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2. OPERAÇÕES URBANAS E OPERAÇÕES INTERLIGADAS

2.2. Desfavelamento e Operações Urbanas Interligadas

Durante a gestão de Jânio Quadros (1986-1989) foi elaborada outra proposta de plano diretor com a finalidade de substituir aquela de 198522, apoiando-se em estudos, relatórios e documentos, formados em grande parte por complementações dos estudos realizados para o projeto de plano anterior23. A revisão feita, entretanto, revela-se sobretudo como revisão dos objetivos relativos à política urbana. A principal mudança de orientação em relação ao Plano 1985-2000 referiu-se ao peso relativo da participação do setor privado no processo de gestão urbana através de operações urbanas e da privatização dos serviços públicos por concessão.

O Plano foi aprovado pelo expediente autoritário do decurso de prazo, dispositivo jurídico vigente no período do regime militar, que permitia a aprovação automática de um projeto de lei enviado pelo executivo se esse não fosse examinado pela Câmara Municipal em um prazo de quarenta dias.

Na Lei, foi colocado como um dos objetivos "ampliar e agilizar as formas de participação da iniciativa privada", criando a possibilidade de "produção de habitação de interesse social", através de um "mecanismo de troca". É o que pode ser lido a seguir:

"Art. 27 - As diretrizes para ampliar e agilizar as formas de participação da iniciativa privada, em empreendimentos de interesse público, de acordo com o art. 5º, item VI, são:

I - Aprimorar o instrumental que estabelece mecanismo de troca, objetivando compensar, com direitos suplementares, de uso e ocupação do solo, a quem assumir encargos, tais como o de preservação do patrimônio cultural e ambiental, o de produção de habitação de interesse social e o de produção complementar de infra-estrutura, equipamentos e serviços públicos.

II - Propor legislação para implantar Operações Urbanas."(Lei Municipal nº. 10.676 de 8/11/1988)24.

Entretanto, a Lei 10.209 de 09 de dezembro de 1986 antecedeu a lei do plano citada acima. Conhecida como "Lei do Desfavelamento" e depois passando a ser chamada

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Plano Diretor do Município de São Paulo, São Paulo, Secretaria Municipal do Planejamento, Diário Oficial do Município, nº. 137, Suplemento Especial, 24/07/87, p. 9. O plano foi aprovado como Lei Municipal nº. 10.676 de 8 de novembro de 1988.

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Uma síntese desses estudos constou do Anexo 3 da Lei, reproduzido em Plano Diretor do Município de São Paulo, 1988 – Coleção Dossiês: Plano Diretor do Município de São Paulo – Volume III, do Centro de Coleta, Sistematização, Armazenarnento e Fornecimento de Dados - CESAD da FAU-USP (CESAD, 1991, p.19-54).

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de "Lei das Operações Interligadas", destinava-se em sua origem à remoção de favelas acompanhada de obtenção de recursos para a construção de habitações de interesse social25.

Por essa lei, o proprietário de terreno ocupado por favela poderia solicitar modificação nos índices determinados pela legislação de uso e ocupação de solo, desde que se comprometesse a construir e doar à Prefeitura habitações de interesse social para a população removida. A Prefeitura arcaria com a responsabilidade da transferência dos moradores, enquanto os proprietários ou empreendedores obteriam duplo benefício: a recuperação do terreno e sua valorização, mediante obtenção de índices urbanísticos mais permissivos que os vigentes na vizinhança (SILVA, 1995, p. 331).

O projeto de lei foi apresentado à Câmara Municipal no início da gestão de Jânio Quadros. A Comissão de Justiça e Redação da Câmara, apreciando o projeto, pronunciou- se pela sua ilegalidade.

“O que pretende o projeto, em última análise é que o Executivo fique autorizado de forma genérica a receber doações, a alienar imóveis e a alterar índices de uso e ocupação do solo. A fórmula jurídica acertada para a consecução destes objetivos seria o Executivo propugnar em cada caso a realização desses planos e remetê-los individualmente a esta Câmara para competente autorização específica. Pela ilegalidade.” (DOM, 34/86, p. 22, apud NERY JR., 2002, p. 234). Retirado esse primeiro projeto da Câmara, um novo projeto foi apresentado com prazo para aprovação estipulado em 40 dias e a lei foi promulgada por decurso de prazo, mesmo com parecer contrário da Presidência da Câmara26.

