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2. Paul Tillich e o Desafio Hermenêutico do Símbolo da

2.3. A Interpretação Tillichiana da “Queda” na Teologia Sistemática

2.3.9. A Queda e as Ambigüidades da Vida

No terceiro volume da Sistemática, um conceito chama a atenção por sua importância: a noção de “ambigüidade”. Tillich trata extensivamente das “ambigüidades da vida” na parte 4 (A vida e o Espírito), especialmente no capítulo I (A vida, suas

relação com a experiência da presença espiritual, e no capítulo III (O Espírito divino e

as ambigüidades da vida), ao lidar com o significado da presença espiritual frente às

ambigüidades da religião, da cultura, da moral, e da vida em geral. Na parte 5 (A

história e o reino de Deus) Tillich recorre novamente ao conceito, tratando das

ambigüidades da vida sob a dimensão histórica no capítulo I (A história e a pergunta

pelo Reino de Deus). Para os nossos objetivos, no entanto, será suficiente contemplar o

tratamento de Tillich no capítulo I da parte 4, quando ele apresenta o conceito que, como vamos mostrar, tem relação direta com o problema da alienação existencial.

Tillich principia o capítulo introduzindo a concepção ontológica de vida, como “efetividade do ser”, para integrar “[...] as duas qualificações principais do ser que fundamentam a totalidade deste sistema: estas duas qualificações principais do ser são o essencial e o existencial” (TS:475). Não pode haver um existente se o potencial presente na essência não se efetiva no ser particular; pertence à estrutura de todo ente essa efetividade. Daí a importância de um conceito universal de vida. Mas desde que o ser existe “dividido” em essência e existência, Tillich procura explicar o conceito ontológico de vida, numa consideração essencial como unidade multidimensional, e, em seguida, numa consideração existencial, como efetividade ambígua (TS:476).

A vida, essencialmente falando, é a efetivação do ser potencial (TS:492). Tillich identifica três elementos no processo de efetivação da vida: a auto-identidade, a auto-

alteração e a volta a si mesma. A auto-identidade e a auto-alteração correspondem à

estrutura ontológica básica eu-mundo, e a “volta” corresponde à unidade reconciliada do eu e do mundo, no espírito. Este esquema triplo é dependente das raízes hegelianas e schellingianas de Tillich, como já tivemos oportunidade de considerar. Os três elementos se manifestam nas funções de auto-integração, sob o princípio da centralidade, da autocriação, sob o princípio do crescimento (desenvolvimento e

formação de outros centros), e da auto-transcendência, sob o princípio do sublime (TS:494).

Cada função da vida está ligada a um dos elementos polares do ser: a auto- integração está ligada à individualização e participação; a autocriação à dinâmica e forma; a auto-transcendência à liberdade e destino. Sob as condições da existência, a unidade de auto-indentidade e auto-alteração (a polaridade eu-mundo no interior do processo de efetivação da vida) vive sob a ameaça de ruptura e destruição do ser finito. Nessas condições, “[...] a auto-integração é ameaçada pela desintegração, a autocriação pela destruição, a auto-transcendência pela profanização” (TS:494).

A vida é uma realidade multidimensional; a presença de uma multiplicidade na unidade. Essa unidade existe de forma precária, pois as possibilidades de desequilíbrio e de conflito são muitas. E a vida se move continuamente para além da unidade presente, produzindo nova diversidade. No interior dos processos da vida, sob as condições da existência, as possibilidades essenciais se efetivam muitas vezes por meio de uma contradição da essência. E há uma infinidade de seres cujos processos vitais se influenciam mutuamente. Isso faz com que a vida exista como uma realidade profundamente ambígua, como mistura de essencial e existencial. Mas Tillich procura mostrar que exatamente esta ambigüidade é necessária para a efetivação da vida.

Na função de auto-integração, a ambigüidade aparece na possibilidade de perder a centralidade, por meio de uma fixação na auto-identidade, que impeça a integração dinâmica, ou de uma fixação na auto-alteração, de modo que o ser não consegue retornar a si mesmo sendo disperso na multiplicidade das experiências. Tillich mostra que em todos os entes há a polaridade entre identidade e alteração, e que a desintegração de qualquer ente sempre envolve o desequilíbrio dessa polaridade. No caso do ser humano, isso ocorre na vida moral do indivíduo: “A moralidade é a função da vida pela

qual se forma a esfera do espírito. A moralidade é a função constitutiva do espírito” (TS:500). O homem se desintegra como pessoa quando afirma sua liberdade pessoal, e tenta atrair todo conteúdo do mundo para si mesmo, a ponto de destruir a alteridade que define a sua liberdade, ou quando perde o seu eu no mundo, abdicando da sua liberdade moral.

