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A data era 10 de agosto de 1912; o lugar, a Fazenda Auricídia, em Ferradas, no sul do estado da Bahia, no Brasil. O menino nasceu em- pelicado2, talvez por isso, sem chorar. As parteiras o puseram embaixo

de uma bacia de flandres e começaram a bater em cima, fazendo grande barulho, na esperança de ouvir o menino soltar o som da vida. A mãe da criança gritava que parassem – essas parteiras eram formadas na bur- rice, contou um dia – e seus gritos chegaram ao lado de fora do quarto, onde o Coronel, seu marido, esperava a notícia do nascimento do pri- mogênito. O pai entrou no quarto, salvou o filho, o menino já sufocava, e com umas palmadinhas na bunda fez com que chorasse e enchesse de ar os seus pulmões; depois o levou para fora, a fim de apresentá-lo à lua e às estrelas e para delas receber a bênção. Ganhou o nome de Jorge, o mesmo do santo que vive na lua e vence dragões. Jorge Amado.

Foi assim que nasceu meu pai há 100 anos. O menino aprendeu desde cedo sobre a vida do seu povo, convivendo nas fazendas de cacau – nas plantadas por seu pai, o coronel João Amado, em terras conquis- tadas em terríveis lutas, nas fazendas dos seus tios e dos seus vizinhos,

1Escritora, filha de Jorge Amado.

2 No Brasil diz-se que uma criança nasce empelicada quando envolvido no saco

90 Paloma Jorge Amado todos coronéis conquistadores – e nas cidades próximas, Ilhéus e Ita- buna, com os alugados, os jagunços, os capatazes, as prostitutas, os imigrantes árabes, os exportadores, os migrantes fugidos da seca nor- destina.

A adolescência, ele a passou na cidade da Bahia, também chamada de Salvador, em duro aprendizado de vida iniciado no colégio Antô- nio Vieira, internato dos padres jesuítas. Foi aí que ficou íntimo de Dickens, de Dumas, que encontrou-se com valores religiosos e morais que o levaram a participar de uma “liga pela moralidade”, logo subs- tituída por pensamentos políticos que vislumbravam a igualdade entre os homens e distanciavam-se da Igreja. Ao sentir-se preso no internato, tomou consciência da importância da liberdade e começou a lutar por ela – a sua e a dos outros.

Aos quatorze anos fugiu do colégio e foi para a casa de seu avô pa- terno, no estado vizinho de Sergipe. Chegou para fazer discursos, falar às pessoas, e o fez com grande sucesso. Não durou muito, no entanto, a sua aventura, o pai mandou buscá-lo de volta, com a promessa de novo colégio, desta vez um externato leigo. Rapidamente o menino foi se tornando homem, escrevendo para jornais, fazendo parte de grupos intelectuais.

O escritor Jorge Amado nasceu em 1930, quando, aos dezoito anos, escreveu seu primeiro livro, O país do carnaval, publicado um ano de- pois. O jovem saíra da Bahia para cursar a Faculdade de Direito no Rio de Janeiro, atendendo ao desejo do pai de ter um filho doutor. Douto- res eram chamados os formados em Direito, Medicina ou Engenharia, e esse era o sonho de todos os coronéis do cacau: ver o filho usando o anel de formatura, um doutor!

Ao longo destes sessenta e nove anos de vida literária, Jorge Amado tem sido absolutamente fiel aos seus ideais socialistas, tendo refletido em cada livro o seu vínculo com o povo, sua posição em prol dos opri- midos contra os opressores, pela paz contra a guerra e a violência. Des- fraldou bandeiras de luta, que até hoje tremulam na sua literatura e na

Jorge Amado, meu pai 91 sua vida, entre elas, e com grande destaque, a do combate ao racismo e à exploração do homem, a da liberdade e a da justiça social.

Durante mais de vinte anos o trabalho literário dividiu espaço com a militância política. Em 1946 elegeu-se deputado federal pelo Partido Comunista; foi um dos constituintes, o autor da lei que garantiu liber- dade religiosa no Brasil. Um comunista preocupado em garantir ao povo direito à religião? O que pode parecer contraditório a olhos mais apressados, na realidade mostra a coerência de quem respeita a indivi- dualidade dos homens, a sua fé, a sua maneira de ser, pensar e agir. A lei foi aprovada, mas a carreira de parlamentar não durou muito, pois o Partido foi caçado, entrou para a ilegalidade, e seus membros passa- ram a ser perseguidos. Jorge Amado foi viver com a família na França, exilados e, depois de expulso pelo governo francês, foi para a Tchecos- lováquia, onde morou por três anos, escreveu a trilogia Os subterrâneos da liberdadee onde. . . eu nasci.

Os críticos literários gostam de dividir sua obra em duas partes, usando como divisor de águas o período de militância partidária, cujo último livro seria exatamente Os subterrâneos da liberdade, e o seu desvínculo do Partido Comunista, fase iniciada com Gabriela, cravo e canela. Não creio que seja justa a interpretação de que escreveu ini- cialmente uma obra política e partiu depois para uma literatura leve e sem vínculos com a ideologia. Na verdade ela é um contínuo fiel aos ideais socialistas do autor, tendo crescido e ganho força ao se libertar do dogmatismo, ao trocar o discurso sectário pelo humor, arma muito mais eficaz.

O ofício de escritor, Jorge Amado o desenvolveu de forma muito vi- tal. Costuma dizer que os personagens têm vida própria, que decidem seu destino, e se o escritor quiser impor sua vontade estará criando marionetes e não homens e mulheres cheios de vida. Os personagens vivem da vida e do sangue do autor, e isto não é modo de dizer: es- crevendo com dois dedos numa máquina manual, dura e barulhenta, na maioria das vezes termina um romance com os dedos sangrando, com dores no corpo; diz que o livro “comeu suas carnes”. Como uma mu-

92 Paloma Jorge Amado lher grávida, transfere sangue e carne, dá vida a seus personagens, e lhes dá à luz de seus leitores.

Alguém disse uma vez, em tom de desaprovação e desdém, ser Jorge Amado o escritor “das putas e dos vagabundos”. O escritor se sentiu honrado com a classificação e a adotou, pois ela reflete de ma- neira precisa o seu tema principal: a capacidade de sobrevivência, e até de ser feliz, dos mais despossuídos, dos deserdados da sorte. Assim é Jorge Amado, o escritor do povo brasileiro e, para meu privilégio, meu pai.

Parte II

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