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Vem, a Bahia te espera. É uma festa e também um funeral. O se- resteiro canta o seu chamado. Os atabaques saúdam Exu na hora sagrada do Padê. Os saveiros cruzam o mar de Todos os Santos, mais além está o rio Paraguaçu. É doce a brisa sobre as palmas dos coqueiros nas praias infinitas. Um povo mestiço, cordial, ci- vilizado, pobre e sensível habita essa paisagem de sonho.

Jorge Amado2

Na obra de Jorge Amado, cujo centenário se comemora este ano, há um confessado amor pela Bahia, sua terra natal, e também por seu povo. Falando a respeito da obra de seu colega, o escritor peruano Mario Vargas Llosa afirma:

Os romances de Jorge Amado nada têm de estereotipados e, ape- sar das facilidades de transporte hoje em dia, a mais reveladora

1Escritora Brasileira.

142 Lúcia Bettencourt

viagem que se pode fazer à Bahia é por intermédio deles. Isto porque são conduzidos pelo olho baiano do escritor, por sua fala baiana, pelo ritmo de sua terra e, sobretudo, por sua dupla preo- cupação: a luta pela liberdade e a fé na mestiçagem.3

Com efeito, na obra de Jorge Amado existe uma marcante presença de personagens afro-brasileiras. Graças a elas, os romances do autor baiano penetram num universo mítico-sincrético, onde o maravilhoso africano e europeu se fundem. Em Tenda dos Milagres, por exemplo, as divindades pertencentes a essas tradições se tornam um dos eixos condutores de uma narrativa apaixonada contra o preconceito.

Vejamos um breve resumo da história. Estamos em 1968 (portanto, em plena ditadura militar), e a chegada do professor americano James D. Levenson, laureado com o Nobel de Ciência, agita a imprensa nacio- nal. O fotogênico professor de Colúmbia pretende “conhecer a cidade e o povo que foram objeto de estudo do fascinante Pedro Archanjo, em cujos livros a ciência é poesia”. Acontece que Pedro Archanjo (1868-1943) já estava morto e quase esquecido pelas elites, e o profes- sor americano, “um dos cinco gênios do nosso século”, com segundas intenções, paga ao namorado da bela Ana Mercedes, em dólares, para que ele faça uma pesquisa sobre a vida desse autor desaparecido. Essa pesquisa nos leva ao começo do século XX, época em que se inicia- ram as proezas do celebrado Archanjo. Afamado por suas aventuras sexuais, por seu apetite pela vida e por sua sabedoria risonha e prática, Pedro Archanjo era o Ojuobá de um dos principais candomblés de Sal- vador. A ialorixá Mãe Magé Bassã lhe cobra a obrigação de estudar e divulgar a história e os costumes do povo mestiço da Bahia.

Com Lídio Corró, um “riscador de milagres”, que virou seu par- ceiro na luta contra o preconceito racial e religioso, e cuja mulher, Rosa de Oxalá, foi o grande amor irrealizado de Archanjo, este se dedica à publicação de obras que se transformaram numa súmula da formação do povo baiano. A Tenda dos Milagres, no Pelourinho, transfigura-se

3 Caderno de Literatura Brasileira, no3, Jorge Amado, Rio de Janeiro, IMS, p.

36.

Tenda dos Milagres: um universo mítico-sincrético 143 numa espécie de universidade livre da cultura popular, em oposição à Faculdade de Medicina, no Terreiro de Jesus, onde o professor Nilo Argolo, para quem os mestiços eram “degenerados”, pontificava e en- sinava suas teorias racistas baseadas nos ensinamentos de Lombroso e da frenologia, de Garófalo e da criminologia, e nas ideias racistas de Gobineau e até Nietzsche.

Bedel da Faculdade de Medicina, Archanjo não se atemoriza com o ódio do catedrático e até consegue admiradores entre os estudantes e alguns dos lentes, embora perca seu emprego. Em Tenda dos Milagres, critica-se a postura colonizada de aceitação de teorias racistas originá- rias da Europa no início do século XX e ironiza-se a valorização da obra intelectual do negro, que só é reconhecida graças à iniciativa de um estrangeiro. Ao mesmo tempo, traça-se um irônico retrato de como essa figura do intelectual negro serve de pasto ao inescrupuloso uso da propaganda, que de tudo se assenhora, para transformar e esvaziar.

