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Desenvolvimento sustentável e dignidade da pessoa humana

3 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: UMA ANÁLISE

3.2 Desenvolvimento sustentável e dignidade da pessoa humana

por desenvolvimento sustentável. Em suma, trata-se de elementos que devem ser incorporados a qualquer política ou teoria sobre desenvolvimento.

Não é difícil perceber que se configura o desenvolvimento sustentável em um ideal, uma utopia. Nas palavras do economista José Eli da Veiga196 é

um dos mais generosos ideais surgidos no século passado, só comparável talvez à mais antiga idéia de ‘justiça social’. Ambos são valores fundamentais de nossa época por exprimirem desejos coletivos enunciados pela humanidade, ao lado da paz, da democracia, da liberdade e da igualdade. São partes imprescindíveis da utopia, no melhor sentido desta palavra. Isto é, compõem a visão de futuro sobre a qual a civilização contemporânea necessita alicerçar suas esperanças.

Tendo em vista que o desenvolvimento sustentável – ou a sustentabilidade ambiental – pressupõe melhoria de qualidade de vida por meio da garantia dos direitos fundamentais, correto afirmar que está diretamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana.

A dignidade deve servir de fundamento para qualquer sistema, política ou teoria sobre desenvolvimento197 . Conta com previsão expressa no artigo 3º, inciso III da Constituição Federal, além de outros dispositivos, entre os quais: o caput do artigo 170, que estabeleceu como uma das finalidades da ordem econômica assegurar a todos uma existência digna; o artigo 227, caput, que garantiu à criança e ao adolescente o direito à dignidade. Para que esse liame esteja mais claro, seguem breves considerações sobre o que a doutrina dominante entende por princípio da dignidade da pessoa humana.

3.2 Desenvolvimento sustentável e dignidade da pessoa humana

No Estado Democrático de Direito, o princípio que aparece como o mais fundamental de todos e considerado seu fundamento é a dignidade da pessoa humana198. Inobstante o reconhecimento da liberdade e da igualdade como princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito199, ditos princípios seriam corolários da dignidade. Por essa razão, a dignidade da pessoa humana é qualificada como super princípio constitucional. Esse

196José Eli da Veiga, 2006, p. 14. Em sentido similar de desenvolvimento como utopia, Édis Milaré, 2007, p. 71. 197 Celso Antônio Pacheco Fiorillo, 2007, p. 13.

198 Luiz Antônio Rizzato Nunes, 2007, p. 45. 199 Robert Alexy, 2003, p. 31.

é o posicionamento dominante na doutrina pátria200. É referido como um super princípio que orienta todos os outros princípios e regras constantes do ordenamento jurídico pátrio e dá unidade ao sistema jurídico.

Não se confunda a afirmação de super princípio com um suposto absolutismo. Nenhum direito, por mais fundamental que seja, é absoluto. Isso quer dizer que qualquer princípio está sujeito a restrições a depender do caso concreto201. A dignidade da pessoa humana aparenta ser um princípio mais importante em relação aos demais previstos no ordenamento, pois possui diversas condições de precedência (as que justificam a aplicação de um princípio sobre outro diante de um caso concreto) que, em regra, prevalecem sobre qualquer outro princípio que lhe for oposto202. Questão esta que restará mais bem esclarecida no tópico seguinte quando se abordará a diferença entre regras e princípios.

Tendo em vista que normas sobre direitos fundamentais são “«normas abertas» carecedoras de uma actividade mediadora de densificação ou concretização”203, não há como se estabelecer previamente um conteúdo preciso para a dignidade da pessoa humana. Apesar disso, é possível traçar um conteúdo mínimo para o que se entende por dignidade da pessoa humana. A doutrina proposta por Ingo Sarlet, a seguir transcrita, explana claramente esse aspecto, bem como a qualidade de super princípio da dignidade da pessoa humana:

complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos204.

