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ORIGEM E CRESCIMENTO DAS CIDADES LATINO-AMERICANAS:

As primeiras cidades latino-americanas surgiram com as civilizações maia, inca e asteca. Essas civilizações tinham sua formação ditada por interesses religiosos, a exemplo das cidades gregas e romanas. Além disso, possuíam uma tendência em centralizar nas cidades a vida política e econômica131. Nesse sentido, sua influência pode ser percebida nas cidades dos dias atuais.

A maioria das cidades da América Latina do período colonial (1500-1800) é resultado da colonização hispânica, marcada pela exterminação dos impérios construídos pelos nativos (maias, incas e astecas, principalmente), por aqueles que buscavam riquezas oferecidas pelas terras recém descobertas. Essa exploração foi, em geral, justificada pela necessidade da Igreja Católica em catequizar o mundo ocidental132. No Brasil, nascido de Portugal – a quem foi concedida permissão para explorar terreno americano, em 1494, pelo Tratado de Tordesilhas133 – foi estabelecido um sistema diferente: as capitanias hereditárias. Estas constituíam grandes porções de terra doadas para administração de particulares. Observa-se, portanto, que não existia controle central exercido pela coroa portuguesa, como aconteceu na colonização espanhola134.

Independente do sistema de exploração estabelecido, o certo é que as cidades latino- americanas foram criadas para servir aos interesses dos países colonizadores135. Pode-se aí identificar a dependência como o componente principal na formação das cidades do período colonial136. Dependência essa que apenas adquire outras configurações na medida em que as cidades evoluem, conforme explanado na seguinte passagem:

131 Walter D. Harris, 1975, p. 22. 132 Eduardo Galeano, 2007, p. 29-33.

133 Ibid, p. 32. Conforme o mesmo autor, os primeiros portugueses a habitar o Brasil chegaram em 1530, ao

expulsar os franceses.

134 Walter D. Harris, op cit., p. 31.

135 Milton Santos, 1982, p. 13. No mesmo sentido de que as cidades estavam a serviço dos países colonizadores

(GALEANO, op. cit., p. 48).

as tendências urbanas específicas que o desenvolvimento urbano assumia dentro da região e dentro de cada país, a concentração regional da urbanização em especial, foram em todos os casos condicionadas pelas relações de dependência, da mesma maneira que ainda o são137.

A exploração agrícola e de metais (especialmente ouro e prata), função econômica fundamental das cidades coloniais, fomentou o sistema de colonização, que alimentava o comércio de produtos nativos para as metrópoles do continente europeu138. Tem-se, dessa forma, que as necessidades estratégias eram dadas pela expansão do capital comercial europeu, que ditavam o tom do surgimento das cidades coloniais. Igualmente em decorrência desses fatores, em sua maioria, as cidades foram originadas na região costeira, na medida em que facilitava a comercialização de mercadorias. Alguns exemplos: Recife, em 1526, Porto Seguro, em 1500, Olinda, em 1535, Bahia, em 1549, e Santos, em 1536, todas no Brasil; Veracruz, no México, em 1519; Cartagena, na Colômbia, em 1533; La Paz, na Bolívia, em 1538, Santiago, no Chile, em 1541.139 Como coloca Eric Hobsbwan, “Estar perto de um porto era estar perto do mundo […]”140.

Foi à custa dos saques e dos lucros decorrentes do comércio e da agricultura das colônias espanholas e portuguesas que diversos países da Europa Ocidental, ironicamente com exceção da Espanha e de Portugal, passam a fomentar as bases para se industrializar, a proteger suas indústrias e comércio exterior e impediam, nas colônias saqueadas e exploradas, “o salto para acumulação de capital industrial”141.

Naturalmente, nem todo produto das colônias era enviado para a Europa. O mercado interno, os grandes latifúndios e as atividades minerarias, concentrados nas mãos dos poucos ricos, movimentavam a atividade econômica colonial sob a escravização de negros, traficados da África, e nativos142. Percebe-se que foi estabelecido na sociedade colonial um sistema de classes basicamente formado por latifundiários e escravos.

