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1. A Teoria do Símbolo Religioso de Tillich

1.3. Símbolo e Mito em Tillich

1.3.4. Mito: Uma Esfera Simbólica Independente?

Em The Religious Symbols (1940) Tillich apresenta uma discussão com a teoria idealista-crítica do símbolo mítico, como desenvolvida por Ernst Cassirer. Este último vê o mito como uma forma distinta de interpretação da vida – uma forma cultural particular, ao lado da ciência, da linguagem, da filosofia, etc. O símbolo, entretanto, estaria na essência de qualquer realidade cultural, de modo que cada uma constitui uma forma simbólica distinta. O mito estabelece, então, uma esfera cultural distinta cuja particularidade não se encontra no simbolismo, desde que ela compartilha com as outras seu caráter simbólico – essa seria a concepção “transcendental” do mito. Quanto à relação entre mito e religião, propriamente, a resposta idealista-crítica é a de que o mito e o símbolo religioso estariam, originalmente, fundidos, com o simbolismo religioso gradualmente se elevando sobre o simbolismo mítico, até o ponto de derrotá-lo e ganhar autonomia – Cassirer apresenta também, portanto, uma explicação “evolucionária” do mito.

Contra a solução idealista-crítica, Tillich objeta que, se a mitologia constitui uma forma simbólica independente, isto é, uma esfera cultural autônoma como a ciência, a arte, as leis, etc, não há razão para a necessidade de um conflito com a esfera da religião e, muito menos, de uma destruição e superação do mito – ele permaneceria sempre com

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Um problema, no entanto, parece ficar sem solução: se a concretude do mito, isto é, a carga literal, inscrita em sua forma plástica, é sem valor cognitivo, precisamos perguntar qual seria o valor, afinal, de aplicar-se uma categoria literal, como a noção de “transição” para descrever a nossa relação com o incondicionado, uma vez que, em sendo ainda literal e remitologizante, ela nada diz sobre o seu referente. Poderíamos pensar, no caso, que se trata da descrição de uma realidade não-divina, isto é, da realidade existencial; mas, então, a crítica à narrativa da Queda, talvez, não fosse a crítica do mito, mas de outra forma narrativa: a saga, por exemplo.

seu “lugar” próprio. E a religião, por outro lado, constituindo uma esfera também particular, não deveria se originar do mito. Em suma, Tillich afirma que “[...] a concepção evolucionária e a concepção transcendental de mito se contradizem mutuamente” (MW4[RS]:260). Sua própria explicação das tensões históricas de mito e religião parte do princípio de que o mito não constituiria uma esfera distinta da cultura. “[...] o mito, longe de ter desaparecido, apenas alterou a sua forma. Assim, o conflito entre a religião e o mito não seria um conflito com o mito, como tal, mas antes de um mito particular com outro” (MW4[RS]:260).

Tillich apresenta o exemplo do conflito entre o Baalismo e o Javismo como o conflito entre o mito agrário e o mito histórico de Javé, e aponta o fato de que a transcendência divina no mito de Javé não elimina o mito, que permanece na relação entre história empírica e história transcendente. Isso ocorre porque “A transcendência

incondicionada, como tal, não é perceptível – e assim deve ser em religião – isso pode ser feito apenas por concepções míticas” (MW4[RS]:260).21 Assim, seja em narrativas religiosas, seja no mais alto misticismo, o elemento mítico permanece; ele é necessário para tornar presente a dimensão de transcendência:

A consciência mítica pode, assim, estar quebrada ou inteira; em qualquer caso, ela não desaparece. Se alguém decide caracterizar apenas a mentalidade mítica não-quebrada como mítica, então, é claro, o mito é vencido na religião e assim se mostra não-essencial. Se, por outro lado, alguém considera cada intuição de transcendência como sendo mítica, então não há tal coisa como uma atitude não-mítica e o mito se mostra essencial (MW4[RS]:261).

O surgimento da ciência moderna criou uma situação nova, na medida em que os objetos da intuição mítica se tornaram em objetos de investigação científica e, assim, em meros objetos de experiência empírica. A conexão direta entre a consciência e os existentes é perdida, e um mundo próprio de objetos é criado. Este mundo repele os

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mitos, por um lado; mas, por outro, os recria, na medida em que concepções de transcendência são parte estruturalmente necessária do discurso, em suas referências ao incondicionado. O mito se encontraria, assim, no centro da ciência e da metafísica:22

Sob estas circunstâncias, devemos rejeitar a classificação da mitologia como um tipo independente de criação simbólica, diferente da ciência e da religião. Tanto na ciência como na religião, a mitologia é um elemento que não pode ser eliminado, mesmo que possa ser quebrado. Platão reconhece isto quando, por um lado, ele coloca a ciência em oposição ao mito e, por outro, deve reconhecer a indispensabilidade do mito para a ciência. Toda metafísica atinge um ponto em que seus conceitos são mitos, não apenas de fato, mas mesmo no som de suas palavras (MW4[RS]:261).

