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Como visto até agora, a economia dá o norte principal para o desenvolvimento e declínio das cidades. Essa afirmação se torna mais verdadeira quando se tem em mente o mundo contemporâneo. As transformações ocorridas nas sociedades humanas desde a Revolução Industrial adquirem, no mundo contemporâneo, um caráter global (século XX)99.

Giddens aponta três características desse período, o qual ele denomina “modernidade”, mas que aqui se elegeu denominar mundo contemporâneo. São elas: a) o “ritmo de mudança” adquire uma velocidade extrema; b) em todos os lugares do Planeta os efeitos das mudanças são sentidos; c) “a natureza intrínseca das instituições modernas”, como a dependência de fontes de energia “inanimadas”100. Giddens refere-se ainda ao Estado-nação. Contudo, esse vem sendo aos poucos substituído pelo que se denomina cidade global, com maior intensidade na seara econômica e ganhando mais espaço na cultura e na política101. Atualmente, o mercado mundial dita as políticas econômicas internas a serem adotadas pelos países do mundo.

O termo cidades globais foi criado para designar cidades como Londres, Tóquio, Paris e São Paulo102, caracterizadas por se haverem transformado no centro da economia do mundo, ou seja, “lugares-chaves e praças de mercado fundamentais para as indústrias […]; campos para a produção de inovações nas indústrias”, com amplíssima quantidade de recursos e indústrias de ponta103. Isso demonstra, ademais, que o capitalismo passa por mais uma transformação no sentido de que a economia não mais se limita ao Estado nacional104.

Não está aqui se querendo afirmar que o Estado-nação será definitivamente superado em um horizonte temporal de dez ou vinte anos, ou que será, de fato, superado. Inobstante, é possível vislumbrar uma redução cada vez maior na soberania estatal, iniciada pela quebra das barreiras econômicas, de forma que o Estado-nação vai perdendo seu papel de centro de

99 Anthony Giddens, 1991, p. 13. 100 Ibid., p. 11, 15, 16.

101 Krishan Kumar, 2006, p. 23, 24.

102 Saskia Sassen, 1993, p. 188. Ao caracterizar as cidades globais, a autora não faz referência expressa à cidade

de São Paulo. Mas, não há dúvidas de que se enquadra na descrição proposta por ela.

103 Ibid., p. 188.

controle das atividades econômicas105. Tem-se como exemplo a criação de mercados comuns como o Mercosul, ou uma moeda única de circulação em diversos países europeus, qual seja o Euro. “O próprio Estado foi redesenhado em formas que minam sua capacidade de funcionar como depósito seguro de valores tais como democracia e justiça distributiva” (tradução livre). Ademais, existem questões globais, em especial no que se refere a problemas ambientais (aquecimento global, entre outros), que, por sua própria natureza, não podem se resolver no âmbito dos Estados nacionais106. É bastante razoável, dessa maneira, presumir que tanto mais se globaliza a economia, mais se convergem as funções centrais na cidade global107.

Dentro do ritmo acelerado e universalizado das mudanças, referenciado por Giddens, pode-se incluir o papel destacado que a tecnologia da informação exerce com a transformação em realidade da “comunicação instantânea”, a qual reduz drasticamente as distâncias de tempo e espaço. Cria, por outro lado, “uma interconectividade e nível de dependência em relação a uma realidade manufaturada” sem paralelo na história do homem108.

O ritmo da urbanização, igualmente às demais mudanças, acelera-se. Antes da Revolução Industrial, inobstante as cidades exercerem um papel importantíssimo, como visto nos tópicos anteriores, não se podia falar em sociedade urbanizada. Nesse período, a população agrária européia, e do restante do mundo, prevalecia sobre a urbana. Sociedade urbanizada é aqui entendida como aquela em que a vida urbana predomina; é dizer, a maioria das pessoas concentra-se nas cidades109. Assim que o termo urbanização (ou crescimento urbano, em oposição ao crescimento demográfico ou populacional) não deve ser compreendido como o fenômeno de formação de cidades ou mero aparecimento da vida urbana. Tampouco como simples “crescimento demográfico que se traduziu na súbita formação de grandes cidades”110. E sim, todo esse processo de formação da sociedade urbanizada que está sendo descrito no presente tópico.

Na realidade, pode-se afirmar que o advento do processo de urbanização da sociedade se deu no século XIX, com a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra e

105 Robert Howse, 2008, p. 1530.

106 Ibid., p. 1531. “the state itself has been reshaped in ways that undermine its capacity to function as a secure

repository of values such as democracy and distributive justice”.

107 Saskia Sassen, 1993, p. 190. 108 Krishan Kumar, 2006, p. 23, 24. 109 Kingsley Davis, 1977, p. 13. 110 Glenn H. Beyer, 1967, p. 17.

gradativamente espalhada pelo restante do mundo, pois a busca pela vida nas cidades se intensificou, como dito no tópico anterior. A sociedade mundialmente considerada passou a se julgar urbanizada de fato, em meados do século XX, quando a grande maioria – se não todos – dos países industrializados passaram a ser predominantemente urbanos. Anote-se que, por volta de 1900, apenas o Reino Unido guardava essa condição111.

