• Nenhum resultado encontrado

1. Quando recordo Jorge Amado, o que antes de tudo me ocorre é o homem único e o amigo incomparável, toda a generosidade e frater- nidade de que era capaz. E, acrescendo a uma imensa bondade natural, uma enorme sabedoria, construída ao longo do percurso de uma vida tão intensamente vivida como raras o terão sido.

Uma vida em total comunhão e sintonia com o povo a que pertencia – daí também a sua universalidade e a universalidade da sua obra –, povo que imortalizou nos seus romances e para cuja dignificação tanto contribuiu. Povo da Bahia e do Brasil, mormente negros e mulatos, defensor estrénuo da mestiçagem e seus valores.

Uma vida de luta e sonho, de perseguições, prisões, exílio, trabalho criador da escrita, que lhe deu projeção universal – o que para Jorge nunca constituiu motivo de soberba ou vaidade, a que era totalmente imune. Aliás, consagrações, condecorações, homenagens de toda a

1 Este texto é tributário – e tem algumas transcrições parciais – de vários outros

que o autor escreveu, ao longo dos anos, sobre Jorge Amado.

74 José Carlos de Vasconcelos ordem, apenas as “suportava”, com um sorriso, para não ofender ou desgostar os que com boa vontade as promoviam.

E sobre tudo isto é bem significativo o belo final de Navegação de cabotagem, de 1992, seu último grande livro (que tive a alegria e honra de me ser também dedicado), de que ressuma ainda e sempre a sua fantástica alegria e paixão de viver.

2. Quando recordo Jorge, também me ocorre de imediato o ter sido ele um grande amigo de Portugal. E um homem, um cidadão, um es- critor que como raros lutou não só contra todas as formas de discrimi- nação – em especial em função da raça, da religião e do sexo –, como de certo modo encarnou os valores do encontro de culturas, o fraterno espírito que deve existir entre todos os povos de língua portuguesa, no respeito integral pela identidade e pelas especificidades de cada um, na valorização das diferenças como forma de enriquecimento conjunto.

Por isso, pela grandeza da sua obra e pela sua influência não só no Brasil, como em Portugal, nos países africanos e em toda a parte do mundo de língua materna ou oficial comum, bem se pode dizer que Jorge foi e é um verdadeiro símbolo de uma desejável – e por nós tão desejada, mas constantemente adiada, minimizada ou mesmo man- chada. . . – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Uma nota ainda para sublinhar o facto de Jorge ter sido, desde o iní- cio e até ao fim, um grande amigo e um entusiasta apoiante/divulgador/ colaborador do JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, que criei, em 1981, e desde sempre dirijo. Considerando-o um “milagre” – chegou a escre- ver, e enviar-me para publicação, um texto que, por muito pessoalizado e por me parecer excessivamente generoso, nem publiquei. . . –, nunca nos faltou com a sua palavra e o seu apoio, em todas as circunstâncias.

O velho e sábio marinheiro da vida e da prosa 75 3. Mas, então, quando recordo Jorge Amado o que começa por me “ocorrer” não é a sua obra? Claro que também é. Porém, como essa, a obra, está sempre à mão, não me pesa a sua ausência como pesa a do homem e do amigo. Jorge, convém sempre sublinhá-lo perante a pertinácia dos detratores (que em certos meios “intelectuais” chegaram a ser bastantes, não lhe perdoando talvez a aparente simplicidade da narrativa, a falta de prosápia e o êxito), Jorge é um admirável escritor e contador de histórias, um poderoso criador de personagens. Há nele um dom natural de contar com eficácia, lirismo e humor, de par com uma identificação profunda com o povo, que se manifestam desde o primeiro romance, O país do carnaval, editado quando tinha dezanove anos, e se prolongam ou ampliam até à última ficção, A descoberta da América pelos turcos, publicada quando tinha 80.

O “foco” nas desigualdades e injustiças sociais, na exploração e na violência, da primeira fase da sua obra, deixa de assumir, a partir de Gabriela, qualquer contorno de militância política “direta”, que o escritor entretanto abandonou. Todavia não desaparece, apenas passa a situar-se numa mais alargada e “compreensiva” visão das pessoas e do mundo, bem como numa nova estratégia narrativa, sem prejuízo da unidade essencial do seu universo romanesco.

Aliás, o caráter inovador e (para usar uma palavra em desuso. . . ) “progressista” da vasta obra amadiana não está só e, pelo menos a par- tir de certa altura não está tanto, nesses aspetos mais imediatamente sociais, até políticos, mas em outros em que foi à frente, sem alardes nem grandes teorizações.

Refiro-me em especial ao multiculturalismo, à miscigenação, à va- lorização da mulher, ao combate à discriminação do negro e do mulato, à defesa, em todas as vertentes, dos mais fracos, ao respeito pela(s) diferença(s), ao precursor apoio à preservação do ambiente e ao com- bate dos “ecologistas”. Exemplificando, basta lembrar algumas das suas extraordinárias personagens, entre as muitas centenas que criou (se incluirmos todas as “reais ou lendárias”, “animais e aves com nome próprio”, chegamos às 4.910, segundo Paulo Tavares em Criaturas de

76 José Carlos de Vasconcelos Jorge Amado). Lembrar, entre tantas outras, António Balduíno, Pe- dro Arcanjo, Gabriela, Tieta, Teresa Batista, Lívia, ou, noutro plano, Dona Flor, Lívia, Vovô do Ilê, Vadinho, o inesquecível Quincas Berro d’Água. Personagens pujantes de vida e que continuam bem vivas, antes de mais nas páginas dos seus livros, mas também nas melhores adaptações deles à televisão e ao cinema, em cantigas ou desfiles de escolas de samba – e sobretudo no imaginário, mesmo no quotidiano, de milhões de pessoas.

