• Nenhum resultado encontrado

A GEOPOLÍTICA E GEOECONOMIA DO PETRÓLEO Apesar das apreensões de muitos, o mundo provavelmente não

1.4 DESAFIOS GEOPOLÍTICOS

Além dos riscos na exploração, há aqueles de ordem econômica, política e militar, “não relacionados aos recursos físicos, mas sim a aspectos que acontecem ‘acima do solo’” (YERGIN, 2014, p. 240). Uma destas ameaças diz respeito às possíveis turbulências geopolíticas decorrentes da disputa pelo acesso aos recursos energéticos na atualidade.

Geopolítica se refere, segundo Klare (2003), “à contenda entre grandes potências e aspirantes a grandes potências pelo controle de territórios, recursos e posições geográficas importantes, tais como portos, canais, sistemas hídricos, oásis e outras fontes de riqueza e influência”. Em outras palavras, a geopolítica define as relações entre os Estados e o território no qual se encontram e ao qual possuem autoridade soberana. Tal modelo de análise alcançou seu ápice entre o fim do século XIX e início do século XX, na esteira das disputas por territórios pelas potências coloniais; no período, era por si mesma uma ideologia, um pensamento ou um conjunto de crenças e acordos que se escondia por trás das pretensões imperialistas e que as justificavam, em certa medida (Ibidem, pp. 109-110).

Durante a Guerra Fria, porém, devido à associação com as ideologias hitleriana e a guerra, por um lado, e aos paralelismos da geopolítica clássica (surgida de uma ala acadêmica conservadora) com o marxismo e o leninismo, por outro, que denunciavam o imperialismo, a geopolítica passou a se chocar com a ideologia dominante do período e foi perdendo o seu espaço como modelo de análise. Entretanto,

Si estudiamos la historia de la Guerra Fría, los conflictos abiertos que se produjeram se enmarcaban conscientemente dentro de uma orientación geopolítica desde la perspectiva norteamericana. Los Estados Unidos tenían que controlar el Oriente Medio y su petróleo. Esa era La base de La doctrina Truman, y de La doctrina Eisenhower, y de La doctrina Carter. Los Estados Unidos tenían que controlar determinadas parte de África por su riqueza mineral em cobre, cobalto y platino. Esa es La razón por la que los Estados Unidos apoyaran el regimen de apartheid em Sudáfrica. Y em los estratos más elevados se entendia la razón de lãs guerras de Corea y de Vietnam em térmicos Del interés de los Estados Unidos por controlar la costa del Pacífico. Hoy

em dia asistimos al resurgimiento de uma ideologia geopolítica sin disimulos entre los dirigentes políticos de lãs grades potencias, sobre todo em los Estados Unidos. De fecho, la mejor manera de entender ló que está pasando actualmente em Irak y em el resto del mundo es contemplarlo a través del prisma de la geopolítica. Los líderes norteamericanos se han embarcado em el clásico proyecto geopolítico de asegurar el dominio de los Estados Unidos sobre lãs áreas más ricas em recursos, entendidos éstos

como fuentes de poder y de riqueza (Ibidem, p.

111. Grifos nossos).

A disputa por recursos estratégicos da qual trata a geopolítica, porém, não é uma característica da conjuntura atual ou se restringe conflitos em torno do petróleo; nem ao menos surgiu com o imperialismo no fim do século XIX, período no qual se tornaram mais populares os estudos em geopolítica. As sociedades humanas têm competido umas com as outras pelo controle de zonas ricas em recursos por um longo tempo: até a Idade Média predominavam as disputas por terras, enquanto território ou como recurso agrário; posteriormente, foram substituídas pelas disputas envolvendo terras com algum recurso específico, como água, metais preciosos ou madeira (KERR, 2007, p. 21). Em seguida, as disputas por recursos “ganharam uma nova dimensão a partir do período das Grandes Navegações ou durante a colonização da América pela Europa, devido ao processo de acumulação primitiva21 de capitais que começava a se desenvolver a partir dos séculos XIII, XIV e XV” (Idem).