A narrativa entrelaça, com extrema habilidade, os registros erudito e popular. As críticas à repressão contra o candomblé e outras manifes- tações da cultura negra ganham relevo em dois momentos históricos: no começo do século XX, quando da atuação de Pedro Archanjo, e na época em que se comemoraria o centenário de Archanjo, em plena ditadura militar, sob o signo do interesse do mercado e da mídia.

O romance procura revelar a identidade cultural do povo brasileiro, mostrando o quanto devemos a um universo africano físico e imagi- nário. Combatendo o preconceito contra a religião afro-brasileira pre- tende validar as fusões que dão origem a um tipo de pensamento que ainda procura legitimação pela cultura “acadêmica”, mesmo passados 50 anos de sua publicação.

Nos meandros da narrativa, no entanto, desfaz-se o mito de que a sociedade brasileira não é uma sociedade preconceituosa, e desvelam- -se os preconceitos existentes nos dois principais eixos de formação do nosso povo, o da tradição europeia e o da africana, lutando ambos para preservar uma suposta pureza.

144 Lúcia Bettencourt Tenda dos Milagresacena com a hipótese de que a força do povo e de suas crenças miscigenadas pode suscitar um novo pensamento que permitirá o verdadeiro milagre, “a solução brasileira para o conflito ra- cial”, nas palavras de Pedro Archanjo. Cabe, no entanto, lembrar que essa teoria do mestiço genial, em que tantos encontram a influência de Gilberto Freyre e de Manoel Bonfim, não era nem novidade, nem ex- clusividade brasileira. Muitos autores latino-americanos a defenderam. O cubano José Martí, por exemplo, já reconhecia “nuestra América mestiza”. O mexicano José Vasconcelos, um dos pensadores mais in- fluentes do início do século XX, fundador da Universidade do México – era o defensor da Raça Cósmica, que propõe a “mistura de brancos, negros, amarelos e vermelhos”, cruzando-se de acordo com “as leis da emoção, da beleza e da alegria”, gerando o que ele chamou de a “euge- nia do gosto estético”.

A ideologia da mestiçagem estava sendo refutada, na época em que o livro foi escrito, pelo movimento negro americano. Com o assassi- nato de Martin Luther King o movimento negro se radicalizara e orga- nizações como a dos Panteras Negras pregavam a separação racial e até a luta armada contra o racismo. Conciliadores e de espírito prático, os seguidores de Archanjo acreditavam que, “Se o Brasil concorreu com alguma coisa válida para o enriquecimento da cultura universal, foi com a miscigenação”. O romancista, antenado, faz uso de dois perso- nagens, os professores Ramos e Azevedo (baseados nos antropólogos Artur Ramos e Thales de Azevedo) para comentarem o contraste entre o Brasil e os Estados Unidos de 1968.

Livro predileto do autor, conforme entrevista concedida à sua tra- dutora, Alice Raillard, o romancista observa, referindo-se à Tenda dos Milagres:

É na verdade uma reescrita de Jubiabá (1935), mas com outra conotação. Trata-se da questão da formação da nacionalidade brasileira, a miscigenação, a luta contra o preconceito, princi- palmente o racial, e contra a pseudociência e a pseudo-erudição europeísta.

Tenda dos Milagres: um universo mítico-sincrético 145 Mais adiante acrescenta:

De meus livros, é o meu preferido, cuja temática mexe muito comigo. Talvez Pedro Archanjo seja, de todos os meus perso- nagens, o mais completo. Questões importantes são abordadas através dele, o não-sectarismo, a consciência de que as ideias não devem consumir o homem.

Em verdade, o personagem de Pedro Archanjo foi construído em cima de muitas pessoas. Em Navegação de cabotagem (1992), seu livro de memórias, ele anota:

Trabalho no romance Tenda dos Milagres. Pedro Archanjo é a soma de muita gente misturada: o escritor Manuel Querino, o babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim, Miguel Sant’anna Obá Aré, o poeta Artur Sales, o compositor Dorival Caymmi e o alufá Licutã – e eu próprio. De todos eles Archanjo incorpora um traço, uma singularidade, a preferência, o tom de voz, o gosto da comida, o trato das mulheres, a malícia.