A ambigüidade aparece na auto-integração pessoal por meio da necessidade do sacrifício, quando se torna necessário escolher entre desistir de certas possibilidades e manter a identidade, ou sacrificar aspectos do eu atual para ampliá-lo (TS:503). Não há como saber de forma inequívoca se um certo sacrifício pode ser realizado com toda segurança moral, isto é, se ele é o melhor a fazer. Há uma impossibilidade de separar inequivocamente o que é bom e o que é mau (TS:505). Na obediência à lei moral, encontramos a mesma ambigüidade, na medida em que nenhum mandamento específico pode ser identificado com o seu elemento de incondicionalidade. Isso não significa que nosso acesso à verdade moral tenha sido rompido:

Os mandamentos da lei moral são válidos porque expressam a natureza essencial do ser humano opondo-lhe, em sua condição de alienação existencial, seu ser essencial. Isto suscita a pergunta: como é possível a auto-integração moral face à mistura ambígua de elementos essenciais e existenciais que caracteriza a vida? (TS:507).

Há uma norma incondicional, a lei do amor; mas não há como garantir uma aplicação e nem mesmo uma compreensão não ambígua dessa lei. Assim, toda decisão moral é um risco.

Na função da autocriatividade, a ambigüidade se manifesta na pertença mútua de criação e caos, no fato de a vida se efetivar por meio de um dinamismo que produz forma por meio da superação da forma. É claro que o elemento negativo é dependente do positivo desde que a destruição pura não existe. “Em todo processo vital, estruturas de criação estão misturadas com poderes de destruição de tal forma que não podem ser

inequivocamente separados” (TS:512). Isto ocorre desde a esfera subatômica (TS:513), passando pela relação entre os seres vivos,72 na natureza, e atingindo o próprio homem, como constatamos na conflitividade inerente à vida humana (TS:514). E nas atividades humanas: no trabalho e no progresso técnico, que arruínam os corpos dos homens mas criam condições superiores de saúde e cura, por exemplo (TS:515). A negatividade envolvida na destruição é um elemento fundamental para a efetivação da autocriação humana, seja no pensamento teórico, nas artes, na práxis humana, ou na transformação técnica, pessoal e comunitária. Vamos citar, como exemplo, a aplicação dessa percepção, por Tillich, ao tema da educação:

Nestas relações, aparece uma ambigüidade que se pode formular da seguinte forma: atuar no sentido de promover o crescimento de uma pessoa é, ao mesmo tempo, atuar no sentido de sua despersonalização. A tentativa de promover o crescimento de um sujeito como sujeito torna-o um objeto. Podemos observar os problemas práticos implícitos nesta ambigüidade sobretudo na atividade educacional (TS:535).

A função da autotranscendência é possibilitada pela polaridade de liberdade e destino, e possibilita que a vida se efetive verticalmente, em direção à infinitude. O ser humano experimenta a ambigüidade, nesta função, por meio da relação interdependente entre o sagrado e o profano, o que guarda dignidade divina e sublimidade, e o que é meramente condicionado. A profanização é a negação da dignidade divina, pela participação no ser divino. É a negação da inviolabilidade que acontece, por exemplo, quando um organismo assimila outro, “profanizando-o” (TS:549). Na dimensão humana, a ambigüidade na função da autotranscendência aparece no entrelaçamento entre hybris e grandeza humana, que resulta em destruição de si e do outro; na ligação sempre repetida entre grandeza e tragédia (TS:551). A ambigüidade se manifesta na religião, quando esta profaniza a sua função religiosa, ou eleva seus elementos

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“A vida cresce mediante a eliminação ou a remoção ou a incorporação de outra vida – a vida se alimenta da vida” (TS:513).

condicionados à validez incondicional (TS:555-556) e, no secularismo, quando não consegue evitar o elemento de autotranscendência, exatamente ao lutar contra a religião (TS:558-559). E, em diversas situações, quando a autotranscendência identifica o portador da incondicionalidade com o próprio sagrado, temos a ambigüidade de divino e demônico (TS:559):

Todo o processo da vida envolve a ambigüidade, mas no homem o fato da ambigüidade se eleva à consciência, bem como a pergunta por “uma vida sem ambigüidades”. A noção de ambigüidade estrutural, inscrita no processo da vida, nos mostra como Tillich compreendeu a realidade da queda e a forma como a estrutura essencial, criada, da realidade, foi atingida:

Em todos os processos da vida, um elemento essencial e um elemento existencial – bondade criada e alienação – estão mesclados de tal forma que nem um nem outro são efetivos de maneira exclusiva.

