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Quando do doutoramento honoris causa na então minha Univer- sidade de Bari (1990) – a todos vocês foi distribuída a plaquete com a minha laudatio e a lectio magistralis do “doutorando” Amado – disse o que eu pensava, e sabia, sobre o autor de Os velhos marinheiros, sobre Jorge Amado escritor.

Hoje quero recordar um pouco também o Jorge de calça branca, camisa colorida e sandália, o Jorge paisano, afinal, a sua humanidade, a capacidade de reconhecer os próprios desvios, a sua humildade, que não é apenas uma virtude cristã, começando por lembrar um momento biográfico extremo, difícil, que mudaria também a sua literatura.

Todos nós conhecemos a sua militância política no Partido Comu- nista. Em 1990 fiz-lhe uma longa entrevista. À minha pergunta se a Revolução de Outubro podia ter ainda alguma mensagem positiva para nossos dias, Jorge Amado responde:

Os valores trazidos pela revolução soviética vão perdurar além de todos os desmoronamentos de um falso mundo socialista. O

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que fracassou foi a ideologia. . . A ideologia é que determinou o afastamento da revolução soviética da suas metas, do seu des- tino. Essa oferecia a felicidade para o homem, mas a ideologia transformou-a numa ditadura, que em geral, foi feita contra o homem.2

Uma grande “conversão” ideológica e política que começou quando Jorge Amado, hóspede do Castelo dos Escritores, em Praga, assiste ao processo Slansky e, sempre em Praga, nos anos 1951 e 1952, assiste ao processo Lise e Artur London, de onde o belíssimo filme de Costa Gravas, A confissão, com Simone Signoret e Yves Montand. Assim, em Navegação de cabotagem, o escritor finaliza o parágrafo “Praga, 1951/52 – o medo”:

Dias de medo, malditos, desgraçados, prolongam-se em sema- nas e meses infelizes. As dúvidas crescem, não devemos du- vidar, não queremos duvidar, queremos continuar com a crença, intacta, a certeza, o ideal. Nas noites insones, nos contemplamos Zélia e eu, um nó na garganta, vontade de chorar.3

Dessa “conversão” nasce, alguns anos depois, Gabriela, cravo e canela. É ainda Amado que responde à pergunta: “Como foi e qual o processo que o levou à invenção de Gabriela?”. Eis a resposta:

O que me levou foi o acúmulo da experiência minha em todos os sentidos. . . humana, literária e política. Quando escrevi Ga- briela, uma série de coisas que hoje [1989, queda do muro de Berlim] estão acontecendo começaram a ser claras para mim. Eu comecei a entendê-las, a analizá-las num processo que foi longo, muito difícil, cruel. . . Você no começo não quer acreditar que tivesse se enganado, que vivesse sendo iludido, que tivesse errado: você reage contra isso. Gabriela é um livro escrito ao

2 Giovanni Ricciardi, Biografia e criação literária, vol. 1: Entrevistas com Aca-

dêmicos, Rio de Janeiro, Nitpress, 2008, p. 74.

3Jorge Amado, Navegação de cabotagem, Rio de Janeiro, Record, 1992, p. 120.

Jorge Amado, “Doutor” pela Universidade de Bari em 1990 65

fim desse processo, quando eu me libertava de todo dogmatismo, dessas ideologias estreitas e sectárias.4

Esse processo durou oito anos.

E agora deixemos esse sufoco e alegremo-nos um pouco com outro Jorge Amado.

Jorge Amado é um mestre de vida, porque nos ensina a tolerância, a fraternidade, a solidariedade com os outros.

No discurso de Doutoramento da Universidade de Bari, afirma a certa altura: “Disseram certos críticos que não passo de um limitado romancista de putas e de vagabundos. Creio que é verdade e orgulho- -me de ser porta-voz dos mais despossuídos de todos os despossuídos”. Romancistas de putas! Em O menino grapiúna, lembrando as idas da fazenda a Piangi, nos dias de feira, em companhia de Algemiro, escreve:

Argemiro não saía de Pirangi sem antes demorar-se em compa- nhia das moças nos becos perdidos. Enquanto esperava, o me- nino ia de mão em mão, de ternura em ternura, de afago em afago, de rapariga em rapariga, cada qual mais maternal. Re- corda a figura de Laura, os cabelos longos, o rosto macilento – sabia histórias de lobisomens, cantava cantigas de ninar.5

E, mais adiante:

Para mim, de começo foram maternais, depois amigas frater- nas, tímidas e ardentes namoradas. Acalentaram meus sonhos, protegeram minha indócil esperança, deram-me a medida da re- sistência à dor e à solidão, alimentaram-me de poesia.6

O capítulo 8 de O menino grapiúna é todo ele um panegírico da- quelas mulheres.