O mito seria, portanto, necessário em cada esfera intelectual e cultural, e não uma esfera separada, como supôs Cassirer. A metafísica genuína estabeleceria uma correlação entre racionalidade e mito – constituindo-se, diríamos, em uma forma de teologia filosófica – e a ciência traria sempre elementos míticos implícitos. Conflitos da filosofia, da ciência, e da religião, com o mito, deveríam ser vistos, portanto, não como conflitos com o mito per se, mas como o choque de mitos mutuamente excludentes – exceto, naturalmente, nos casos em que o conflito com a ciência se deve ao processo de ruptura do mito, em seu conteúdo empírico.23

Tillich contrasta os símbolos míticos com outros símbolos apontando seu caráter “infundado”, isto é, o fato de que “são determinados essencialmente por seu caráter simbólico” (MW4[RS]262). Em linha com o idealismo crítico, admitindo que uma criação cultural não representa uma “coisa em si” além dela mesma, mas realmente constitui uma esfera objetiva, concluiríamos que o mito tem um caráter figurativo que o

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Tillich faz uma interessante observação sobre os pontos de contato entre religião, metafísica e ciência: “[...] é possível classificar as pressuposições últimas da ciência com os conceitos mais altos do misticismo abstrato ou do monoteísmo abstrato Assim, nasce um mito abstrato que não é menos mito que um concreto, mesmo se está quebrado em sua imediaticidade. De fato, o significado vivo de uma metafísica criativa é que ela envolve exatamente um mito abstrato. E, deste fato, deriva-se seu caráter duvidoso como ciência e seu poder religioso” (MW4[RS]:261).

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Naturalmente, isto levanta o problema da identificação de quais elementos, no mito, estão realmente sujeitos a tal ruptura; a abordagem de Tillich supõe que essa identificação é óbvia, desde que a crítica do conteúdo empírico do mito é levantada adequadamente pela ciência.

torna completamente diferente dos objetos científicos, artísticos, legais, etc. A arte, por exemplo, cria uma realidade própria e, só cria símbolos na medida em que adquire caráter mítico, apontando um significado transcendente, em relação a si mesma.

Se chamamos todas as criações culturais de símbolos, como o faz Cassirer, será preciso encontrar um outro termo para expressar o caráter particularmente figurativo do símbolo mítico. Pois nas outras esferas de sentido, o significado simbólico aparece somente quando estas se tornam subservientes ao mito, enquanto que, no mito, o simbólico é parte de sua essência, na medida em que não tem uma base própria e refere- se, para além de si, ao incondicionado. Assim, como alternativa ao pensamento idealista-crítico de Cassirer, Tillich sustenta o que chama de “realismo transcendente”: os símbolos míticos não constituiriam uma esfera separada de criações culturais, e teriam um “objeto” distinto e real, que seria o incondicionado transcendente (MW4[RS]263).

Em sua resposta ao artigo de Tillich, Wilbur Urban também criticou suas idéias sobre “mito” e “ciência”. Reagindo à crítica de Tillich ao idealismo crítico de Cassirer, ele argumenta que a identificação de símbolo religioso e mito (implícita na noção de que toda referência ao transcendente é necessariamente mítica), feita por Tillich, seria errônea, desde que Cassirer mostrou a diferença entre mito e religião, delimitando os dois campos com clareza. Aponta também que, para Tillich, somente a ciência nos dá conhecimento empírico e objetivo, e que Cassirer teria mostrado que tanto a ciência como a religião são formas simbólicas com propósitos diferentes (MW4[Urban]:270). Tillich respondeu a essas críticas em Symbol and Knwoledge, destacando que, exatamente por concordar com Urban contra o pan-simbolismo, ele rejeita a solução de Cassirer, como a mais acabada forma de pan-simbolismo. Quanto ao problema dos conceitos de mito e ciência, Tillich não os discute em sua resposta. Quanto ao conceito

de ciência seu silêncio se deve, possivelmente, ao fato de a sua rejeição do pan- simbolismo de Cassirer implicar a rejeição à sugestão de Urban de relativizar a literalidade do discurso científico frente ao discurso mítico. Quanto à relação entre mito e religião, a força do argumento inicial de Tillich era justamente a de manter a conexão de mito e religião, e tal discussão eliminaria o ponto principal de sua resposta, que era o problema da relação entre símbolo religioso e conhecimento.