Neste período, a madeira constituía o principal recurso, devido a sua variedade de usos: era essencial como matéria-prima para a engenharia e a arquitetura, nos meios de transporte, no artesanato de móveis, instrumentos essenciais para a agricultura e para a guerra, além da produção de tecidos na fabricação de teares e no tingimento; por fim, também era um recurso energético, “tão essencial, que pode ser

21

A acumulação primitiva, para Marx, não é o resultado da acumulação capitalista, mas seu ponto de partida, e corresponde a um processo de expropriação violenta da produção familiar, artesanal, camponesa, entre outros, que separou o produtor dos meios de produção e gerou a separação de classes da sociedade capitalista (a burguesia e o proletariado). Retomaremos este ponto nos próximos capítulos.

considerada a mais importante fonte de energia e calor controlada pelo homem durante milhares de anos, justamente porque os vegetais têm uma capacidade única de absorver e armazenar a energia solar” (Ibidem, pp. 21-22). Com o surgimento e a ascensão da indústria, nos séculos XVIII e XIX, os recursos energéticos passaram a ocupar lugar de destaque na disputa por recursos. Estas guerras podem ser divididas em dois tipos: as guerras entre Estados industrializados ou em processo de industrialização; e aquelas que ocorreram entre estes Estados e os não industrializados, porém ricos em recursos naturais energéticos (Ibidem, p. 22).

O caso do petróleo, devido a sua imprescindibilidade, é emblemático. A importância militar do recurso foi reconhecida antes da importância econômica (TORRES FILHO, 2004, p. 183). O petróleo assumiu um papel decisivo, como elemento de poder nacional, intimamente relacionado às políticas e estratégias dos Estados no sistema interestatal. Nas duas grandes Guerras Mundiais, o petróleo não só determinou as estratégias de países como a Alemanha e o Japão, como foi o grande trunfo que garantiu a vitória sobre estes; já na Guerra Fria, o petróleo foi de importância decisiva nas lutas pela descolonização e nacionalismo que tomaram a periferia (YERGIN, 2010, p. 14). Outrossim, a partir do fim da Guerra Fria, o petróleo retornou ao centro das atenções após a invasão do Kuait pelo Iraque em 1990, além da ascensão da China e da Índia no mercado global e do terrorismo que se financia por meio das receitas petrolíferas.

Atualmente, a continuidade da disponibilidade de energia e suprimentos minerais é essencial para a sobrevivência política e militar dos Estados: nenhuma nação pode manter (e alimentar) um sistema de defesa robusto sem a disponibilidade de petróleo. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, esta é essencial para a segurança nacional, ao passo que “move a vasta frota de tanques, aviões, helicópteros e barcos que constituem a coluna vertebral de sua maquinaria de guerra” (KLARE, 2004, p. 202).

A necessidade de garantia da oferta de petróleo e energia às vésperas da Primeira Guerra Mundial, como fonte de poder e segurança nacional, é claramente percebida pela decisão do governo inglês de adquirir uma empresa de petróleo, a Anglo-Persian Oil Company, atual British Petroleum (BP). Além das maiores fontes de petróleo no período se encontrarem ou nos Estados Unidos ou em “países ‘exóticos’, distantes e politicamente inseguros” (TORRES FILHO, Op. Cit., p. 184), o mercado mundial era controlado por empresas americanas e a Shell – que apesar de possuir participação acionária inglesa, ainda era

controlada pelos holandeses (Idem). Quando a armada de guerra britânica, antes movida a carvão, foi convertida para o petróleo, a fim de garantir a supremacia do país nos mares com navios de guerra mais rápidos, econômicos e espaçosos, tornou-se patente a necessidade de garantia de fluxos de petróleo estáveis – e, logo, tomou-se a decisão de investimento do governo na BP (Idem).