Diversamente das Operações Urbanas que, conforme o Plano de 1985, seriam projetos especiais aplicáveis em um setor urbano de certa extensão, as Operações Interligadas criavam uma situação de exceção localizada para um lote ou conjunto de lotes. A exceção ocorria em relação aos índices urbanísticos definidos pelo zoneamento, ou seja, pelas Leis de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo – LPUOS27, particularmente em relação ao Coeficiente de Aproveitamento – CA, que determina a área máxima de

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“O ex-prefeito Jânio Quadros fez publicar no Diário Oficial do Município de 30/12/88, p.2, a seguinte declaração em relação às Operações Interligadas: ‘o objetivo básico da lei é aproveitar o dinamismo da iniciativa privada para ajudar a resolver o problema das habitações subnormais, o das favelas. A idéia central é promover a construção de habitações populares, mediante a possibilidade de aumentar o potencial construtivo de determinados terrenos.’ ” (CÂMARA MUNICIPAL, 2002, p.3)

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Um relato detalhado com base nos pronunciamentos dos vereadores encontra-se em Nery Jr., 2002, p. 233 - 236. A lei teve o apoio do SECOVI, “cujo presidente Romeu Chap Chap esteve pessoalmente na Câmara para obter apoio dos vereadores para sua aprovação” (NERY JR., op. cit., p. 270)

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Trata-se do conjunto de leis que a partir do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado de 1971 (Lei 7.688 de 30 de dezembro de 1971) e das primeiras Leis de Zoneamento (Lei 7.805 de 01 de novembro de 1972, alterada pela Lei 8001 de 28de dezembro de 1973) regulamentaram as zonas de uso e ocupação do solo no Município, até a promulgação do Plano Diretor Estratégico de 2002 (Lei 13.430 de 2002 de 13 de setembro de 2002) e dos Planos Regionais Estratégicos por Subprefeituras (Lei 13.885, de 25 de agosto de 2004) que definiram o zoneamento atualmente em vigor. Cf. Capítulo 8 e Anexos 17 e 18 deste trabalho.

construção em função da área do terreno, mas também em relação aos usos admitidos em uma determinada zona28.

As contrapartidas em habitação de interesse social seriam destinadas ao Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal – FUNAPS e, depois de 1995, ao Fundo Municipal de Habitação – FMH. A apresentação de propostas de solicitação de Operação Interligada era feita em resposta a editais específicos. As propostas, depois de analisadas sob coordenação da SEMPLA com participação de outros órgãos da administração, eram submetidas à Comissão de Zoneamento, substituída em 1988 pela Comissão Normativa de Legislação Urbanística – CNLU, da qual participavam órgãos públicos e representantes da sociedade, incluindo o setor imobiliário29.

Quando a prefeita Luiz Erundina assumiu a Prefeitura em 1989, as Operações Interligadas foram mantidas e passaram por um projeto de reformulação que resultou em projeto de lei do executivo enviado à Câmara30, o qual não foi apreciado, sendo retirado pelo prefeito seguinte (Paulo Maluf). Paul Singer, Secretário de Planejamento durante a gestão de Luiza Erundina, posicionando-se a favor da aplicação do instrumento, fez o seguinte balanço das Operações Interligadas naquele período (1989-1982):

“O movimento crescente tanto de propostas apresentadas como de operações interligadas aprovadas mostra a importância desse instrumento e objetivamente a necessidade de flexibilizar a legislação do zoneamento em São Paulo. Como a apreciação urbanística de cada proposta, ao menos em nossa gestão, passou a ser bastante rigorosa, nenhuma proposta mereceria aprovação se o zoneamento fosse correto, ou seja, se as restrições que ele impõe realmente se justificassem. Mas naqueles quatro anos, 69 operações interligadas foram aprovadas urbanisticamente e apenas 41 foram rejeitadas, demonstrando que em mais de 60% dos casos algumas das restrições do zoneamento não se justificavam, viabilizando muitas vezes investimentos que de outra maneira não poderiam ter se realizado. Além de proporcionar milhares de habitações para favelados financiadas pelos beneficiários das operações interligadas” (SINGER, 1996, p.180)31.

Daniel Van Wilderode, analisando as Operações Interligadas, coloca-as como elementos de um processo de desregulamentação do zoneamento, principalmente em função de interesses imobiliários. A Operação Interligada permitia a um indivíduo – empreendedor, investidor ou proprietário - uma derrogação da lei de zoneamento para realizar um empreendimento em um lote. Esse caráter de excepcionalidade estaria na base

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No Capítulo 9 a questão será tratada mais extensamente.

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Uma análise do papel e da composição da CNLU será realizada no Capítulo 9, tratando dos aspectos institucionais vinculados às Operações Urbanas.