4Giovanni Ricciardi, ibidem, vol. 1, p. 75.

5Jorge Amado, Menino grapiúna, Rio de Janeiro, Record, 2006, p. 50. 6Jorge Amado, 2006, p. 55.

66 Giovanni Ricciardi Eu que muito prezo pesquisar o relacionamento biografia/criação literária formulo apenas uma pergunta: quando a familiaridade do me- nino Jorge com as prostitutas de Pirangi, quando, repito, aquela vi- vência está presente, influencia a construção romanesca de heroínas como Gabriela, Tieta, Teresa Batista e das muitas outras mulheres e prostitutas, todas elas inocentes, carinhosas, vitoriosas (Margot de Ter- ras do sem fim, Glória de Gabriela, cravo e canela, Coroca de Tocaia Grande)?

Não vou insistir no assunto e volto então ao Jorge Amado, mestre de vida, um mestre cujo encontro é capaz de mudar uma existência.

É quanto confessa o escritor Roberto Drummond, o autor de Hilda Furacão e O cheiro de Deus: “Jorge Amado mudou a minha vida. De menino alienado Jorge Amado me tornou membro do Partido Comu- nista”7.

Antônio Torres e Ignácio Loyola Brandão ressaltam a sua genero- sidade e amabilidade. Afirma o primeiro: “Não conheço pessoa mais generosa, mais afetuosa, mais capaz de encontrar tempo e espaço para os seus amigos não importa onde esteja nem a distância em que se en- contre”.

E Ignácio: “Jorge é homem íntegro que não guarda rancores, não tem ressentimentos, não se importa com os tiros. Grande lição a todos. A estes escritores jovens, que se iniciam e ganham dele conselhos e prefácios, quando não recomendações a editores”8.

Eu também, ainda que não fosse jovem escritor, ganhei o prefá- cio deste livrinho: Meninos de rua, perché, publicado em Roma por ocasião de um evento com professores e alunos dos colégios da capital sobre o tema e que contou com a presença do escritor e até um dos meus filhos conseguiu uma entrevista! Jorge e Zélia responderam a algumas perguntas sobre o fumo. Imaginem, com todos os encontros marcados

7Giovanni Ricciardi, Biografia e criação literária, vol. 3: Entrevistas com escri-

tores mineiros, Ouro Preto, Editora UFOP, 2008, p. 401.

8Letterature d’America, n.o40: 60 anni di vita letteraria di Jorge Amado, Roma,

1990, p. 141 e p. 146.

Jorge Amado, “Doutor” pela Universidade de Bari em 1990 67 havia dias, o casal remediou um tempinho para um menino de quinta série! Grande Jorge e grande Zélia também, de quem quero lembrar um simpático depoimento que reforça aquele dito popular: “Ao lado de um grande homem está sempre uma grande mulher”. Aconteceu durante o encontro com os leitores na livraria Feltrinelli de Bari (1990):

Há 40 anos que ele é meu patrão. Quando precisa de um nome italiano para um personagem me pergunta, mas eu quero saber se esse personagem é bom ou é ruim, pois não quero dar o nome de um amigo de meu pai a um personagem ruim! À vezes pergunta uma música. Um dia me pergunta: “Como é aquela música de Dorival Caymmi que você canta um verso e para. Eu preciso de uma palavra que está nesse verso”. Então canto: “Ó insen- sato coração. . . ” E ele: “É isso. Insensato é a palavra de que eu preciso”. Outra vez, estava escrevendo Teresa Batista, me chama e diz: “Você sabe cantar muitos tangos, então vai can- tando alguns”. Então eu: “Tiempo de la madrugada. . . ”. E ele: “Não serve!”. E eu: “Caminito que el tiempo. . . ”. E ele: “Não serve!”. E eu: “La cumparsa de misérias sin fin. . . ”. E ele: “Era isso que eu queria, porque um meu personagem vai se chamar Jarbas La Cumparsita!”.

Às vezes me dá 50 páginas para datilografar. Eu com a máquina eletrônica e 10 dedos acabo logo e fico louca para saber o que é que vai acontecer e pergunto: “Jorge, o que vai acontecer a esse personagem?”. E ele: “Não sei, porque meus personagens têm sua vida própria, têm sangue e carne, eles fazem o que bem en- tendem e se eu quisesse fazer com que sigam o que eu quero eles ficam falsos, não são mais personagens vivos”. Isso eu aprendi com o primeiro livro que ele escreveu em minha companhia: Seara vermelha. Eu tentei salvar a menina Noca e perguntava: “Essa menina vai morrer, Jorge?”. E ele: “Vai morrer, porque ela precisa morrer”. E eu: “Mas, precisa por quê, se você é o dono da história?”. E ele: “Ela tem que morrer!”. Então eu de- sesperada: “Se você está com instinto de matar, então mate o pequeneninho que tem poucos meses. . . !”.

