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2. Paul Tillich e o Desafio Hermenêutico do Símbolo da

2.1. A Teologia Cristã do Pecado: Um Panorama Histórico

2.1.1. Raízes Bíblicas

Elementos de uma noção de Queda já se encontravam implícitos na teologia judaica da conversão, que se desenvolveu ao longo da experiência de Israel com Yahweh e que se encontra refletida no Antigo Testamento, bem como nos textos judaicos deuterocanônicos e apócrifos produzidos nos dois últimos séculos antes de Cristo. A base dessas noções se encontra nas afirmações soteriológicas, nas promessas de salvação e anúncios de juízo que, por sua vez, se relacionam à discussão sobre a identidade pactual do povo. Israel foi chamado para ser um povo santo, corporativamente, por meio do Pacto. A noção de pecado era expressa por meio do conceito de impureza ritual, mas também pelo de violação da lei moral. Mas,

essencialmente, o pecado era visto como uma falha religiosa: a falha em permanecer numa relação de fidelidade com Deus. Esta era uma possibilidade constante, que se consumou com o exílio, análogo à expulsão de Adão e Eva do Éden. A experiência da quebra do Pacto e a necessidade de conversão estimularam a reflexão mais profunda sobre a natureza do pecado, que encontramos no profetismo judaico. A conexão entre conversão e aliança, especificamente, refletia-se na existência, ao tempo de Jesus, de diferentes interpretações e símbolos de identidade pactual, representados pelos “partidos” judaicos: Saduceus, Fariseus, Essênios e Zelotes.

O cristianismo primitivo manteve a ênfase judaica na conversão religiosa e moral, como se encontra evidente, em especial, em Lucas-Atos; sua eficácia foi, no entanto, pouco a pouco reinterpretada a partir da pessoa e obra de Cristo, e uma nova ênfase no elemento de dependência religiosa – a fé – aprofundou o significado da conversão. Além disso, a percepção corporativa do pecado e da salvação foi mantida; “Jerusalém” e “Israel” são chamados ao arrependimento e não apenas indivíduos.

As questões soteriológicas como “por que Cristo veio?”, “o que a sua Obra efetivamente realizou?” também estimularam a reinterpretação das noções implícitas de pecado (Wiley, 2002:25). A vitória, no cristianismo primitivo, de uma noção mais universalista do significado da obra de Cristo, que permitia aos gentios a entrada no pacto sem a necessidade de adotar os símbolos tradicionais de identidade pactual – com os gentios sendo salvos qua gentios – consolidou uma tendência igualmente universalista na compreensão da natureza do pecado e da relação do homem com Deus. Essa tendência serviria como base para a construção futura de uma doutrina da Queda.

O pensamento judaico localizava a origem do mal na ambigüidade dos desejos humanos, por meio de uma teoria das duas inclinações: yetser-ha-tov, a inclinação para o bem, e yetser-ha-ra, a inclinação para o mal. Ela sempre esteve aí, como desejo, já em

Adão e Eva, como algo “natural”.29 Mas já no Antigo Testamento encontramos interpretações “pessimistas” da natureza humana, que vêem o coração humano como persistentemente mau. De algum modo, a “inclinação má” é predominante, embora não apareça como irresistível. Esta percepção encontra-se bem desenvolvida em Paulo. Mesmo assim, não há ainda a noção de que ela teria se iniciado com uma “Queda”.

A narrativa de Gênesis 3 desempenhava, principalmente, a função de explicar o início dos pecados, mas não tanto do pecado num sentido absoluto. Seria a primeira de muitas histórias de pecado, servindo com valor paradigmático. Mesmo assim não há muita referência no próprio Novo Testamento à história, mas isso pode ser explicado pelo desinteresse inicial da igreja primitiva pelo desenvolvimento de uma doutrina do pecado. Toda a concentração estava sobre a cristologia e a soteriologia, e os desdobramentos da teologia do pecado eram estritamente funcionais. Assim, os textos neotestamentários mais importantes para a nossa discussão – Rm 5.12 e 1Co 15.21-22 – afirmam a entrada do pecado e da morte no mundo por meio de Adão, com a finalidade de indicar o sentido e alcance da obra de Cristo. Na verdade, a metáfora da “queda” para descrever o primeiro pecado aparece em textos judaicos do século I a.C., mas no Novo Testamento ela aparece apenas para indicar a queda dos anjos (2Pe 2.4 e Jd 6). Não há, portanto, uma doutrina desenvolvida de Queda e pecado original.

Segundo Wiley, a idéia de Queda tem um elemento especulativo particular, que é a localização da condição de Queda na natureza humana, isto é, a transformação de uma narrativa sobre um evento em um processo de mudança interna da natureza humana (Wiley, 2003:35). A união de uma narrativa de “primeiro pecado” com uma

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“[...] para Agostinho, a experiência do desejo desordenado não era natural. Ele não o considerava uma dimensão intrínseca da natureza criada, como o faziam os Hebreus em sua compreensão da yetser ha-ra. Para Agostinho, a concupiscência reflete uma mudança na natureza criada devido ao peccatum originale

originans, o pecado original” (Wiley, 2003:30). Apesar de Wiley sugerir aqui uma modificação

explicação antropológica da origem da pecaminosidade humana seria necessária para a criação de uma idéia completa de “Queda”, e isto estaria ausente da narrativa de Gênesis 3, bem como das reflexões teológicas primitivas.

A ausência de uma doutrina desenvolvida de Queda não deve ser entendida, no entanto, como evidência de arbitrariedade na reflexão teológica posterior. O fato é que uma série de idéias teológicas formaram as condições para a emergência dessa doutrina: (1) a universalidade do pecado, fortalecida pela universalidade da redenção; (2) a concepção corporativa e aliancista do pecado e da conversão no pensamento bíblico; (3) a tradição “pessimista” sobre a natureza humana, nos profetas e em Paulo; (4) a união de particularidade e universalidade no significado de Jesus Cristo, que estimulou, por paridade, a reflexão sobre o estado do homem sem Cristo; (5) finalmente, a atribuição por Paulo da entrada do pecado e da morte no mundo por Adão que, mesmo de forma incipiente, deu à narrativa de Gênesis 3 um significado hamartiológico paralelo ao significado soteriológico de Cristo. Mas, sem dúvida, caberia aos teólogos cristãos posteriores a formulação de uma doutrina da Queda do homem.