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Projeto de Lei 200/89, que visava “estabelecer prioridades para as favelas a serem atendidas e restrições de ordem urbanística” que não constavam da lei então em vigor (WILDERODE, 1997, p.45).

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O trecho citado faz parte de relato que o autor fez sobre sua participação no governo de Luiza Erundina à frente da Secretaria Municipal de Planejamento (SINGER, 1996), ampliando trabalho anterior (SINGER, 1995).

do êxito das Operações Interligadas, posto que proporcionava lucros extraordinários ao empreendedor, já que o valor da contrapartida correspondia, em média, a apenas 26% do lucro do empreendimento (WILDERODE, 1994, p. 176).

“Para atender às pressões dos principais representantes do setor imobiliário, o artifício do mecanismo interligado veio permitir não só escapar do bloqueio da Câmara [o prefeito não dispunha da maioria dos votos], mas também criar, para cada operação em particular, uma situação de exceção em relação ao zoneamento” (id. ibid. p. 175)

As Operações Interligadas foram controversas32 do ponto de vista de seus efeitos, primeiro porque a remoção da população nas áreas de favelas ocorria de modo arbitrário sem qualquer consulta aos moradores, e também porque não eram levados em consideração os efeitos agregados das operações sobre a vizinhança ou sobre o conjunto da urbanização e as necessidades decorrentes de provisão de infra-estrutura. Foram contestadas também sob o ponto de vista jurídico, pois as modificações na legislação de uso e ocupação do solo que promoviam não eram objeto de aprovação pela Câmara Municipal, como exigiam a Constituição Estadual e a Lei Orgânica do Município. Além de instituírem juridicamente uma desigualdade básica entre os cidadãos em relação ao quadro legal do zoneamento, que poderia ser derrogado àqueles que pudessem pagar por tal derrogação33. As Operações Interligadas foram suspensas por determinação judicial em 1998 e julgadas inconstitucionais em 200134. Além disso, a Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada pela Câmara Municipal de São Paulo constatou diversas irregularidades no encaminhamento das Operações Interligadas nas gestões dos prefeitos Paulo Maluf e Celso Pitta, inclusive com desvio de cerca de US$ 79 milhões que não foram repassados ao Fundo Municipal de Habitação (CÂMARA MUNICIPAL, 2002, p. 238)35.

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Uma avaliação das operações interligadas até o ano de 1992 pode ser encontrada em “Participação da Iniciativa Privada na Construção da Cidade”, IN Cadernos de Planejamento, Diário Oficial do Município, (suplemento), São Paulo, PMSP- SEMPLA, 24/12/1992. Ali podemos ler: "As 'Operações Interligadas' podem ser consideradas um sucesso. Até o final de novembro [de 1991] o número de Habitações de Interesse Social por elas proporcionado chegou a quase sete mil (6.959). Lembre-se também que [...] inúmeras melhorias no sistema viário têm sido executadas pelo empreendedor, melhorando o desempenho de certa parcela do território urbano[...]" Idem ibid., p.3. Além das citadas, outra avaliação das Operações Interligadas pode ser encontrada em Fix (2001:72-76).

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Conforme assinalado, análise extensiva das Operações Interligadas foi feita por Daniel Van Wilderode (op. cit.), acompanhada de dados complementares e sintetizada em trabalho posterior (WILDERODE, 1997).

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Em 11 de novembro de 1997, o Ministério Público do Estado de São Paulo, através da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, moveu Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN nº. 045.352-0) com base na Constituição Estadual e na Lei Orgânica do Município. O texto da ação pode ser consultado em http://www.apmp.com.br/juridico/ pjhuc/pecas/peca1.htm (acessado em 17/9/2004). Em 14/02/2001 o Tribunal de Justiça do Estado pronunciou-se pela inconstitucionalidade da Lei, por 14 votos a 11 (Acórdão 045.352-0/5-00).

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A CPI da Câmara realizou seus trabalhos entre 23/10/01 e 7/06/02. Os vereadores que participaram da comissão foram: Antonio Goulart (PMDB), Presidente; José Viviani Ferraz (PL), Vice-Presidente; João Antonio (PT), Relator; Alcides Amazonas (PC do B), Wadih Mutran (PP), Paulo Frange (PTB) e Arselino Tatto (PT). O Relatório da CPI encontra-se disponível em http://www.camara.sp.gov.br/central_de_arquivos/vereadores/CPI-OI.pdf (acesso em 14/2/2005).