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2. Paul Tillich e o Desafio Hermenêutico do Símbolo da

2.3. A Interpretação Tillichiana da “Queda” na Teologia Sistemática

2.3.6. Transição Essência-Existência e Queda

Paul Tillich não deixa dúvidas a respeito da importância da doutrina da queda em seu sistema: “O símbolo da queda é um capítulo decisivo da tradição cristã” (TS:324). Tillich pretende absorver o símbolo da Queda, por meio de sua interpretação simbólica. Como no caso da doutrina da criação, seria impossível admitir a concepção literalista de Queda, como se ela houvesse ocorrido como um evento histórico. Ela deve ser vista, antes, como “[...] um símbolo para a situação humana em todos os tempos [...]” (TS:324).

Tillich procede a uma recepção parcial do símbolo clássico através da “semi- desmitologização” do mito.66 Elimina-se o elemento histórico-temporal, mas preserva- se analogicamente a idéia de processo, de transformação, quando falamos sobre a transição de essência para existência (que indicaremos doravante, no capítulo, pelo sinal TE-E). A razão porque Tillich não pretende desmitologizar completamente o símbolo da queda fica evidente logo depois: é que se a TE-E for tomada como um fato necessário, ou seja, como um resultado lógico da essência, a queda poderia ser considerada como

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algo essencial, isto é, como algo “criado”. Essa possibilidade é rejeitada inequivocamente por Tillich:

Mas o pecado não é algo criado, e a transição da essência à existência é um fato, uma estória a ser contada e não uma necessidade dialética derivada. Portanto, não é possível desmitologizá-la completamente (TS:325)

Podemos agora perguntar: como se deu a TE-E? Tillich utiliza o relato de Gênesis 1-3 para descrever o processo e o conseqüente estado de alienação.67 Em sua análise, ele pressupõe a liberdade e a finitude do homem, e diferencia o homem de Deus e da natureza a partir dessas categorias: “Pode-se dizer que a natureza é a necessidade finita, Deus a liberdade infinita, e o homem liberdade finita. É a liberdade finita que torna possível a transição da essência à existência” (TS:327). Ou seja, a TE-E é possível devido à natureza do homem como liberdade finita,68 estando a queda condicionada por essas categorias.

Quanto à liberdade em si, Tillich a vê como a própria imago Dei. A possibilidade da queda seria dependente da liberdade, que incluiria em si a liberdade do afastamento de Deus, e essa liberdade seria a semelhança humana a Deus, que é a liberdade infinita: “Simbolicamente falando, é a imagem de Deus no ser humano que possibilita a queda. Só aquele que é a imagem de Deus tem o poder de separar-se de Deus. Sua grandeza é, ao mesmo tempo, sua fraqueza” (TS:328).

As condições ontológicas da queda residem, portanto, na singularidade do homem como liberdade finita, como imagem de Deus; e como vimos, a liberdade finita é essencialmente boa. Isto estabelecido, Tillich pode passar à análise do processo de TE-E. A natureza essencial do homem jamais existiu completamente temporal; o ser

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“É a expressão mais profunda e mais rica da consciência do homem de sua alienação existencial e fornece o esquema no qual pode ser tratada a transição da essência à existência” (TS:326).

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Tillich compreende a liberdade como a possibilidade do sujeito existencial; a liberdade do salto que não é determinado fisicamente, moralmente ou socialmente; que não tem uma “natureza” determinante exceto a possibilidade de escolha pessoal indeterminada por qualquer estado prévio do eu (MW1[NSET]:408).

essencial nunca esteve presente como evento, nem no passado nem em qualquer estágio do desenvolvimento humano. Essa condição é descrita por Tillich com linguagem psicológica como a “inocência sonhadora”. É um modo dele se referir à condição na qual o atual é antecipado, como algo apenas potencial, e também como a condição antes da decisão e da responsabilidade pessoal. No relato de Gênesis, que Tillich interpreta utilizando os insights de Kierkegaard sobre a ansiedade (Heywood, 2000:91), esse estado corresponde a Adão e Eva antes da queda.

Segue-se a tentação. A tentação é a possibilidade da TE-E. Essa possibilidade existe porque a inocência sonhadora não é o estado de perfeição, pois nele não há “[...] união consciente de existência e essência”.69 Mas o que exatamente, no interior da inocência sonhadora, impulsiona o homem para a TE-E?

