldo Alcântara dedica ao seu amigo desconhecido no outro lado do Atlân- tico:

Poema a Jorge Amado

A Jorge Amado esta voz do irmão desconhecido:

Para que no seu território haja o abraço de outra latitude. . . Para que Zúmbi dos Palmares ilumine também

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os meninos da ponta-de-praia, os rocegadores de carvão e as ve- las dos faluchos,

e a Princesa de Aioká leve os meus marinheiros para o seu palácio do fundo do mar. . .

Para que o moleque Balduíno pegue novamente as goiabas-de- -vez

no quintal do Comendador. . .

Para que os meus contrabandistas atravessem o canal na compa- nhia de Guma

e Lívia espere os meus marinheiros no cais quando anoitece subitamente no mar. Nesta névoa clara da distância vejo o abraço que o seu gesto lançou, Jorge Amado,

sobre as minhas ilhas –

sobre todas as ilhas que Deus Nossenhor semeou na cintura do mundo.

Amanhã irei ouvir outra vez as histórias do velho Francisco: Finita terá a carapinha aloirada da água do mar. . .

E quando voltar à casa já tem muito que contar:

Será habitante deste puro e pungente mundo capanga de António Balduíno. . .

Dois irão com ele.

Na sua face resplenderá o brilho de uma estrela nova que desco- briu

– Finita esteve ouvindo atabaques e gongás No candomblé do pai-de-santo Jubiabá. Dois irão com ele.

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Viu:

Carregadores do cais, saveireiros

(“As cidadezinhas alegres do Recôncavo”) grevistas,

prostitutas e soldados,

heróis de A B C morrendo de faca em cheiro de santidade.

Dois irão com ele.

A minha saudade da era de ouro prestigia de distância esses nomes brasileiros,

Jorge Amado,

Um poeta português disse que eles são difíceis de soletrar: O que eles são é difíceis de esquecer.

Jorge Amado. . . Eu queria falar consigo

em tom coloquial de amigo distante mas não posso.

A fala sai-me indisciplinada e confusa

e tenho na cabeça a bebedeira de um deslumbramento. Tudo por culpa desta minha chama tumultuosa e imperfeita.

Cumprido o tempo que me foi destinado, não estará longe da ver- dade a afirmação de que Jorge Amado, através da orquestração morfo- lógica e semântica de uma pluralidade de sinergias culturais na cons- trução das suas personagens, arredondou o corpo e a alma de um povo que se liberta das páginas dos romances e entra pela universidade da sobrevivência ganhando neste mundo a perenidade da vida; isto é, não estará longe da verdade a afirmação de que Jorge será o sempre Amado como um dos lídimos artesãos da Lusofonia: a expressão dinâmica e cultural de uma comunidade de memória de mais de duzentos milhões

Depoimento do Escritor Corsino Fortes 49 de falantes que vêm com pés de passado e mãos de presente conjugar o verbo ser no futuro do indicativo.

Muito obrigado