4. Enfim, lembro sempre, ainda, inumeráveis encontros, conversas, situações, episódios, ao longo de muitos anos. Entre eles o último, em Paris, quando começava um novo romance, que admitia fosse o último, no seu pequeno apartamento no Quai des Célestins (Marais), frente ao Sena.

Estávamos na primavera de 1995; aos 82 anos, 63 depois da sua estreia, dois após um enfarte de miocárdio que lhe mudara a vida, com uma recente doença do foro oftalmológico, o velho Jorge regressava à escrita de ficção com o profissionalismo e o entusiasmo de sempre. A sua máquina antiga fora substituída por uma nova, as letras agora em corpo maior e negro, ele tendo de usar uns óculos especiais para voltar a essa luta que constituía simultaneamente uma paixão.

Para ele o princípio de um romance era muito difícil, porventura o mais difícil, atribuindo especial importância à primeira página, essen- cial para “agarrar o leitor”. “Começo lentamente a batucar na máquina” revelou-me e contei no JL. “A minha ideia é escrever uma história so- bre a luta pelo poder no vale do Médio São Francisco, na década de 20, entre os senhores feudais, os chamados coronéis, e a alta hierarquia da Igreja Católica”.

Se o romance chegará ao fim, só o tempo o dirá – escrevi então. E de facto não chegou, nesse caso pela sua doença. Antes, também ao fim não chegara Bóris, o vermelho, projeto antigo de um romance começado e abandonado várias vezes. Mas este, por outras razões.

O velho e sábio marinheiro da vida e da prosa 77 Não sendo nem querendo ser um teorizador ou ensaísta, sequer so- bre a sua própria obra – costumava até dizer que depois de dar por concluído um livro nunca mais voltava a ele: “Não sou leitor de Jorge Amado. . . ” –, o romancista tinha uma assinalável intuição e ciência narrativas. Sabendo que ou as personagens têm vida própria, se au- tonomizam, “revoltam-se mesmo contra o autor”, ou não vale a pena. Romance é ação, “jogo de tempo e espaço”, dizia-me. Acrescentando que se não há um “gatilho” que desencadeia a criação – uma ideia, um acontecimento, uma figura, às vezes uma simples frase –, e se depois a história e as personagens não se impõem por si, nem o autor lhes podendo mudar o rumo, é preferível desistir, mesmo que mais tarde se volte a tentar”. É o que tinha feito com Bóris, desistir – sem ter oportunidade de voltar a tentar.

“Escrevo, antes de tudo, porque não posso deixar de fazê-lo”, con- tinuou. “O trabalho de criação literária é, para mim, imperativo. Escre- ver romance dá-me prazer e custa-me trabalho. Não é fácil: cada vez, com o passar do tempo e a maior experiência, torna-se mais difícil, a cada dia mais difícil. Divirto-me muito quando estou escrevendo, criar um romance é trabalho árduo porém alegre. Quando coloco a palavra fim no romance, ele para mim acaba, não volto a pensar nele, pertence aos editores, aos críticos, aos leitores. Sobretudo aos leitores.”

5. A nossa conversa – a última, longa, para ser publicada, com o Jorge escritor – foi por aí fora e dela dei conta aos leitores. Não me abstendo de falar também, por exemplo, do combatente de causas no- bres e justas, ou que sinceramente acreditou o fossem – reconhecendo o(s) erro(s), quando foi caso disso, sem no entanto renegar os valo- res implícitos nem passar para o campo adverso, como outros fizeram. Sempre um lutador contra a opressão e a miséria, homem de liberdade, de raríssima tolerância e capacidade de diálogo, naturalmente solidá- rio e fraterno, que com o tempo e a experiência chegou a essa outra enorme virtude, que já referi e que em ninguém me aparece tão nítida:

78 José Carlos de Vasconcelos uma profunda sabedoria, no mais largo e nobre sentido que à expressão se pode dar.

De par, sublinhe-se, com outra coisa espantosa e que ajuda a ex- plicar a sua excecional vitalidade criadora: o amor à vida. Amor à vida, intensamente vivida, insisto, desde muito cedo e nos mais diver- sos domínios, com generosidade e sensualidade, numa entrega total e apaixonada.

Para um homem assim, o que é envelhecer, com tudo que isso sig- nifica, perguntei-lhe então, quando, como se viu, a doença já tinha che- gado, mas a depressão, que mais tarde o consumiria, ainda não. “Amo viver, tenho amor à vida, é certo. E por isso mesmo, de facto, a velhice me pesa de forma terrível”, respondeu-me. E medo da morte? “Tive um enfarte, cuido-me para não ter outro. Não tenho medo da morte mas a ideia de morrer não me agrada de nenhuma maneira, pois gosta- ria de viver muitos anos mais. Tenho imensa curiosidade pelo que vai suceder no mundo e no universo. Sei que com a morte tudo acaba, e a ideia de acabar não me agrada.”

Velho marinheiro da vida e da prosa, Jorge Amado continuava, ape- sar de tudo, a sua maravilhada navegação. Navegando, para lembrar Sophia, pelos mapas que nunca fez.