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2. Paul Tillich e o Desafio Hermenêutico do Símbolo da

2.1. A Teologia Cristã do Pecado: Um Panorama Histórico

2.1.6. Reflexões Contemporâneas

Há um acordo tácito, entre muitos teólogos católicos e protestantes, de que é necessário desligar a hamartiologia de pressuposições científicas e históricas pré- modernas. Há, por outro lado, uma consciência cada vez maior dos limites da modernidade, de modo que o caminho não pode ser a mera acomodação forçada da tradição cristã à modernidade. O século XX apresenta diversos esforços sérios de engajamento com os desafios modernos para lidar com o problema da Queda e do pecado original. Vamos considerar rapidamente alguns exemplos de tratamentos contemporâneos, antes de passar a uma discussão das idéias de Tillich.

O teólogo jesuíta holandês Piet Schoonenberg tentou “traduzir” a doutrina católica, de categorias metafísicas escolásticas para categorias capazes de refletir a ciência moderna, a historicidade humana e a experiência do devir. Schoonenberg criticou a tendência individualista e jurídica da doutrina tradicional do pecado original, que seria dependente da antiga lei romana, postulando uma visão mais relacional e existencial do pecado. Propôs a noção de ser-situado (being-situated) como categoria

básica para compreender a condição de pecado: o ser humano individual não existiria senão em suas relações com os outros, de tal modo que a existência de cada um é condicionada pelos pecados de todos. Não haveria, pois, uma transmissão “biológica” do pecado, mas uma transmissão relacional e existencial. Schoonenberg tenta ainda recuperar Pelágio para a ortodoxia, correlacionando a idéia de imitação de Pelágio com a sua noção de ser-situado. Finalmente, aponta que a doutrina clássica coloca uma forma elevada de humanidade na “ponta errada” do processo evolucionário, propondo a eliminação da forma tradicional da doutrina da Queda (Wiley, 2003:132-137).

O protestante Reinhold Niebuhr (m. 1971) defendeu a importância da categoria teológica pecado na análise social do bem e do mal humano. Segundo ele, haveria uma forte conexão interna entre egoísmo, uma realidade interna, e a injustiça, externa, e a idéia de liberdade humana seria necessária para estabelecer uma correlação. A capacidade de auto-transcendência do homem seria a origem da liberdade e da possibilidade do bem e do mal. Haveriam ainda as tendências de considerar o outro (other-regarding tendencies) e de considerar a si próprio (self-regarding tendencies), a primeira a fonte do bem, a segunda, do mal. O egoísmo, quando coletivizado, se expressa como tribalismo. Mas, desde que a norma do amor e da mutualidade é um princípio transcendental e essencial ao homem, o egoísmo seria a contradição do homem com sua natureza essencial. A experiência psicológica e social do egoísmo constituiria o pecado original, e a prisão da razão e da moral aos interesses pessoais e grupais constituiria o que Agostinho e Lutero denominaram a “escravidão da vontade” (Wiley, 2003:139).

Para Niebuhr, Gn 3 seria um “mito verdadeiro”, não tendo veracidade histórica, mas refletindo uma experiência real e temporal: a origem do mal a partir da liberdade humana. A auto-reflexão leva o homem a reconhecer a Queda como evento interno e

existencial, sempre repetido na falha humana. A imagem bíblica da perfeição original apontaria para a experiência psicológica da lei do amor, o critério transcendente da liberdade humana (Wiley, 2003:140-141). Quanto à idéia de herança biológica do pecado, Niebuhr a rejeitou completamente, pois isso o tornaria uma necessidade natural, sendo que ele é fruto da liberdade humana. Rejeitou assim o mecanismo agostiniano de explicação da universalidade do pecado, limitando-se a afirmá-la como fato empiricamente constatável.

Seguindo uma posição teológica agostiniana e reformada, Niebuhr rejeita a Queda como mera privação, pois isso implicaria em que a razão humana se manteve essencialmente intocada pelo pecado original. Em sua perspectiva, a razão humana foi positivamente corrompida pelo pecado. Niebuhr procurou explicar essa doutrina em termos modernos, utilizando a sociologia do conhecimento e as idéias de Karl Marx sobre ideologia e alienação; a corrupção da mente pelo pecado seria a distorção da verdade do indivíduo ou grupo por seus interesses egoístas (Wiley, 2003:141-142). Niebuhr sustentou, no entanto, que a imagem de Deus no homem não foi destruída, revelando-se no critério transcendente do amor. Não haveria, portanto, uma “depravação total”. Nessa base ele argumentou que o egoísmo seria não-natural, uma contradição do homem com sua natureza essencial (Wiley, 2003:143). 43

Aprofundando-se no estudo das fontes do pecado, Niebuhr chegou à ansiedade existencial, que não seria pecado, em si, mas uma pré-condição do egoísmo. A vontade

de poder é a busca inautêntica de auto-realização, quando o homem tenta lidar com a

insegurança existencial “sem reconhecer que a mutualidade é normativa para a natureza