A vida nas cidades veio se concentrando de forma tão intensa que novas tipologias começaram a surgir, na medida em que o termo cidade, geralmente utilizado em oposição à vida rural, não é mais suficiente para abarcar essas novas situações. Começa-se a falar em metrópole, para designar os “grandes centros urbanos”; megalópoles, para identificar a “região urbanizada contendo diversas áreas metropolitanas”; conurbações, para designar o movimento de cidades vizinhas em expansão que terminam por se juntar em um todo único112.

O crescimento das cidades está se tornando cada vez mais insustentável e, à revelia deste, continua. Prova dessa insustentabilidade é a busca crescente dos europeus pelos subúrbios113, onde há mais qualidade de vida. Antes os subúrbios eram um refúgio de final de semana, para descansar e relaxar. Desde o início dos anos noventa, observa-se na Europa um processo denominado “migração reversa” e permanente no sentido cidade-subúrbio, à procura de um ambiente menos poluído, empregos menos exaustivos e vizinhanças mais “amenas”114. No que se refere à América Latina, especificamente às cidades brasileiras, a questão será retomada no Capítulo seguinte.

Todas essas características representam a quebra do mundo contemporâneo com os valores tradicionais das sociedades que o antecederam, de uma forma nunca antes vista115, em movimento contínuo ao iniciado em decorrência da Revolução Industrial, em proporções antes nunca experimentadas pelo homem. Muito embora, é importante anotar que os valores tradicionais não desaparecem simplesmente. Em nenhum momento de transição histórica da humanidade o paradigma substituído deixa completamente de existir, continua a fazer parte

111 Kingsley Davis, 1977, p.14.

112 Hans Blumenfeld, 1977, p. 52, 53, 55.

113 Observe-se que a conotação de subúrbio na Europa é bem distinta da brasileira. No Brasil, o subúrbio fica

reservado para a população mais carente. Na Europa, ocorre justamente o contrário: vive no subúrbio quem tem melhores condições de vida. Assim também nos Estados Unidos. O chamado american dream inclui uma casa no subúrbio com amplo jardins e ausência de grades e muros.

114 EUROPEAN URBAN CHARTER, 2008. (Tradução nossa). 115 Anthony Giddens, 1991, p. 14, 15.

do modelo de sociedade ou cidade anterior116; é dizer, há uma relação de continuidade “entre o tradicional e o moderno, e nem um nem outro formam um todo à parte”117.

Podem ser observados indícios da crise do paradigma moderno, na medida em que este ora cumpriu suas promessas exageradamente, ora não as cumpriu. A idéia de dominação do homem pela natureza, por exemplo, foi uma das promessas da modernidade que foi realizada na forma mais perversa 118 – vide as catástrofes ambientais diariamente testemunhadas. Algumas das promessas não cumpridas pela modernidade são os ideais de liberdade, paz e democracia119, porquanto diariamente os meios de comunicação fornecem inúmeros casos de violação dos direitos fundamentais.

Diante dessa impossibilidade em não atender, ou atender de forma perversa, os ideais do paradigma da modernidade, é que se afirma que a humanidade (ao menos os teóricos) está em busca de um novo modelo social – vive-se uma fase de transição paradigmática120. Para Giddens, não se está entrando em um novo paradigma, ou em um período pós-moderno121. Independente de se estar em fase de transição ou na busca de um novo modelo societal, tem razão Giddens ao afirmar que se está vivenciado a universalização ampla e acelerada das conseqüências da modernidade122. Não se tem mais a dimensão imediata dos efeitos de um determinado ato, nem no que se refere a tempo, nem a espaço. Em idéia similar à de Giddens, coloca Boaventura de Sousa Santos que123,

Enquanto anteriormente os actos sociais partilhavam a mesma dimensão espácio-temporal das suas consequências, hoje em dia a intervenção tecnológica pode prolongar as consequências, no tempo e no espaço, muito além da dimensão do próprio acto através de nexos de causalidade cada mais complexos e opacos.

Esse período de transição ou de crise pode ser parcialmente identificado com o que Ülrich Beck124 denominou sociedade de risco, a qual tem o caráter de multiplicidade, incerteza e universalização das fontes de riscos e das incertezas. Os riscos são definidos não a

116 Boaventura de Sousa Santos, 2006, p. 15. 117 Anthony Giddens, 1991, p. 14.

118 Boaventura de Sousa Santos, op. cit., p. 24, 51. 119 Ibid., p. 24.

120 Ibid., p. 49.

121 Giddes, op. cit., p. 98. 122 Ibid., p. 98.

123 Ibid., p. 58.

partir da noção coloquial, mas como “um meio sistemático de lidar com os perigos e inseguranças induzidas e introduzias pela própria modernidade”125. Estes encontram-se em quantidade abundante e indesejada e desconhecem, até certo ponto, estratificação social ou fronteiras nacionais. Até mesmo porque, em algum momento, atingirão os que os produzem e deles se beneficiam. A isso o autor denomina “efeito boobmerang” (boomerang effect), o qual pode afetar não apenas a vida, mas a economia, a propriedade, os lucros. Coloca como exemplos a destruição e uma floresta que não é prejudicial apenas para as espécies animais e vegetais perdidas, mas reduz o valor econômico da terra; a queda de preço na propriedade onde se instala uma usina nuclear.