Já na França, após a Segunda Guerra Mundial, o general Charles de Gaulle, presidente da França, “determinado a restaurar a ‘grandiosidade’ francesa” (YERGIN, 2014, p. 109), decidiu pela criação de uma segunda companhia estatal, a Elf, pois considerava que a CFP (Compagnie Française des Pétroles, posteriormente a Total), fundada em 1924, equiparava-se às empresas americanas e britânicas de petróleo. A decisão de criação da segunda companhia se deu logo após a constatação de importância decisiva do petróleo para a vitória na Segunda Guerra Mundial (Idem). Deste modo, havia na França duas grandes companhias de petróleo controladas pelo Estado.

Porém, tratar o petróleo apenas como fonte de poder e recurso militar para os Estados soberanos é uma abordagem limitada: “paralelamente à sua importância geopolítica, o petróleo foi responsável por alguns dos mais relevantes capítulos da história econômica do capitalismo. Tornou-se a mais líquida das mercadorias e a mais difundida de todas as commodities” (TORRES FILHO, Op. Cit., p. 186). Há também, ainda, de se ressaltar a importância do petróleo no modo de produção capitalista: este passou a integrar as etapas do processo de acumulação de capital como nenhum outro produto.

Uma das características centrais da sociedade industrial é justamente o uso intensivo de energia; e este uso decorre tanto da produção de bens no modelo industrial, em grande quantidade e em alta velocidade, como nos meios de transporte, responsáveis pela distribuição de: matéria-prima até a indústria, bens produzidos até os mercados consumidores, e circulação de pessoas (KERR, Op. Cit., p. 22). De acordo com Wallerstein (1996), o princípio norteador do Sistema-Mundo moderno capitalista é a busca pela acumulação interminável do capital. Para a realização do processo cíclico do capital (MARX, 1976, p. 65), Marx atribui importância não só à etapa de produção de mercadorias, como também à circulação das mesmas, pois “a mais valia só se realiza quando a forma dinheiro é reincorporada pelo

capital, quer dizer, quando o circuito iniciado com dinheiro se conclui com dinheiro” (LINS, 2008, p. 04), tornando possível o início de um novo ciclo22. O processo de alargamento geográfico do capitalismo torna ainda mais necessária uma estrutura que permita o transporte de mercadorias de maneira barata, veloz e eficiente:

Quanto mais a produção se apoia no valor de troca, logo na troca, mais importantes as condições físicas de troca – os meios de comunicação e transporte – tornam-se para os custos de circulação. O capital, pela sua natureza, avança além de toda barreira espacial. Assim, a criação das condições físicas de troca – os meios de comunicação e transporte – a aniquilação de espaço pelo tempo – torna-se uma necessidade extraordinária para isso (Marx, 1973, p. 524). Os recursos energéticos possibilitam, deste modo, os transportes e a comunicação em larga escala exigidos pelo distanciamento geográfico de centros de produção e mercados na economia-mundo capitalista; tornam possível, consequentemente, a circulação de mercadorias e o processo de acumulação de capital em si. Ademais, o petróleo, como recurso energético dominante, integra o que Marx denomina capital constante circulante, ou os “materiais de produção tais como matérias-primas e auxiliares, produtos semiacabados etc” (MARX, 1976, p. 384), que se consomem durante a produção tanto para o funcionamento das máquinas como para fins coadjuvantes, como de iluminação.

Por fim, há de se ressaltar a importância da própria indústria do petróleo na fase atual do desenvolvimento capitalista, sob a hegemonia dos Estados Unidos, que será tratada em seguida. No ranking das quinhentas maiores empresas do mundo da revista Fortune de 2016, dentre as dez primeiras posições, cinco são de empresas de petróleo: a China National Petroleum ocupa a terceira posição; a Sinopec, chinesa, a quarta; a anglo-holandesa Royal Dutch Shell ocupa o quinto lugar,

22

Lins (2008) realiza uma análise da importância dos recursos energéticos a partir da fórmula geral de Marx, destacando o papel da energia nas etapas de produção e circulação do processo de acumulação de capital.

seguida da Exxon Mobil, norte-americana, em sexto; e em décimo lugar, a inglesa British Petroleum (FORTUNE, 2016)23.

