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1. A Teoria do Símbolo Religioso de Tillich

1.3. Símbolo e Mito em Tillich

1.3.2. Desmitologização: a “Quebra” do Mito

De acordo com Tillich, um mito sempre combina três elementos: o religioso, na capacidade de representação do incondicionado transcendente, o científico ou “cognitivo”, que é a referência à realidade objetiva, e o núcleo mítico, que é a

objetificação do transcendente a partir de propriedades imanentes. A unidade do mito é

quebrada quando se alcança a percepção de dois fatos sobre a realidade: (1) da incondicionalidade divina e (2) da racionalidade do mundo. Neste momento ganha-se a consciência de que o núcleo mítico, que objetifica o incondicionado, não é uma “realidade real”, mas um símbolo, literalmente indescritível, sem expressão empírica. Isso é o que Tillich chama de “mito quebrado”, cujo conteúdo empírico foi desconectado de sua referência transcendente e submetido à crítica científica, marcando a transição para uma religião e uma ciência autônomas. Mas, em todo o processo, a importância do mito para a construção do real permanece a mesma – inclusive para a ciência, como veremos.

“Desmitologização”17 é o termo adequado para descrever a necessidade de “reconhecer o símbolo como símbolo e o mito como mito”, isto é, reconhecer a verdade da preocupação última veiculada por ele, mas a inverdade de seu conteúdo literal, tanto de um ponto de vista religioso como científico. Desde que se evite, naturalmente, o erro de pensá-la como um método de eliminação de mitos, pois o mito, como forma da consciência humana, é inextinguível. O que torna a desmitologização necessária é o

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Se bem que, a julgar pelo texto, Tillich parece simplesmente assumir um termo corrente: “[o mito] precisa, como se diz hoje, de ‘desmitologização’” (MW5[DF]:254).

paradoxo lógico envolvido na atribuição de categorias da experiência humana ao incondicionado, como forma de expressar a preocupação última. O “desrespeito narrativo”, por assim dizer, dos limites entre realidade não-dependente, incondicionada, e as criaturas, gera histórias cuja forma plástica permanece instável; tal transgressão é necessária para a referência ao incondicionado, mas isso torna a desmitologização igualmente necessária: “[...] todas as histórias em que se conta sobre interações divino- humanas são consideradas mitológicas em caráter, e objeto de desmitologização” (MW5[DF]254). O paradoxo gerado pela descrição de uma interação divino-humana, de uma transgressão dos limites de transcendência e imanência, exige dissolução crítica.18

A razão principal porque Tillich rejeitou a interpretação literal da linguagem religiosa não foi a crítica moderna do mito, mas a sua compreensão da realidade última como estando além da estrutura eu-mundo que contém a linguagem discursiva e as possibilidades de objetificação. A divindade se encontra, assim, além da linguagem, não sendo possível diferenciar-lhe características. Tillich descreve a realidade última como “incondicionada”, significando que ela está além de qualquer limitação e categorização. O Incondicionado é infinito e livre de propriedades.

Há, portanto, uma motivação teológica para a desmitologização: o impulso em direção ao incondicionado, presente no símbolo mítico, por si só, é a origem última de sua ruptura. A crítica religiosa do mito prossegue em direção à rejeição da confusão de transcendência e imanência, da divisão da divindade entre diversos entes e, enfim, do monoteísmo. O próprio cristianismo seria, por natureza, contrário a qualquer mito não- quebrado, pois a afirmação da incondicionalidade de Deus exige a rejeição de qualquer

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Knudsen destaca que, para Tillich, só há símbolos dedicados à representação do divino em razão da ruptura entre essência e existência. Não deveria haver o contraste entre simbólico e não-simbólico, sagrado e secular (Knudsen, 1963:61). Poderíamos nos perguntar, então, se a finalidade da criação mitológica não é, exatamente, dar visibilidade ao incondicionado em razão de seu “ocultamento”, ou melhor, em razão da alienação da existência em relação a seu fundamento incondicional. Nesse caso, a criação mitológica seria uma espécie de produto da “Queda” (miticamente falando!); um fruto indesejável da alienação existencial, a ser superado por meio de uma condição teonômica.

idolatria e a relativização do conteúdo literal do mito. Assim, “Em última análise, não é a crítica racional do mito que é decisiva, mas a crítica religiosa interna” (MW5[DF]:255).

O símbolo mítico efetivamente estabelece uma conexão entre visão de mundo e intuição do incondicionado transcendente. Assim, a luta pela preservação ou reconstituição do mito se explica pelo desejo de unir a religião com a compreensão do mundo (MW/4[TRS]:262). Tal conexão permanece uma possibilidade, na medida em que a autonomia obtida pela religião e pela ciência não é, de modo algum, absoluta, embora as condições para tal não fossem as melhores, no tempo de Tillich:19

Assim a ciência se torna um mito, a despeito de sua autonomia racional, e a religião absorve certos aspectos da compreensão e conhecimento do mundo, a despeito de sua própria autonomia transcendente, a fim de dar significado ao transcendente. Em nosso tempo, entretanto, este desenvolvimento é mais uma tendência do que uma realidade. Seu sucesso envolve uma consistente transformação, tanto da mentalidade científica como da mentalidade religiosa (MW/4[TRS]:262).

Desejável como possa ser a unidade da religião e do conhecimento a partir do simbolismo mítico, tal não pode ser obtido evitando-se a crítica do mito. Também não é possível “colar” o mito após a sua quebra, nem criar mitos artificialmente. Tillich propõe, por conseguinte, que nos libertemos da crença na literalidade do mito, mas não o abandonemos totalmente; os mitos, simbolicamente compreendidos, devem ser reinterpretados a partir de uma análise filosófica da existência.

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A situação atual parece ser um pouco diferente, na medida em que há um amplo reconhecimento da necessidade de procurar construir pontes entre a religião e a ciência, e um crescente movimento internacional reunindo cientistas, teólogos e religiosos procura superar as barreiras entre os dois campos. Infelizmente, no entanto, este grau de consciência atingiu principalmente os cientistas da natureza, com pouco envolvimento da classe filosófica e dos especialistas em humanidades.