Existem duas correntes doutrinárias principais tendentes a justificar o fundamento da dignidade da pessoa humana. Essas correntes referem-se aos direitos fundamentais como um todo. A primeira deles é o jusnaturalismo, segundo o qual a proteção aos direitos fundamentais justifica-se em uma noção metafísica de que a natureza humana pura e simplesmente garante aos homens alguns direitos inerentes, os quais existem previamente ao

200 Luiz Antônio Rizzato Nunes, 2007, p. 25;

201 Norberto Bobbio, 1992, p. 21. Em sentido similar, Ingo Wolfgang Sarlet, 2008, p. 132, 133. 202Robert Alexy, 1993, p. 92, 106.

203 J. J. Gomes Canotilho, 1986, p. 472. 204 Ingo Wolfgang Sarlet, op. cit., p. 63.

seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico. Cabe ao Direito apenas positivá-los205. Para os jusnaturalistas, em especial Kant, a dignidade da pessoa humana estava relacionada com um processo de racionalização, ou seja, o homem por ser racional possui “autonomia de vontade” para se autodeterminar. Portanto, existe como um fim em si mesmo, e não como objeto para consecução de outros fins. Tudo aquilo que não é considerado pessoa humana é coisa e não tem dignidade206.

Em teoria contrária, os positivistas negam a existência de direitos naturais a serem reconhecidos pelo sistema jurídico, de forma que somente se reconhece como princípio fundamental de determinado sistema jurídico se estiver positivado no ordenamento respectivo207. Para alguns defensores dessa corrente, afirmar que princípio é algo inerente à natureza humana é voltar à noção superada de que princípio é um axioma208. Sem embargo, note-se que o positivismo não nega a dignidade da pessoa humana como valor inerente aos seres humanos. Apenas não encontra nesse argumento a justificativa para defendê-lo como norma jurídica de um determinado sistema.

A discussão sobre o fundamento da dignidade da pessoa humana é controvertida, de fato. Contudo, não será aqui analisada em detalhes, porquanto não reflete diretamente sobre o tema central desta pesquisa. Não se pretende depreciar o valor dessas discussões, muito embora pareça razoável o posicionamento segundo o qual o debate mais importante, quando se trata de direitos fundamentais, deve ser a identificação de instrumentos que garantam a realização destes e, acima de tudo, evitem que sejam diariamente violados209. Em especial no que se refere à dignidade da pessoa humana, a questão da efetividade revela-se ainda mais evidente ao se abrir qualquer jornal, assistir a qualquer noticiário, ou lançar um simples olhar para as ruas da maioria das cidades brasileiras.

Indispensável anotar que o reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana por um sistema jurídico resulta imprescindível em vistas a sua efetividade, uma vez que, apesar de não assegurá-la, ao menos “restará uma perspectiva concreta, ainda que mínima, de efetivação por meio dos órgãos jurisdicionais, enquanto e na medida em que lhes

205 André Ramos Tavares, 2006, p. 400; Ingo Wolfgang Sarlet, 2008, p. 40; Paulo Bonavides, 2008, p. 573; José

Afonso da Silva, 2008, p. 174.

206 Ingo Wolgang Sarlet, op. cit., p. 32-35. 207 André Ramos Tavares, op. cit., p. 401. 208 Rubens Miranda de Carvalho, 2005, p. 903. 209 Norberto Bobbio, 1992, p. 25.

assegura as condições básicas para o cumprimento do seu desiderato”210. A própria história atual corrobora a afirmação de que em um dado sistema que não reconhece a dignidade da pessoa humana como direito fundamental, e respectivos instrumentos para sua eficácia, ela é muito mais desrespeitada em comparação aos sistemas em que é posta como direito fundamental. Veja-se, por exemplo, a situação do Iraque após a invasão dos Estados Unidos; ou antes mesmo dessa invasão; ou os conflitos armados existentes ainda hoje em diversos países do Oriente Médio, como a Palestina e Israel, apesar do apelo da comunidade internacional no sentido de se dar efetividade ao princípio ora em comento.

O sistema jurídico brasileiro tutelou expressamente a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, em seu artigo 1º, inciso III, ao lado da soberania, da cidadania, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e do pluralismo político. Há de se ter cuidado especial na previsão expressa pelo sistema jurídico brasileiro do princípio da dignidade da pessoa humana. Existe o risco em identificar-se no ordenamento pátrio a supremacia da proteção do homem sobre os outros seres vivos do Planeta, se levado ao extremo o fundamento de dignidade como elemento característico dos seres humanos. Corresponde a uma corrente de pensamento denominada antropocentrismo clássico, segundo a qual a natureza é instrumento de realização das necessidades humanas, é dizer, “a pessoa humana passa a ser a verdadeira razão de todo o sistema de direito positivo em nosso país e evidentemente do direito ambiental brasileiro”211.