Sentença emblemática criada pelo autor para demonstrar que o risco relativiza a setorização da sociedade em classes, é a seguinte: “a pobreza é hierárquica, a neblina é democrática”126. Não se pode ignorar, contudo, novas desigualdades possivelmente emanadas da noção de risco, geralmente surgidas em escala internacional. Observa-se uma tendência a se transferir para os chamados países do Terceiro Mundo as indústrias que oferecem maiores riscos. “Há uma sistemática ‘atração’ entre extrema pobreza e extremo risco”, não por acaso127. Essa interação entre pobreza e indústrias cria novos riscos artificiais, ao lado dos naturais que se tornam mais graves no ambiente de pobreza urbana128.

Nessa sociedade de risco, ou mundo contemporâneo, perde-se o referencial da ciência e do progresso como paradigmas de segurança típicos do final do século XIX, início do século XX. Este é substituído pela multiplicidade e incerteza das fontes dos riscos: ameaça de guerra nuclear, epidemias mundiais (gripe aviária, por exemplo), catástrofes como a Indonésia (ilha de Java), atingida por um tsunami129, terrorismo, crises no sistema de saúde brasileiro, violência nas grandes metrópoles, ausência de saneamento básico, ameaça de epidemia de dengue, corrupção, aquecimento global, destruição paulatina da Amazônia, lista crescente de espécimes da fauna e da flora ameaçados de extinção, tráfico de animais silvestres, entre tantos outros problemas e crises que se poderia exaustivamente aqui listar. Essa multiplicidade de riscos se assemelha aos fracassos do paradigma da modernidade afirmados por Boaventura de Sousa Santos, referidos neste tópico.

125 “a systematic way of dealing with hazards and insecurities induced and introduced by modernization itself”.

(Grifo do autor. Tradução nossa.)

126 Ülrich Beck, 2005, p. 36. “poverty is hierarchic, smog is democratic”. (Grifo do autor. Tradução nossa.) 127 Ibid., p. 41. “There is a systematic ‘attraction’ between extreme poverty and extreme risk”.

128 Mike Davis, 2006, p. 134. 129 FOLHA ONLINE, 2008.

Apesar de avanços por diversas conferências, tratados e outros instrumentos internacionais, pela movimentação da sociedade civil organizada, e de governos de alguns países, é certo que os problemas ambientais (ambiente natural e urbano) crescem diariamente. A formação de passivo ambiental parece incessante; e talvez o seja. O exemplo mais recente na tentativa de reduzir esse passivo ambiental é o acordo firmado, em primeiro de julho do corrente ano, pelo G8 (grupo composto pelas sete maiores potências mundiais – Japão, Grã- Bretanha, Canadá, Alemanha, França, Itália e Estados Unidos – e a Rússia) para reduzir as emissões de gases que provocam o efeito estufa, até o final do ano 2050. No acordo foi estabelecido o compromisso de adoção de metas intermediárias, bem como a importância da participação de todas as grandes economias mundiais. Os Estados Unidos, um dos maiores emissores de gases do mundo, comprometeram-se em adotar metas obrigatórias desde que China e Índia também o façam130.

Desconsiderando-se a discussão em torno da crise da modernidade, é certo que, no mundo contemporâneo, torna-se um tanto árdua a tarefa de estabelecer uma tipologia de cidade predominante, como nos períodos históricos anteriores. A cidade que talvez melhor o represente seja a cidade global, inicialmente explanada e que guarda todas as características do mundo contemporâneo trazidas neste tópico

Pode-se pensar em outro tipo de cidade, a qual, quiçá, seja um tanto mais comum que a cidade global: é a cidade marcada pela dependência e que tem raízes no período medieval, quando se iniciou o movimento de colonização das Américas. As antigas colônias apenas mudaram de “forma”: a dependência continua, seja financeira, seja no estabelecimento do padrão de vida ideal, na moda, na alimentação, tecnologia, entre tantos outros fatores. Por mais que se reconheça e se busque reconhecer a importância dos valores locais, e possam se observar os inúmeros avanços na medicina, por exemplo, em países como o Brasil, a verdade é que a condição de dependência ainda caracteriza inúmeras cidades do mundo contemporâneo. Esse tema será novamente tratado no tópico seguinte, sobre a evolução das cidades na América Latina.

2 ORIGEM E CRESCIMENTO DAS CIDADES LATINO-AMERICANAS: DO