Em suma, se o petróleo é central tanto para a estrutura militar quando produtiva de um Estado, a indústria petrolífera configura-se como uma variável de extrema importância para a proeminência de um Estado no sistema interestatal. Percebe-se que a história do petróleo é permeada por grandes disputas internacionais que se dão pelo controle de fontes de poder e dinheiro, entre Estados e empresas, em sintonia ou em rota de colisão.

Sendo assim, tomando como ponto de partida o relato de Klare (2013), podemos iniciar uma análise da relação entre Estados e companhias petrolíferas na exploração do petróleo mundial. Em diversos pontos de sua análise, o autor deixa clara esta ambivalência quando trata da corrida pelos recursos energéticos globais:

Under these circumstances, it is hardly surprising that the major industrial powers have embarked on an extended, calculated drive to gain control over the world’s remaining preserves of vital natural resources. Governments and giant corporations – or the two acting in conjunction – have adopted ambitious plans to explore uncharted areas, pursue legal claims to disputed territories, acquire exploration and drilling rights in promising resources zones, introduce new technologies for extractive operations in extreme and hazardous environments, and develop military forces that can operate in these regions (KLARE, Op. Cit., p. 14).

Esta passagem ilustra os papéis de empresas e governos na busca pela acumulação de capital e poder, respectivamente; além disso, apresenta a intensa interação entre ambos na busca por estes objetivos. Conforme pode ser notado também pela aquisição da BP pelo governo inglês, e o impulso dado pelo governo francês à sua indústria petrolífera, a acumulação de poder não pode ser satisfatoriamente tratada se não em conjunto com a acumulação de capital.

Segundo Arrighi (1996, pp. 87-88) a diferenciação entre empresas comerciais, que visam o lucro, e governos, que visam o poder,

23

As companhias são listadas a partir das receitas totais; deste modo, todas as empresas na lista devem ter publicados seus balanços fiscais (FORTUNE, 2016).

vem ocorrendo há pelo menos seis séculos; porém, as iniciativas inovadoras foram aquelas que conseguiram combinar ambas as organizações. No início, as redes de acumulação de capital se encontravam inseridas e subordinadas às redes de poder. Entretanto, no decorrer da expansão da economia-mundo capitalista, o capital ganhou mais autonomia e a lógica inverteu-se: as redes de acumulação se tornam dominantes. Sendo assim, para se tornarem líderes na acumulação de poder, os Estados devem tornar-se líderes também na acumulação de capital (Idem).

Em outras eloquentes palavras, “o capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando é o Estado (BRAUDEL, 1977, p. 44. Grifos no original). E foi na Europa que os componentes capitalista e territorialista se fundiram, em uma “poderosa mescla que impeliu as nações europeias à conquista territorial do mundo e à formação de uma economia mundial capitalista poderosíssima e verdadeiramente global” (ARRIGHI, Op. Cit., p. 11).

Central para esse entendimento é a definição de “capitalismo” e “territorialismo” como modos opostos de governo ou de lógica de poder. Os governantes territorialistas identificam o poder com a extensão e a densidade populacional de seus domínios, concebendo a riqueza/o capital como um meio ou um subproduto da busca de expansão territorial. Os governantes capitalistas, ao contrário, identificam o poder com a extensão de seu controle sobre os recursos escassos e consideram as aquisições territoriais um meio e um subproduto da acumulação de capital (Ibidem, p. 33).

Estas lógicas não funcionam isoladamente, mas relacionadas entre si de acordo com o contexto espacial e temporal; além disso, não dizem respeito à intensidade da coerção, e sim a estratégias de formação do Estado. Neste sentido, as grandes potências europeias desempenharam simultaneamente o papel de líderes nos processos de formação do Estado e de acumulação de capital, controlando as redes de poder e de acumulação de riqueza globais; e os Estados que, em um dado momento, lideraram o processo de acumulação de capital, tornaram-se hegemônicos. Analisaremos com mais detalhes a relação entre o petróleo e a supremacia mundial, o acúmulo de poder e de capital, pois, nas palavras de Yergin (2010, p. 12) “por todo o século XX, o petróleo significou hegemonia”.

1.5 PETRÓLEO E HEGEMONIA, SOB A ÓTICA DA