As cidades, na era colonial, funcionavam como pontos de partida para as frentes de colonização expandirem o seu domínio. Alguns desses movimentos de expansão possuíam um

137 Fernando Lopes de Almeira, 1978, p. 28. 138 Eduardo Galeano, 2007, p. 47.

139 Ibid., p. 24, 27, 32, 33. 140 Eric Hobsbwan 2007, p. 26. 141 Ibid., p. 45-47.

caráter predominantemente urbano, como o dos Bandeirantes. Outras frentes tinham um caráter mais religioso, como o dos missionários jesuítas no Paraguai que construíram populações isoladas com a finalidade de catequizar os índios143.

A agricultura e o comércio levaram à necessidade de aumento na utilização de mão- de-obra dos nativos e negros para os trabalhos mais pesados, o que demonstra um acréscimo na população das cidades que, apesar de lento, era significativo. Para se ter uma idéia, por volta do ano de 1570, a população de negros nos países de colonização espanhola era de aproximadamente 40.000; no final do período colonial (1825), chegou a cerca de 2 milhões144.

Esse aumento na mão-de-obra utilizada em trabalhos mais pesados, ampliou o desejo, inclusive de trabalhadores de classe média, a viver da renda das terras pela exploração dessa mão-de-obra barata e abundante. Por outro lado, o bem sucedido comércio nos centros urbanos atraiu mais e mais pessoas originadas dos países colonizadores. Pode-se identificar nessa época o início da migração campo-cidade, que teve um aumento sem precedentes com a Revolução Industrial, como se verá adiante. Ademais, os grandes latifundiários não tinham interesse em investir no interior145, ou em “diversificar as economias internas, nem em elevar os níveis técnicos e culturais da população”146. Os que não abandonavam o país deslocavam- se para os centros urbanos para gastar os lucros obtidos com a agricultura, pecuária e mineração. Isso representou um desestímulo a viver no campo.

Os últimos anos do período colonial – entre 1818 e 1825 – foram marcados por guerras de independência das colônias que se converteram em repúblicas independentes, o que deu fim a esse período. As nações independentes recém surgidas agora eram dependentes do sistema capitalista industrial147, que começou a surgir na Inglaterra, por volta de 1780148.

Durante os séculos XIX e XX, as principais cidades latino-americanas consolidaram-se como centros de poder político e econômico da política nacional e do comércio exterior. Ainda assim, a vida urbana não prevaleceu no país.

143 Walter D. Harris, 1975, p. 27. 144 Ibid., p. 33.

145 Ibid., p. 38.

146 Eduardo Galeano, 2007, p. 49.

147 Fernando Lopes de Almeida, 1978, p. 15.

148 Eric Hobsbawn, 2007. O mesmo autor também se refere à dependência dos países latino-americanos das

Apesar de se observar, na América Latina, desde a era colonial, o aumento da população das cidades com a movimentação campo-cidade, e o importante papel dos centros urbanos para o desenvolvimento econômico, a concentração urbana nunca foi tão intensa quanto com o advento da sociedade industrial. Nesse ponto a industrialização na América Latina apresenta similaridade com o processo europeu.

No Brasil, o processo de industrialização passou a se firmar a partir da Revolução de 30. Contrário à idéia dominante de que a burguesia industrial se consolidou nos grandes centros fazendo surgir duas classes opostas: o setor dos capitalistas (burgueses) e o setor feudal (latifundiários), e de que a Revolução de 30 teria sido uma reação dos primeiros ao sistema agrário predominante do Brasil, Boris Fausto afirma que essas classes partilhavam interesses, entre os quais a expansão da indústria no país. Entre os argumentos convincentes arrolados pelo autor, tem-se a situação precária da indústria brasileira na década de 20, a qual “se caracteriza […], pela dependência do setor agrário exportador, pela insignificância dos ramos básicos, pela baixa capitalização, pelo grau incipiente de concentração”149. A agricultura é dominante e tem papel central na economia150. Tais fatores desfavoreceram a solidificação de uma classe forte – os burgueses – capaz de efetivar uma revolução industrial bem sucedida. A relação entre o setor agrário e o industrial é mais bem qualificada como de interdependência. Apenas pequena parcela da burguesia se colocava contra o regime oligárquico151.

Contribuiu fortemente para que a industrialização nos países latinos, como o Brasil, tenha ocorrido em momento posterior à da Europa e de forma diversa, a relação de dependência já referida nesse tópico. O “boom” da industrialização na América Latina ocorreu somente após a 2ª Guerra Mundial152.