Inúmeros foram os críticos que já fizeram o levantamento desses personagens da vida real aproveitados nos personagens da ficção. Os livros de Manuel Querino são “perfilhados” por Archanjo, por exem- plo. Mas esta apropriação ocorre também com relação ao personagem Nilo Argolo, cujo modelo foi o professor Nina Rodrigues, ardente aria- nista. Entre os livros de Argolo, identificam-se obras escritas por Nina Rodrigues. Estes dois principais antagonistas no campo ideológico se encontram acompanhados de outros, como Silva Virajá (identificado como o médico Pirajá da Silva); João Romão (baseado em Cosme de Farias, célebre defensor dos pobres em Salvador) enquanto que Pedrito Gordo é facilmente reconhecido como o delegado auxiliar Pedro Gor- dilho, perseguidor de capoeiristas e das cerimônias de candomblé, que, de 1920 a 1926 mostrou-se “disposto a acabar com as tradições popu- lares, a porrete e a facão, a bala se preciso”4.

4Jorge Amado, Tenda dos Milagres, Rio de Janeiro, Record, 1987, p. 236.

146 Lúcia Bettencourt Neste libelo contra a pseudo-ciência, o que se pretende é chamar a atenção para uma característica do início do século XX, essa tendência a misturar fatos científicos com a mais exagerada fantasia. Madame Blavatsky e Mesmer, Allan Kardec, Gobineau e Leclerc Du Sablon, até Nietzsche, e Jung e Freud não recuavam em suas teorias quando lhes faltavam provas. Antes, criavam ensaios que eram tomados como verdades, mesmo sem comprovação científica, pois a ciência moderna estava apenas nascendo, e nem sempre exigia rigores e comprovações irrefutáveis. Muitas ciências que depois foram descartadas e ridicu- larizadas, como a frenologia, no entanto, marcaram profundamente a sociedade brasileira e explicaram até a perseguição incansável ao Antô- nio Conselheiro, em Canudos. Num aparte, vale lembrar que a cabeça decapitada de Antônio Conselheiro foi levada para a Faculdade de Me- dicina da Bahia para ser estudada por Nina Rodrigues e lá ficou no museu, até ter desaparecido num incêndio. . .

Pardo, paisano e pobre – tirado a sabichão e a porreta”. Esta de- finição de Pedro Archanjo abre o romance, e é retomada em seu final: “Pedro Archanjo Ojuobá vem dançando, não é um só, é vá- rio, numeroso, múltiplo, velho, quarentão, moço, rapazola, an- darilho, dançador, boa prosa, bom no trago, rebelde, sedicioso, grevista, arruaceiro, tocador de violão e cavaquinho, namorado, terno amante, pai d’égua, escritor, sábio, um feiticeiro. Todos pobres, pardos e paisanos.5

Não foi sem motivo que Jorge Amado recebeu a pecha de “roman- cista de vagabundos e de putas”. A crítica nem sempre foi generosa com ele. . . Jorge reconhecia que: “minha Bahia não é a dos ricos, é dos despossuídos. Meus personagens vivem nas ruas, ladeiras e becos de Salvador, nas estradas e campos de cacau, nos latifúndios do sertão de beatos e cangaceiros”. Seu olhar atento e amoroso colocou o povo como principal interesse de suas obras de ficção e de sua vida política. Eleito deputado constituinte em 1945, pelo PCB6, seu maior feito foi a

5Jorge Amado, 1987, p. 292. 6Partido Comunista Brasileiro.

Tenda dos Milagres: um universo mítico-sincrético 147 emenda da liberdade religiosa, que, ele confessa, custou-lhe “trabalho e astúcia”. Foi-lhe preciso andar “de bancada em bancada, de deputado a deputado”, até que, obtidas mais de oitenta assinaturas, a emenda fosse aprovada e a “liberdade religiosa foi inscrita na Constituição”.

Com orgulho, escreve em suas memórias: “transformada em artigo de lei, a emenda funcionou, a perseguição aos protestantes, a violação de seus templos, das tendas espíritas, a violência contra o candomblé e a umbanda tornaram-se coisa do passado”. Não sei como o romancista reagiria vendo, hoje, alguns protestantes exaltados tentando acabar com o candomblé e a macumba, mas é bom conhecer a passada perseguição para não repeti-la como farsa. . .

Publicado em outubro de 1969, Jorge Amado já havia assumido a cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras para a qual tinha sido eleito, por unanimidade, em 6 de abril de 1961. Tendo como patrono o romancista José de Alencar e como primeiro ocupante o grande Ma- chado de Assis, Jorge Amado tomou assento entre os dois escritores que são considerados expoentes máximos do romance no Brasil. O es- critor parece assim, ganhar um novo fôlego e, sem esquecer de seus temas mais caros como a mestiçagem e o sincretismo, inaugura uma nova fase, com mais humor, e brindando-nos com romances onde a vida popular da Bahia se impõe frente aos preconceitos e onde a mu- lher passa a ocupar lugar de destaque.

Apesar do reconhecimento popular, a crítica continuou impiedosa. Bosi fala em “cronista de tensão mínima” e, se não lhe nega o grande sucesso popular, diagnostica:

Ao leitor curioso e glutão a obra tem dado de tudo um pouco: pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos folclóricos, em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade.7

7 Alfredo Bosi, A dialética da colonização, São Paulo, Companhia das Letras,

1993, p. 406.

148 Lúcia Bettencourt Quase que se repete, assim, o acontecido com o personagem Pedro Archanjo: o reconhecimento de seu valor acontece em decorrência de seu inconteste sucesso fora do Brasil; o aval mundial consagrando-lhe a legitimação que o público já lhe conferira. Permitam-me aqui contar uma anedota proferida por sua esposa Zélia Gattai, outra grande conta- dora de histórias:

Há alguns anos, nós estávamos em Portugal, numa aldeia, quan- do de repente um gato saiu correndo de uma casa e um meni- ninho foi atrás dele chamando: “Nacib! Ô Nacib!” Eu parei o menino e perguntei: “Seu gato se chama Nacib?” E ele: “Sim, senhora”. “E por quê?”, insisti. “Porque é macho”, disse ele. “Se fosse fêmea, ia se chamar Gabriela”.

Essa história ilustra bem como o romancista e seus personagens foram se tornando parte integrante do cotidiano não só de brasileiros como de todos aqueles a quem sua literatura chegou, fosse pelas pági- nas dos livros que escreveu, fosse através de adaptações de cinema ou televisão.

Voltando ao romance em questão, para a antropóloga Ilana Selt- zer Goldstein, Tenda dos Milagres pode ser considerado um livro pa- radigmático de Jorge Amado, por concentrar alguns dos temas mais importantes da literatura do autor, como a oposição entre mestiçagem e racismo, cultura erudita e popular, atuação política e crônica de costu- mes. Escrito de março a julho de 1969, portanto nos quatro meses em que passou na “casa fraternal” de Nair e Genaro de Carvalho (o artista plástico e sua bela esposa, modelo e musa), o tempo de escrita revela a paixão com que Jorge Amado se dedicou a essa história, cujo tema sempre esteve presente em sua vida. A cultura popular, a liberdade religiosa e o racismo perpassam todas as suas obras, mas é em Tenda dos Milagres que as leituras e estudos feitas pelo escritor se tornam explícitas, revelando sua séria dedicação ao assunto, durante décadas.

Já em Jubiabá (1935), romance protagonizado por Antônio Bal- duíno, líder negro de origem pobre, o tema do sincretismo aparece

Tenda dos Milagres: um universo mítico-sincrético 149 como eixo condutor. Em Bahia de Todos os Santos (1945), ele contem- pla com olhar amoroso o povo e a terra baiana, e, sem cair no pitoresco turístico, fala das belezas, mas também das misérias e problemas da Bahia. Mesmo no exílio, a Bahia (por metonímia, o Brasil) o acompa- nha. “Onde quer que esteja”, diz ele numa de suas entrevistas, “levo o Brasil comigo”.

Não é de admirar que Nelson Pereira dos Santos ao se dispor a re- criar Tenda dos Milagres, tenha chegado à Bahia com um roteiro onde “havia sequências inteiras não escritas, mas com indicações que reme- tiam ao livro”.