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Eu tenho certeza que Jorge, quando escreve, não sabe a continua- ção do livro.

Fiorettié o título de um livrinho que conta episódios, acontecimen- tos exemplares e edificantes da biografia de São Francisco de Assis. Na linguagem católica, “fioretto” é também ramalhete espiritual. Eu, invadindo por uma vez o campo religioso e tomando emprestada a ter- minologia, vou contar alguns “fioretti” de Jorge Amado e de suas obras. Em 1992, em Salvador, celebram-se os 80 anos do nosso escritor. Numa mesa de mulheres sobre as personagens femininas na obra de Jorge Amado, uma havia que se distinguia visivelmente das outras por se mexer continuamente na cadeira, por fumar – ninguém fumava na sala! Antipática e grosseira, julguei-a imediatamente. Quando lhe de- ram a palavra, queria sair. . . Ela apresentou-se: “Sou uma prostituta, meu nome de guerra é Gabriela”. Tinha sido uma das protagonistas da “greve do balaio” das prostitutas do Rio, quando as construtoras daquela cidade queriam expulsá-las do Centro. Disse que ali estava para agradecer a Jorge Amado pela solidariedade que o escritor aber- tamente, com um telegrama, dera à greve e às mulheres-damas. E co- meçou a contar, argumentando com muito conhecimento – tinha lido tudo! – porque de todas as mulheres amadianas escolheu Gabriela. A mulher era danada. Falava bem. Aos poucos pairou na sala um silêncio extremo, aos poucos os olhos de muitos e depois de todos começaram a brilhar. No fim, todos, digo todos nós, levantamos, fomos à mesa parabenizar e abraçar Gabriela, Gabriela Leite Silva. Milagre de Jorge Amado!

No encontro com os leitores na Livraria Feltrinelli de Bari, acima lembrado, no meio de perguntas e respostas, risos e bater de palmas, tomou da palavra uma leitora: uns 30 anos. Tinha lido tudo, como Ga- briela, mas com outra profissão. A leitora conta o seu encontro com a literatura de Jorge Amado, começa a agradecer pelos personagens, pelos ensinamentos, pela alegria, pelas figuras fortes e vencedoras das

Jorge Amado, “Doutor” pela Universidade de Bari em 1990 69 mulheres, pelos. . . e aí começa a soluçar, a chorar copiosamente, conta- giando a todos e ao escritor também, que foi abraçá-la e agradecer-lhe. Na entrevista que lhe fiz naqueles anos e que já lembrei, a propó- sito de leitores/leitoras, Jorge Amado, respondendo à minha pergunta – “Você em Tieta do Agreste diz que Tieta fazia amor com ípsilon simples e ípsilon duplo. O que é isso?” – contou esta anedota:

O amor nos meus livros é uma coisa limpa, não é uma coisa suja, nem triste. É uma coisa nobre e alegre que até eleva o ser humano e o faz melhor. Eu diria que meus livros transmitem essa limpeza, essa pureza do amor. As coisas colaterais ao ato de amor também existem e às vezes falo nelas. Dizem que as minhas figuras de mulheres são lutadoras e simbolizam a luta da mulher brasileira por uma condição melhor, menos oprimida. É verdade. Isso não impede que essas mulheres gostem de fazer amor. Uma dessas mulheres chama-se Tieta. Entre as coisas que ela pratica na cama há o ípsilon simples e o ípsilon duplo. Um dia recebi uma longa carta de uma senhora que se dizia casada, que tinha um marido que não era dessas coisas e que tinha mor- rido e que então ela descobriu a vida e. . . foi pra frente. Ela pedia que eu contasse o que era o ípsilon, porque agora ela conhecia tudo, menos o ípsilon. Eu respondi dizendo: “Minha senhora, eu também gostaria de saber. Tieta nunca me disse. . . ”. E é ver- dade.

Anos depois, em Madrid, durante um encontro no Centro Ibero- -americano aparece uma senhora que se apresenta, dizendo: “Sou eu a senhora do y simples e do y duplo!” E eu: “Se já descobriu, me conte!” Ainda não tinha descoberto!

Ainda um “fioretto”. Jorge Amado, durante vários anos, fez parte do júri do Prémio Internacional União Latina. José Cardoso Pires, Agustina Bessa-Luís, António Lobo Antunes, Mia Couto e o brasileiro Francisco Dantas ganharam esse prêmio.