Além disso, a exploração das colônias, baseada na monocultura (açúcar, café), na exploração de miseráveis – que impedia a formação de um mercado interno de consumo153 – e no envio das riquezas latinas para a Europa em troca de produtos manufaturados de luxo, contribuíram para a industrialização tardia da América Latina.As riquezas eram utilizadas 149 Boris Fausto, 1995, p. 19. 150 Ibid., p. 22. 151 Ibid., p. 14, 46. 152 Walter D. Harris, 1975, p. 36. 153 Eduardo Galeano, 2007, p. 49.

para sustentar os luxos da aristocracia, o que acontece até os dias atuais. Nessa ordem de idéias, expõe Eduardo Galeano154:

O capital que sobrava na América, uma vez deduzida a parte do leão que se dirigia ao processo de acumulação primitiva do capitalismo europeu, não gerava, nessas terras, um processo análogo ao da Europa, para lançar as bases do desenvolvimento industrial, mas se desviava para a construção de grandes palácios e templos ostentosos, à compra de jóias, roupas e móveis de luxo, à manutenção de numerosos serviçais e ao desperdício em festas. Em boa medida, este excedente também ficava imobilizado na compra de novas terras ou continuava girando nas atividades especulativas e comerciais.

Em meados do século XIX e no decorrer do século XX, o capitalismo dos centros urbanos convive com a atividade agrícola ainda dominante. Os investimentos estrangeiros encontraram terreno fértil, bem como as monoculturas de exportação ganharam grande impulso (café, por exemplo). As atividades de monocultura, pela sua natureza, somente têm condições de garantir o emprego por determinado período do ano. Sendo assim, começam a aparecer as migrações campo-cidade desses trabalhadores155.

Nessa época, tem-se uma continuidade no desenvolvimento urbano iniciado nos anos anteriores, que agora é bastante desorganizado. O crescimento urbano não seguiu qualquer planejamento; espalhava-se aleatoriamente por todo o território e a única orientação existente era a topografia e as características físicas das áreas em expansão156, além dos interesses econômicos dos países industrializados.

O fortalecimento dos centros urbanos teve ainda a influência do liberalismo econômico, o qual foi implantando sem qualquer critério ou consideração da realidade vivida nos países da América do Sul. Logo, colaborou com o processo de transformação dos centros urbanos em detentores dos valores monetários acumulados, visto que estes tinham uma constante demanda por produtos estrangeiros157.

A grande marca do século XX nas cidades brasileiras é justamente a explosão demográfica e o ritmo cada vez mais acelerado e intenso do crescimento desordenado das

154 Eduardo Galeano, 2007, p. 49, 50 (grifo do autor). 155 Ibid., p. 38.

156 Walter D. Harris, op. cit., p. 36. 157 Walter D. Harris, 1975, p. 38,

cidades; fenômeno que fica claro pela observação, por exemplo, dessa seqüência de fotografias da Avenida Paulista do início ao final do século XX. Em pouco mais de cinqüenta anos, a Avenida passou de um conjunto de casarões e árvores e tranqüilidade para um dos motivos que se pode hoje chamar São Paulo de uma verdadeira “selva de pedras”.

Avenida Paulista, 1904

fonte: HISTÓRIA DO EDIFÍCIO PATRIMÔNIO, 2008.

Avenida Paulista, 1910

Avenida Paulista, 1920

fonte: HISTÓRIA DO EDIFÍCIO PATRIMÔNIO, 2008.

Avenida Paulista, 1930

fonte: HISTÓRIA DO EDIFÍCIO PATRIMÔNIO, 2008.

Avenida Paulista, 1950

Avenida Paulista, 1970

fonte: HISTÓRIA DO EDIFÍCIO PATRIMÔNIO, 2008.

Avenida Paulista, 1986

fonte: HISTÓRIA DO EDIFÍCIO PATRIMÔNIO, 2008.