Em verdade, a leitura das páginas iniciais do romance tem uma qua- lidade plástica muito forte. Tomando-nos pelos olhos – já que se trata de leitura – o texto nos leva a passear pelo “amplo território do Pelou- rinho” que se ramifica “no Tabuão, nas Portas do Carmo e em Santo Antônio Além do Carmo, na Baixa dos Sapateiros, no Maciel, na La- pinha, no Largo da Sé, no Tororó, na Barroquinha, nas Sete Portas e no Rio Vermelho”. Julgamos escutar os atabaques, os berimbaus e to- dos aqueles “instrumentos pobres, tão ricos de ritmo e de melodia”. Escutamos, aqui e ali, um pedaço de cantiga. Contemplamos os mo- vimentos da capoeira, que “sem deixar de ser luta, foi balé”. Olhamos com interesse os milagres riscados por pintores primitivos. Folheamos as pequenas brochuras de “trovadores, violeiros, repentistas [. . . ] cro- nistas e moralistas”. Olhamos com assombro as figuras esculpidas em madeira de lei, Xangôs, Oxums, Oxóssis, que não se pejam em portar chapéu de couro, peixeira e espingarda, ao invés de suas armas tradi- cionais. Continuando o caminho, vemos trabalhos em cobre e ferro, colares de conta e de palha, atabaques destinados aos cultos de um- banda, em estabelecimentos vizinhos ao de um santeiro que não hesita em assemelhar o dragão de São Jorge a um mais familiar jacaré. Pratei- ros exibem seu trabalho delicado ao lado de barracas onde a medicina popular emerge de sementes, folhas, raízes e cascas de árvore. De- pois desse passeio chegamos ao nosso destino, ladeira do Tabuão, 60, onde se localiza a reitoria dessa “universidade popular”, a Tenda dos

150 Lúcia Bettencourt Milagres. E é ali perto, no Terreiro de Jesus, que se ergue o prédio da Faculdade de Medicina, onde se ensinam “suspeitas teorias”.

Neste romance todo dividido, como a própria sociedade, a trama é complexa. Trabalhando no direito e no avesso, com desenho capri- choso, rebordado, vão se criando, como santos sincréticos uma gama de personagens mestiços. No próprio nome Terreiro de Jesus, uma mistura: Jesus, que sai de seu “adro” cristão e instala-se no terreiro de macumba. As idas e vindas na história, o entrar e sair da ficção, criam uma complexidade que é bem representada na linguagem em que os termos africanos se mesclam à retórica rebuscada. As versões que vão se desautorizando umas às outras até servirem, em seu contraste, de críticas a si mesmas. Tudo isso sem prejudicar a fabulação, a história vindo sempre em primeiro lugar.

Quando instado a oferecer um conselho a escritores iniciantes, Jor- ge Amado foi direto: “Busque a verdade. Isso não quer dizer que você acertará a verdade sempre. Pode até não acertar nunca. Mas não deixe de ir atrás dela. E conte as coisas como elas são. Eu sou um contador de histórias, não sou outra coisa. Eu venho e conto a minha história. Aquilo que sei e como sei”8.

E o que ele sabe é muito.

Sabe tudo aquilo que aprendeu como observador e curioso. Sabe os segredos das coisas do candomblé. Autorizados por seu reconheci- mento de estar retratado em Archanjo, podemos tomar os pensamen- tos de seu personagem como explicação de algumas de suas aparentes contradições. Por exemplo, num diálogo entre o professor Fraga Neto e Archanjo, aparece a pergunta muitas vezes repetida:

Quero saber é como você pode conciliar o seu conhecimento científico com as obrigações de candomblé. [. . . ] Parece haver dois homens em você: o que escreve livros e o que dança no ter-

8 Caderno de Literatura Brasileira, no3: Jorge Amado, Rio de Janeiro, IMS, p.

57.

Tenda dos Milagres: um universo mítico-sincrético 151

reiro [. . . ] Como lhe é possível, mestre Pedro, conciliar tantas diferenças, ser ao mesmo tempo o não e o sim?9

A resposta chega, enfim:

Vou dizer ao senhor o que até agora só disse a mim mesmo e, se o senhor contar a alguém, serei obrigado a lhe desmentir. [. . . ] Durante anos e anos acreditei nos meus orixás como frei Timó- teo acredita nos seus santos, no Cristo e na Virgem. Nesse tempo tudo que eu sabia aprendera na rua. Depois busquei outras fontes de saber, ganhei novos bens, perdi a crença.10

Pragmático, o Ojuobá porém avisa que o saber não o limita. Expli- ca-se:

Se eu houvesse proclamado meu materialismo, largado de mão o candomblé, dito que tudo aquilo não passava de um brinquedo de criança, resultado do medo primitivo, da ignorância, da misé- ria, a quem eu ajudaria?11

Ao invés de abandonar os ritos e ajudar aqueles que pretendem aca- bar com a festa do povo, ele revela:

Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta da capoeira,