Aqui retorna a importância do conceito de angústia, que examinamos anteriormente como um aspecto essencial da finitude. Tillich identifica na Angst, ou angústia, “[...] uma das forças motrizes da transição da essência à existência” (TS:330). A angústia é a consciência da finitude (“Finitude e angústia são a mesma coisa”, TS, ibid), isto é, de que o ser é ameaçado pelo não-ser. Embora com essa tese Tillich pareça localizar as fontes do mal na própria criaturidade, isto é, na finitude em si mesma e em suas características, ele nega sempre tal localização.

Uma ruptura entre o criador e a criatura é já subentendida, segundo Tillich, no relato sobre a proibição, a qual seria “[...] o ponto mais importante na interpretação da queda” (TS:330). A proibição pressupõe uma atitude que não é pecado, mas também não é inocência: o desejo de pecar. Este estado de desejo corresponderia, numa linguagem psicológica, a um despertamento, que seria automaticamente acompanhado de uma reação auto-preservadora:

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Essa reação é simbolizada no relato bíblico como a proibição divina contra a efetivação da própria liberdade potencial e contra a aquisição de conhecimento e poder. O ser humano está entre dois fogos: o desejo de atualizar sua liberdade e a exigência de preservar sua inocência sonhadora. No poder de sua liberdade finita, ele se decide pela efetivação (TS:330).

Assim, “[...] a transição da essência à existência é uma qualidade universal do ser finito” (TS:331), não sendo um evento no passado e precedendo ontologicamente o tempo e o espaço. Ou seja, a Queda, ou TE-E, é o resultado necessário da finitude.

Na verdade Tillich parece consciente de que o teor do relato de Gênesis é, em suas palavras, “psicológico-ético”. Segundo ele o mito foi parcialmente desmitologizado pela tradição hebraica de modo que os elementos míticos foram subordinados ao ético; ele argumenta então que tais elementos míticos cósmicos foram preservados nas imagens bíblicas de queda de anjos, na serpente do Éden, etc. Mas esse mito pode ser encontrado em forma “pura” no platonismo:

Mas a ênfase mais consistente no caráter cósmico da Queda é dada no mito da Queda transcendente das almas. Embora provavelmente tenha origens órficas, foi relatado pela primeira vez por Platão ao contrastar essência e existência (TS:332).

Portanto Tillich reconhece que, em sua forma final, no relato de Gênesis, o mito da queda não tem o mesmo sentido que no mito órfico. Sua concepção de Queda envolveria, conseqüentemente, a acomodação da linguagem bíblica de criação e Queda em termos do antigo mito órfico. Tillich tem a esperança de que essa acomodação seja viável:

O mito da Queda transcendente [órfico-platônico] não é diretamente bíblico, mas tampouco contradiz a Bíblia. Ele afirma o elemento ético- psicológico na queda e completa as dimensões cósmicas que encontramos na literatura bíblica (TS:332,333).

Tillich teria uma razão concreta para recorrer ao mito da Queda transcendente; é que ele revelaria o “caráter trágico-universal da existência”. Com isso Tillich se refere à

conexão entre os atos individuais livres de alienação existencial e o destino universal, ou seja, entre as decisões individuais e as condições dadas da existência, que compartilham assim com essas decisões do estado de Queda. A condição caída seria, portanto, consistente com os elementos da estrutura ontológica básica. A doutrina do “pecado original” deve ser rejeitada em sua forma mitológica, mas a teologia precisa reinterpretá-la existencialisticamente, como forma de desvelar para a cultura contemporânea a conexão dos elementos ético-individual e trágico-cósmico de sua auto- alienação.

A união dos elementos moral e trágico na alienação do homem conduz diretamente à questão da relação entre criação e queda (TS:334). O problema, colocado por Tillich, é que a conexão entre o mal humano e o mal cósmico precisa ser revelada: “[...] se o universo participa igualmente da queda, qual é a relação entre criação e

queda?” (TS:335). Tillich considera este problema algo bastante complicado: “É o

ponto mais difícil e mais dialético da doutrina da criação” (TS:261).

“Antes” da queda70 o homem existe como potencialidade, havendo unidade de essência e existência; mas essa unidade é inconsciente, não sendo, portanto, perfeita. O homem só aparece entre o desejo de atualizar sua liberdade e a exigência de manter a inocência, ou seja, a união ao fundamento do Ser. Assim, como já observamos, “[...] a transição da essência à existência [TE-E] não é um evento no tempo e no espaço, mas a qualidade trans-histórica de todos os eventos no tempo e no espaço” (TS:335).