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Wiley sustenta erroneamente, neste ponto, que Niebuhr teria se afastado da tradição reformada e se aproximado do catolicismo, ao divergir de Lutero, para quem a imagem de Deus no homem teria sido destruída. Entretanto, a posição de Calvino, outro Reformador, era de que a imagem de Deus não foi anulada pela Queda. Considerando que ele era de tradição reformada calvinista, é mais provável que ele tenha simplesmente mantido a forma agostiniana-calvinista de antropologia e hamartiologia.

criada ou que a natureza criada tem uma finalidade transcendente” (Wiley, 2003:145). A vontade de poder, princípio por trás da injustiça, era entendida por Niebuhr como uma explicação empírica e psicológica do pecado do orgulho indicado por Agostinho, e da incredulidade, apontado pelos Reformadores. A vontade de poder se refletiria então no egoísmo coletivo, que leva aos falsos absolutos e à injustiça social. Enfim, para Niebuhr, a luta contra o pecado seria permanente, uma vez que a conflitividade é uma dimensão permanente da vida humana; a graça salvadora não elimina o pecado nem remove o egoísmo, mas capacita o ser humano a cuidar do outro (Wiley, 2003:146- 147).

Os exemplos do católico Schoonenberg e do reformado Niebuhr são interessantes, na medida em que revelam a persistência de certas macro-tendências no interior da discussão sobre o pecado. Schoonenberg assume uma posição predominantemente otimista ao lidar com o pecado original, enquanto que Niebuhr reinterpreta o “pessimismo” agostiniano, explicando a corrupção positiva da natureza em termos modernos. Por outro lado, há uma nítida tendência de se suavizar o agostinianismo, mesmo quando ele é assumido, como no caso de Niebuhr.

Outra tendência bastante forte é a de procurar substituir o princípio explanatório da solidariedade humana no pecado, da unidade metafísica e transmissão biológica, para uma forma de solidariedade social e existencial. Essa tendência assume formas bem articuladas e abrangentes nas teologias da Libertação, que criticam a “privatização” e “legalização” do pecado, no pensamento teológico tradicional, e introduzem a categoria do pecado social, a fim de disponibilizar uma ferramenta teológica para a crítica social (Wiley, 2003:150). A mesma tendência é encontrada nas teologias Feministas, que identificam o pecado original com a sustentação social de uma condição de opressão sexista, envolvendo tanto os perpetradores da violência como as vítimas por meio de

legitimações ideológicas que incluem a própria interpretação tradicional dos textos bíblicos. A “herança” do pecado se dá na transmissão de estruturas e sistemas sociais injustos, que aprisionam os indivíduos dentro de limites e condicionamentos malignos (Wiley, 2003:175-176). Curiosamente, nessas formas “libertárias” de teologia, o pecado original se torna passível de localização temporal. Assim, algumas teólogas feministas afirmam que a Queda corresponde a nada menos que a emergência do patriarcado no mundo antigo (Wiley, 2003:159-161,172-173).

2.1.7. Síntese

O estudo da teologia cristã do pecado não poderia, naturalmente, ser exaustivo, considerando-se os limites e objetivos deste trabalho. Mas a visão panorâmica do tema nos ajudou a detectar alguns padrões que, acreditamos, poderiam nos ajudar a compreender o pensamento de Tillich: (1) em primeiro lugar, inferimos a partir dos conflitos entre os Gnósticos e os Pais Antignósticos, que a distinção entre Criação e

Queda é uma categoria fundamental. A universalidade da redenção em Cristo exigia

uma afirmação da universalidade do pecado, mas a bondade de Deus e da sua Criação bloqueou a solução gnóstica, estimulando o desenvolvimento de uma doutrina de Queda histórica, cujo propósito era expressar tal distinção; (2) para explicar a solidariedade

humana no pecado, um esforço secular foi feito no sentido de conectar a experiência

humana individual da pecaminosidade com a idéia de um início temporal do pecado no mundo, desenvolvendo-se assim a conexão entre o peccatum originalis originans e o

pecccatum originalis originatum em uma hamartiologia unificada, que encontramos no

agostinianismo. Essa conexão estabelece o problema da transmissão do pecado; (3) o debate de Agostinho com Pelágio sobre o pecado e a graça envolveu, entre outros, o problema da “gravidade” da corrupção da Queda, refletido, posteriormente, na

formulação anselmiana do pecado como privação, e na restauração Reformada do pessimismo agostiniano. Poderíamos descrever essa questão como a da relação entre

natureza e graça; (4) finalmente, um quarto ponto bastante discutido, é o da natureza da

experiência humana do pecado, que desde que os primórdios assumiu tonalidades profundamente existenciais, como em Agostinho, Anselmo, Lutero, ou Niebuhr. Trata- se da questão da essência e dinâmica do pecado. (5) Uma quinta característica é a tendência moderna de interpretar a experiência do pecado em termos de alienação

existencial, rejeitando-se o mecanismo agostiniano de transmissão biológica/unidade

metafísica a partir de Adão. Usaremos, em nossas reflexões sobre Tillich, estes cinco pontos como termos de comparação, para tentar localizá-lo melhor no interior da tradição hamartiológica cristã.

2.2. A Recepção da Teologia Cristã do Pecado em Paul Tillich: