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Carta a Zélia Gatta

P. S a Jorge Amado

Caro Jorge Amado,

Escrevo tardiamente, confesso, para agradecer um grande favor seu. O que vai ler agora, por favor, não conte a ninguém. Nunca, nem nunca mais.

Desde criança, por obra do destino, fui um azarado nas cartas. Não falo de jogo, mas de cartas escritas sempre à mão mas nunca chegadas ao pretendido destinatário.

Aos cinco anos, quando o meu pai me levava de manhã à escola, o que eu mais queria era regressar a casa, cedo, sem ter que ficar lá. Na tal escola. Certo dia, demorei-me na esquina e pedi a uma senhora que

86 Ondjaki passava que escrevesse uma carta. A carta era dirigida aos meus pais. Falava da dispensa da minha presença na escola. Eu mesmo assinei a carta com o nome da professora: “Ana Maria”. Pus a carta na (minha) caixa de correio, mas um jardineiro regou de tal modo o jardim que a carta, ensopada, virou uma pasta cinzenta que os meus pais nunca chegaram a ler.

Mais tarde enviei para Portugal uma carta aos meus avós. Pedia lápis de cor, um bloco de cartas e, sobretudo, pedia batatas e chocola- tes. Mas em vez do número 426, saiu-me 624. Nunca os meus avós receberam a missiva.

Nos últimos meses da quarta classe, apaixonado pela minha colega Petra, e já tendo sentido o efeito desse azar associado às cartas, em vez de palavras, desenhei um foguetão tosco e de cores improváveis. No verso, o nome dela, e um coração todo torto. Mas a meio da “entrega”, a delegada de turma confiscou-me o papel. Diante de toda a turma, em absoluto silêncio, expôs a todos o meu lindo foguetão e entre o riso e a minha sensação de pequenez, todos se riram de mim, sem que nunca a Petra visse o verso do meu desenho.

Quando, em 1989, se a memória não me falha, os meus professores cubanos Ángel e Maria foram de vez para Cuba, numa tarde quente de muita saudade, escrevi-lhes uma longa carta de amizade e poesia, onde abordava sem receios a importância que eu sentia não tanto das aulas, mas das conversas que havíamos partilhado. Atrevido, falei em nome também dos meus colegas e, já no fim do texto, cheguei a agradecer- -lhes em nome de “todas as crianças angolanas”. Dirigi-me aos cor- reios, caminhando em triste sonambulice, pois sabia muito bem que a minha missão era vazia de êxito: eu nunca tive o endereço deles. Voltei para casa, com os ombros banhados pela chuva e os olhos repletos das lágrimas mais pesadas que, até àquele momento, me haveriam de fre- quentar. Mais uma vez as águas destruíram o conteúdo do que eu tinha para dizer.

Já estudante, em Lisboa, mantive durante meses o que eu chamei de uma “carta-em-construção”. Era um longo bilhete que, aos poucos,

Carta a Zélia Gattai (seguida de P.S. a Jorge Amado) 87 eu escrevia ao Eugene Ionescu. Falava da minha descoberta de um texto dele (O solitário), ainda em Luanda; falava das sensações que eu tive ao ler esse livro e de como, de tantas maneiras, eu me identificava com o seu personagem; e por fim, bem no fim, falava da vontade de o encontrar. Ao vivo. Um dia. Para uma simples conversa. Eu que nem falo nem falava francês. Nesse dia, quando fui aos correios e enviei a carta, com o endereço correto, ao chegar a casa, a minha tia esperava-me sentada no sofá com uma cara demasiado séria. Pediu-me que me sentasse perto dela. Pegou-me na mão. Na outra mão, uma revista que ela havia escondido por duas semanas. Falava da morte de Ionescu. A carta, tendo eventualmente chegado ao destino, nunca chegou ao destinatário.

Caro Jorge: poderia contar-lhe mais sete estórias destas. Hoje, em paz, aceito que não tenho em mim essa habilidade de fazer chegar uma carta. Escrevo-as, é verdade; mas elas teimam em não chegar. Não quero maçá-lo. Vou diretamente àquilo que lhe vim dizer: certa oca- sião, bem no início da minha adolescência, quis crer que estava apai- xonado por determinada moça. Insisti o que pude, sugeri o que me ocorreu. E nada. Ou ela não via, ou fingia que era assim mesmo. Até que um dia me disse em aberto segredo: “escreve-me uma carta e talvez aconteça o que imaginas”.

O que imaginava era um beijo. Eu queria um beijo dado pela boca dessa moça. Imagine o meu sofrimento. Imagine que aquilo que ela me pedia era justamente o que eu mais receava que ela me pudesse pedir.

E foi no meio de páginas suas que encontrei a resposta. Copiei a carta de Guma. Copiei várias vezes, com a minha letra, para que aquilo ficasse sujo e imperfeito. Cheio de hesitações. Cheio de uma verdade que sendo do Guma, fosse minha. O resto acho que você imagina. . . : “quero uma resposta sincera saída de seu coração para o meu.” O que você não imagina, é que eu não pus o nome da “minha” moça. Escrevi sempre Lívia. Em toda a carta. E entreguei pessoalmente para que o destino não me embusteasse uma vez mais.

88 Ondjaki Ela quis ler a carta ali. Pedi que o fizesse mais tarde. Retirei-me para longe, só para poder observá-la quando abrisse o envelope. Lá dentro, muitíssimas pétalas brancas de cravo. O cheiro. O sorriso dela. A sensação no olhar que eu adivinhava. Ganhei o beijo antes de a ter beijado, isso vi de longe. Há sorrisos que nos desabafam o coração.

Caro Jorge desculpe a tanta demora, mas era “só isto” que eu vinha lhe agradecer. As suas palavras nas palavras escritas de Guma. O tal beijo, nem lhe posso contar. Não saberia. Vale lembrar as palavras de Mário António, na sequência desse mesmo (meu) beijar: “. . . e fomos farrar por aí”.

Deixo aqui, por escrito, um grande abraço. Espero que esta carta chegue ao destino, e ao destinatário.

P.S.: O sorriso da moça? Ela conhecia o seu livro há muitos anos. . .