Avenida Paulista, 1999

A intensidade e rapidez no processo de urbanização no Brasil também podem ser demonstradas no quadro abaixo:

População residente (mil)

Ano Urbana Rural TOTAL

1940 12.880 28.356 41.236 1950 18.783 33.163 51.994 1960 31.543 38.657 70.191 1970 52.084 41.054 93.139 1980 80.436 38.566 119.002 1991 110.876 36.042 146.917 1996 123.082 33.997 157.080 2000 137.953 31845 169.799

Fonte: IBGE, 2008. Censos Demográficos de 1940 a 2000.

Aliado ao processo de urbanização rápido e intenso, tem-se a ausência de um planejamento efetivo e adequado a realidade fática. Podem-se apontar algumas iniciativas isoladas, durante as décadas de 60 e 70, de planejamento urbano. Esse período é tido como a época dourada do planejamento posto que surgiram grandiosos planos a serem executados, em tese, pelo Estado. É o caso do Plano Nacional de Saneamento (Planasa), o qual consistia em subsídio de créditos para fundos de urbanização; ou do Serviço Federal da Habitação e Urbanismo (Serfhau), criado “para administrar os recursos alocados à atividade” e assessorar cidades menores que provavelmente não seriam capazes de realizar seu próprio planejamento urbano por falta de conhecimento técnico e administrativo para tal tarefa. Tais planos, entre tantos outros surgidos nessa época, pecavam especialmente em dois pontos cruciais: a) ausência de um critério orientador para objetivar a sua elaboração, de forma que acabavam por ser abrangentes demais, na medida em que englobavam todos os ângulos “possíveis e imagináveis” da vida urbana – “desde obras de infra-estrutura física até a renovação e o desenho urbanos, ordenação legal do solo e da paisagem urbana, até a provisão de serviços […] como saúde e educação pública”; b) o primeiro ponto leva ao segundo: poucos deles foram efetivados158.

Conseqüências dos três fatores principais anteriormente citados (rapidez, intensidade, planejamento, quando existente, ineficaz) trouxeram para as cidades o flagelo da pobreza, da fome, das desigualdades sociais, conformando um quadro generalizado de injustiça social159. Segundo Mike Davis, “Os princípios básicos do planejamento, como preservação do espaço aberto e separação entre residências e usos nocivos da terra, estão de cabeça para baixo nas cidades pobres”160. Nas cidades da América Latina consideradas mais desenvolvidas, ao menos do ponto de vista econômico, a situação não é diferente. Vejam-se quantas invasões em áreas de proteção de manancial em São Paulo, a exemplo dos casos amplamente conhecidos e divulgados das represas Guarapiranga e Billings. Na Guarapiranga, responsável pelo abastecimento de cerca de 3,8 milhões de pessoas da zona sudoeste da cidade de São Paulo161, encontra-se um sem fim de favelas e esgotos a céu aberto. Em Recife, as áreas de manguezal são constantemente invadidas por ocupação irregular da população de baixa renda.

Não é indispensável uma análise muito profunda para se concluir que um crescimento acelerado sem planejamento prévio e feito à custa da exploração da maioria desfavorecida é a fórmula mais rápida para se chegar a centros urbanos caóticos, sem condições de oferecer à população o mínimo de qualidade de vida. Ao que parece, o grande “desafio da nossa civilização urbano-industrial é como transformar uma estratégia de crescimento econômico direcionada contra a maioria da população em um modelo de sustentabilidade baseado no bem-estar humano” 162.

Para se tentar minimizar esse caos urbano e criar instrumentos efetivos de planejamento urbano, o direito brasileiro, em 2001, editou o Estatuto da Cidade, o qual estabelece instrumentos de regulação urbana, entre os quais o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), tema central da presente pesquisa. Considerando-se que, atualmente, busca-se como paradigma para a vida urbana as denominadas cidades sustentáveis, o Estudo de Impacto de Vizinhança deve ser compreendido na perspectiva desse modelo de cidade. Uma compreensão mais precisa de tal modelo necessariamente passa pela análise de um dos mais importantes princípios em matéria ambiental, quiçá constitucional: o desenvolvimento sustentável.

159 Jacqueline Menegassi e Letícia Osório Marques, 2002, p. 67, 68. 160 Mike Davis, 2006, p. 134.

161 SÃO PAULO. PREFEITURA. Todos abraçando…, 2008. 162 Henrique Rattner, 2001, p. 12.

3 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: UMA ANÁLISE CONCEITUAL