A corrente adequada ao entendimento atual de dignidade da pessoa humana relacionada ao desenvolvimento sustentável denomina-se antropocentrismo alargado. Inovou o âmbito de alcance do antropocentrismo clássico pela introdução da idéia de que homem e meio ambiente interagem. Por conseguinte, restaria superada a noção de natureza e ser humano pertencentes a dois mundos dissociáveis, e de submisso um ao outro. Não nega o homem como centro da questão ambiental, visto que apenas o homem pode ser sujeito de direitos e obrigações. Sem embargo, sugere a inclusão de alguns valores voltados para proteção ambiental – bioética e preservação do meio para as gerações futuras, por exemplo212.

210 Ingo Wolfgang Sarlet, 2008, p. 26.

211 Celso Antônio Pacheco Fiorillo, 2008, p. 13. 212 José Rubens Morato Leite, 2003, p. 76-80.

A proteção em nome das gerações futuras, expressamente prevista no artigo 225 da Constituição, “se transforma em paradigma de proteção ambiental”, na medida em que induz a “um comportamento humano, político e coletivo mais consciencioso com relação às necessidades ambientais”213. Logo, não se protege o meio ambiente apenas visando a sua utilização imediata e de forma irracional voltada para a satisfação das necessidades humanas. Nas palavras de Ingo Sarlet214:

sempre haverá como sustentar a dignidade da própria vida de um modo geral, ainda mais numa época em que o reconhecimento da proteção do meio ambiente como valor fundamental indicia que não está mais em causa apenas a vida humana, mas a preservação de todos os recursos naturais, ainda que se possa argumentar que a proteção da vida em geral constitua, em última análise, exigência da vida humana e de uma vida humana com dignidade, tudo a apontar para o reconhecimento do que se poderia designar de uma dimensão ecológica ou ambiental da dignidade da pessoa humana.

A noção de antropocentrismo alargado consta do Princípio 1 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992: “Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”.

A jurisprudência pátria atual orienta-se na linha do antropocentrismo alargado, ao reconhecer que o direito à manifestação cultural não é um valor absoluto a ser garantido a qualquer custo. Por exemplo, o julgado a seguir:

COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais; incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’. (Recurso Extraordinário 153531/SC. Relator Min. Francisco Resek. Órgão Julgador: Segunda Turma. Julgamento 03/06/1997).

Cabe finalmente ressaltar que o desenvolvimento sustentável é, de fato, um princípio reconhecido pela Constituição Brasileira de 1988. Da mesma maneira que a dignidade da pessoa humana enquadra-se na categoria de super princípio constitucional, justifica-se a

213 Ibid., p. 77-78

caracterização do desenvolvimento sustentável nesta mesma categoria, tendo em vista sua importância e abrangência de valores que abarca. A doutrina estrangeira reconhece ao desenvolvimento sustentável o caráter de super princípio215. Não foi encontrado na doutrina pátria esse tipo de abordagem, de forma que ressalta a importância em atentar aqui para esse caráter de super princípio atribuído ao desenvolvimento sustentável. Deve andar lado a lado com a dignidade da pessoa humana, tendo em vista a fundamentalidade e abrangência dos valores abarcados pelo princípio do desenvolvimento sustentável.

Retome-se aqui o julgado do STF anteriormente referido, o qual expressamente ao desenvolvimento sustentável como princípio constitucional. Esse reconhecimento é importante; no entanto, a jurisprudência mostra-se um tanto confusa porque, logo a seguir, qualifica o desenvolvimento sustentável como postulado. No intuito de melhor compreender o desenvolvimento sustentável como princípio e porque não se deve tratá-lo como postulado, passa-se à análise proposta pela doutrina estrangeira da distinção entre princípios e regras. E complementa-se com a teoria por Humberto Ávila para o que se deve entender por postulado, em oposição às regras e aos princípios.