Durante a mesa redonda final e pública de 1990, a tradutora de Jorge, bem no começo, atrapalhou-se um pouco; o presidente da mesa,

70 Giovanni Ricciardi que tateava português, começou então ele próprio a traduzir. A cerimô- nia acabada, Jorge, Zélia, Paloma e eu, que os acompanhava, estáva- mos na Piazza di Spagna, não longe do Caffè Greco, onde tinha havido a mesa redonda, quando Jorge lembrou: “Não me despedi da minha tra- dutora!” e quis voltar ao café. Voltamos. A tradutora estava aí, ainda meio confusa. Jorge abraçou-a, agradecendo e prometeu enviar-lhe um livro. Eu tinha na pasta Dona Flor e seus dois maridos. Perguntei se servia. Serviu. Acompanhando depois os três a um restaurante que todo o brasileiro que visita Roma preza muito, passamos em frente a uma livraria. Jorge pediu licença, entrou sozinho, saiu e voltou. . . com uma cópia de Dona Flor que me devolveu com uma dedicatória não a mim, mas. . . a minha esposa, que não estava conosco, mas que o es- critor conhecia: “Para Rosetta com um beijo afetuoso do seu amigo Jorge”.

Devo acrescentar que Jorge Amado respondia sempre às minhas cartas e solicitamente, rara avis entre brasileiros, exceção feita pelo es- critor Antônio Torres. Para mim, esse é um sinal extraordinário de sen- sibilidade e de amizade para com o remetente, qualquer remetente. Na época da internet não dá para entender esse apreço que faço ao Jorge, mas há poucos anos atrás, quando os telefonemas custavam demais e os e-mails não existiam, a carta era o único meio de comunicação e de contato e o carteiro, não apenas o carteiro do filme homônimo, era visita entre as mais esperadas! Das cartas do Jorge, só guardo uma, agradecendo pelo doutoramento em Bari. As outras doei à Fundação de Salvador.

Quero registrar também meu primeiro vis-à-vis com o escritor, quando em nome da Universidade fui contatá-lo para lhe comunicar oficialmente a notícia do Doutoramento. Eu, naturalmente, só tratava-o como “o senhor”, para cima e para baixo. Depois de duas ou três frases o escritor me parou: “Olha, Giovanni, se você continuar a me tratar de senhor eu vou chamá-lo de Vossa Excelência”. Desapareceram então

Jorge Amado, “Doutor” pela Universidade de Bari em 1990 71 “senhor”, “senhora” – Zélia também estava – e apareceram Jorge, Zélia, Paloma, Giovanni, Myriam. . .

Termino deixando por alguns minutos a palavra ao “doutorando” Jorge Amado:

Sou um velho brasileiro, de sangues indígenas – minha mãe era uma pequena índia cheia de sabedoria –, africano e português, quem sabe de sangue judeu, de sangue árabe. Mas meu filho João e minha filha Paloma trazem em suas veias o sangue italia- no do avô fiorentino, da avó vêneta, o sangue italiano da paulista Zélia, minha mulher, minha companheira, minha namorada há quarenta e cinco anos. Os sangues se misturaram e cada vez mais se misturam no Brasil e essa é a nossa honra e esse é o nosso orgulho.

Dessa nossa originalidade racial e cultural, da miscigenação e do sincretismo, nasce a criação brasileira: a música, a dança, a lite- ratura, a arte, o cinema, o Carnaval, o ritmo romântico e sensual – somos latinos e africanos, a Bahia é a mistura de Lisboa e de Luanda. Temperamos a melancolia portuguesa com a alegria de viver dos negros, misturamos o azeite de dendê, o óleo de palma com o leite de côco e a farinha de mandioca em nossa culinária primitiva e refinada, misturamos os santos católicos com os ori- xás africanos, nosso catolicismo é feiticista, negamos o inferno e o pecado, preferimos a alegria e, por mais terrível sejam a misé- ria e a opressão, nós as superamos e conseguimos fazer a festa. Por isto somos invencíveis, somos uma nação mestiça, a nação brasileira.

Sobre mim e minha obra literária muito se escreveu, de bem e de mal. Disseram certos críticos que não passo de um limitado romancista de putas e de vagabundos. Creio que é verdade e orgulho-me de ser porta-voz dos mais despossuídos de todos os despossuídos. Disseram também que tenho a paixão da mestiça- gem, e dizem-no com raiva racista. Honro-me infinitamente de

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ser um romancista da nação mulata do Brasil. Creio que, que- rendo ofender-me, esses críticos me exaltaram e definiram.9

9Jorge Amado, “Lectio magistralis”, Letterature d’America, n.o40, 1990, p. 7.