Aqui exatamente se levanta de novo o problema teórico: seria a queda, então, uma condição necessária para a existência humana? Ou seja, se o homem não pode se atualizar sem a liberdade, e a liberdade é realizada justamente quando o homem se

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Este “antes” é, naturalmente, apenas uma projeção abstrativa, sem qualquer realidade: “[...] são inadequadas todas as perguntas sobre o estado real de Adão antes da queda; por exemplo se ele era mortal ou imortal [...]. Os verbos ‘era’, ‘estava’, ‘vivia’ pressupõem uma efetivação no tempo. Mas é exatamente isto que não podemos afirmar do estado que transcende potencialidade e efetividade” (TS:165).

afasta de sua essência rebelando-se contra o seu fundamento, não seria a queda uma dimensão da própria existência criada? Pode-se falar em responsabilidade e culpa pessoal se o pecado é ontologicamente necessário? Tillich está completamente consciente do problema: “A descrição que acabamos de fazer porventura não ‘ontologiza’ e, assim, suprime a realidade da queda e da alienação?” (TS:338).

O centro de sua resposta é a admissão de que “Criação e Queda coincidem na medida em que não existe qualquer ponto no tempo e no espaço em que a bondade criada estivesse efetivada e tivesse existência” (TS:338). Ou seja: para Tillich jamais existiu a possibilidade de Criação sem Queda. Já antes disso, ao tratar do símbolo da criação, Tillich observou que, misteriosamente, há uma ligação entre pleno desenvolvimento da criaturalidade e queda:

A criatura tornou efetiva a sua liberdade na medida em que está fora do fundamento criativo da vida divina [...] Visto de um lado, este é o fim da criação. Visto de outro lado, este é o começo da queda [...]

Todo teólogo suficientemente corajoso para enfrentar a dupla verdade de que nada pode acontecer a Deus acidentalmente e de que o estado da existência é um estado caído deve aceitar o ponto de coincidência entre o fim da criação e o começo da queda (TS:261).

A criação se plenifica na auto-realização da criatura, que é simultaneamente liberdade e destino. Mas essa plenificação se realiza através de sua separação do fundamento criativo, pela ruptura entre existência e essência. A liberdade criatural é o ponto em que coincidem criação e queda (TS:261-262).

A explicação estaria na unidade de liberdade e destino, no fundamento do ser. Não seria matéria de necessidade estrutural, pois teria havido uma realização do ser finito na unidade de liberdade e destino. Porque ambos se encontraram deste modo é algo que não poderíamos dizer. Mas “aconteceu”, isto é, há uma universalidade da separação de Deus na liberdade finita. Essa conexão misteriosa não elimina, no entanto, a bondade da criação: “Apesar de sua universalidade trágica, a existência não pode ser derivada da essência” (TS:339). Mesmo assim, devemos admitir que, quando Tillich

afirma a equivalência entre “estar caído” e “atualizar a sua liberdade”, identificando a existência da liberdade finita com a queda, parece envolver mais do que um afastamento de uma leitura literalista da bíblia:

Se ele de fato teve sucesso em equilibrar os conceitos de responsabilidade e tragédia é duvidoso: pois o problema reaparece, como nós veremos, em sua interpretação do pecado (Heywood, 2000:94).

Qual é a situação do homem caído? Tillich rejeitou, como vimos, a posição católica de que haveria um donum superadditum, que mantinha Adão unido a Deus antes da queda. Essencialmente, o homem tem a imagem de Deus, a justitia originalis, e a capacidade da comunhão com Deus.71 A queda promoveu a separação entre Deus e o homem, de modo que ele perdeu toda a liberdade de retorno; sua natureza não foi meramente “enfraquecida”. Daí a necessidade absoluta da graça:

A diferença entre o protestantismo e o catolicismo depende aqui de todo um conjunto de decisões, mas basicamente da interpretação da graça. Se a graça é uma substância sobrenatural, a posição católica é consistente. Se ela é o perdão recebido no centro da própria personalidade, então se impõe a posição protestante. Nossa crítica a um sobrenaturalismo ontológico nos capítulos anteriores implica uma rejeição da doutrina católica (TS:264).