A vida sempre inclui elementos essenciais e existenciais; esta é a raiz de sua ambigüidade (TS:563).73

A vida sem ambigüidade não é possível como realidade temporal, como posse presente, mas apenas como um conceito orientador. Ela pode ser buscada, pois a autotranscendência da vida a impele nessa direção; e é exatamente em sua autotranscendência que a presença divina no interior da finitude torna-se manifesta (TS:200), como negação da negação do ser. Mas a vida não atinge o incondicional, não supera a ambigüidade (TS:566). A revelação traz uma resposta à pergunta por uma vida sem ambigüidades, que Tillich apresenta sob a noção de “presença espiritual”.

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A despeito das palavras do próprio Tillich, Eduardo Cruz acredita que a “mistura” de essência e existência não seria o sentido mais importante do termo “ambigüidade”. O sentido mais importante seria positivo, de uma condição que “permite a recepção da presença espiritual fragmentária”, e como um pré- requisito para o processo da vida (Cruz, 1995:91-92). Em nossa opinião, no entanto, há um sentido positivo unido a um sentido negativo. Afinal, foi essa a razão do uso do termo “ambigüidade”.

2.3.10. Síntese

Com o conceito de ambigüidade, concluímos a nossa apresentação da compreensão Tillichiana da queda e de seus efeitos, numa espécie de “teoria geral da negatividade”, incluindo: sua base no pólo meôntico da divindade, sua presença na limitação da finitude essencial, sua efetivação na destrutividade da alienação existencial, e seu entrelaçamento como parte dos processos da vida, condição de possibilidade mas, também fonte de ambigüidade.

A interpretação da queda desenvolvida por Tillich claramente deve a muitos pensadores. Suas idéias da experiência interna do pecado devem muito a Kierkegaard, a Freud, Nietzsche e Heidegger, e a toda a tradição de pensamento existencialista originária do século XIX, além, naturalmente, da tradição anterior: dos Pais antignósticos, de Agostinho, dos franciscanos espirituais, de J. Böhme, de Pascal.

Chegou o momento de tentarmos localizar o conceito de pecado de Tillich mais precisamente na tradição hamartiológica cristã. Em primeiro lugar, (1) percebe-se uma nítida preocupação em manter algum tipo de diferenciação entre criação e queda, afirmando a bondade da criação, como realidade essencial, e o monismo teológico, rejeitando-se pensar o mal como princípio independente de Deus. Nisto Tillich se aproxima dos Pais antignósticos. Sua aderência ao origenismo, no que se refere à noção de queda transcendente, representa um afastamento significativo.

Em segundo lugar, no que se refere à explicação da universalidade do pecado (2), vemos que Tillich se esforça por afirmar o papel da liberdade humana e, assim, a culpa individual, bem como a universalidade trágica do pecado, devido ao “destino”, isto é, às condições necessárias e condicionantes da liberdade finita. A certeza, tanto da universalidade e solidariedade no pecado, como da escravidão na condição de queda,

aproxima Tillich da tradição agostiniana. Entretanto, a culpa trágica da queda é sempre a culpa do indivíduo; não há, para Tillich, qualquer transmissão de culpa ou solidariedade na culpa. 74 Assim, a solução origenista-schellingiana elimina o elemento de solidariedade humana no pecado e na culpa.

Em terceiro lugar (3), quanto à relação de natureza e graça, Tillich está completamente à vontade na tradição agostiniana-protestante: ele rejeita inequivocamente a idéia católica de donum superadditum, adotando uma visão pessimista da natureza humana (Heywood, 2000:100), e afirmando a absoluta necessidade da graça de Deus para a superação da condição caída. E quanto à natureza do pecado (4), Tillich é, basicamente, agostiniano; mas, além disso, é Luterano: o pecado é hybris e concupiscência, mas também incredulidade; e a pecaminosidade humana atinge tudo o que ele faz, de tal modo que até mesmo o melhor do cristão é uma mistura ambígua de verdade e falsidade.

Finalmente (5), quanto ao diálogo com a modernidade, Tillich desenvolve uma impressionante explicação existencial da pecaminosidade humana, esforçando-se para desconectar sua hamartiologia de suposições pré-modernas e para aproveitar categorias modernas de pensamento. Sua construção da teologia da Queda se desenvolve em nítido paralelo com uma interpretação profunda e ampla da filosofia do século XIX e do movimento existencialista como um todo, e ele efetivamente constrói uma conexão orgânica entre a tradição dogmática protestante-agostiniana e o pensamento existencialista schellingiano.

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Tillich é muito claro em mostrar que não há culpa coletiva. Mas admite que a culpa individual se torna parte do destino de outros e de si; ou seja, há uma determinação universal da pecaminosidade, mas não a culpa, que só emerge quando um ato consciente é realizado (Heywood, 2000:98).

3. A Interpretação do Símbolo da Queda em Paul Tillich