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2. Paul Tillich e o Desafio Hermenêutico do Símbolo da

2.2. A Recepção da Teologia Cristã do Pecado em Paul Tillich: Influências

2.2.2. A Raiz Agostiniana

As referências de Tillich ao pensamento patrístico até agora, nos ajudaram a perceber algumas de suas escolhas teóricas: ele admite a importância da diferenciação antignóstica de Criação e Queda, e procura interpretar isso em termos neoplatônicos e utilizando-se da noção origenista de Queda transcendental.

Isso ainda nos deixa muito longe, no entanto, de uma hamartiologia específica. Sabemos que a doutrina da Queda é um símbolo conceitual que se constituiu ao longo de séculos, em meio a grandes debates. Em tese, Tillich poderia ter escolhido um ponto da história em que não ainda havia uma concepção dominante; ou ter selecionado a visão de uma corrente teológica minoritária como ponto de partida; ou poderia ter mantido unicamente a imagem espaço-temporal de uma “Queda”, para discorrer sobre a distorção da criação, abstraindo-a completamente de qualquer conceito teológico tradicional. De modo que ainda precisamos perguntar, de que “Queda” Tillich está

falando, afinal.

Na percepção de Langdon Gilkey, a interpretação da Queda no volume dois da TS é uma revisão do conceito Agostiniano de Queda (Gilkey, 2000:118); Tillich teria interpretado a relação entre criação e Queda “de uma forma genuinamente Agostiniana” (Gilkey, 2000:124). O exame de seu tratamento na TS confirma essa percepção, na presença dos temas agostinianos da liberdade, da inexplicabilidade do pecado, e do primeiro e último Adão, no uso da idéia de “pecado original”, na definição de pecado

como “hybris” e “concupiscência”, e em sua preocupação em se afastar do dualismo maniqueísta e do moralismo pelagiano.

De fato, Tillich admitiu, em mais de uma ocasião, que se definia como um teólogo de inclinação agostiniana: “Devo confessar, sem ambigüidade, que toda a minha teologia fica mais na linha de tradição agostiniana do que tomista” (HPC, 2005:117). Em sua exposição resumida do pensamento de Agostinho, Tillich ocupa boa parte do espaço com as raízes de sua compreensão da Queda. Refere-se à rejeição Agostiniana do maniqueísmo, como explicação do pecado a partir de dois princípios igualmente finais (HPC, 2005:119), e observa que “Sua doutrina do pecado talvez não possa ser entendida sem esse período maniqueísta” (HPC, 2005:120). Mas é no tratamento da controvérsia pelagiana que encontramos uma exposição mais clara do ponto.

A explicação Agostiniana da deformação da natureza essencial do homem (em si mesma, além do tempo e do espaço) seria a doutrina Agostiniana do pecado original, que estaria dentro da tradição do Novo Testamento e da igreja, e teria se desenvolvido na controvérsia pelagiana (HPC, 2005:135). Tillich rejeita a interpretação comum de que o grande tema da controvérsia pelagiana tenha sido o problema da liberdade humana. Segundo ele, o decisivo era a questão da relação entre ética e religião, entre o imperativo moral e a graça divina (HPC:135).45

O erro apontado por Agostinho em Pelágio, na interpretação de Tillich, teria sido o esquecimento da “universalidade trágica do pecado”. Este elemento trágico estaria no cristianismo e também na visão grega do mundo (HPC, 2005:136). Tillich explica a noção agostiniana do pecado original, hereditariamente transmitido, como uma expressão desse elemento trágico do pecado e de sua universalidade, isto é da

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Essa discussão é exatamente o núcleo da complexa discussão filosófica que Tillich apresenta na sua dissertação sobre Schelling: Mysticism and Guilt-Consciousness (1912): o problema da relação entre o senso de separação moral de Deus, e o de unidade com o seu amor.

participação inevitável de todos os homens no pecado. Tillich também estabelece uma distinção entre a visão agostiniana e a dos Reformadores: Agostinho cria que o homem estava sob um risco tão grande, em ter liberdade pessoal, que Deus lhe conferiu uma graça ajudadora, para auxiliá-lo na obediência (adjutorum gratiae). Os Reformadores rejeitariam essa noção por sua própria ênfase na integridade e suficiência da natureza humana criada. Para eles, qualquer noção de donum superadditum estava fora de questão. Tillich observa, com grande perspicácia, que na noção de donum superadditum haveria algo da idéia grega de matéria como poder resistente à forma (HPC:137-138).

No tocante à “essência” do pecado, Tillich enfatiza a sua natureza religiosa e supramoral, segundo Agostinho. Cita-o: “O começo do pecado é o orgulho; o começo do orgulho, o abandono de Deus”. Niebuhr utiliza este termo (pride) para o pecado original, alinhando-se com Agostinho, mas, na opinião de Tillich, o termo grego hybris seria mais adequado para expressar o pecado fundamental (HPC:138). A punição imediata do pecado seria ontológica: aquilo mesmo que ele intenciona, a separação de Deus, a perda do bem supremo, e a morte espiritual. Com essa morte, a alma perde o controle do corpo, caindo na prisão da concupiscência, o desejo infinito e interminável de realizar o próprio ser com a abundância da realidade (HPC:139).

Tillich comenta ainda as idéias de Agostinho sobre a transmissão do pecado. Rejeita, naturalmente, a tentativa de reunir a espiritualidade do pecado humano com a sua transmissão biológica hereditária a partir de Adão, bem como as idéias negativas sobre a sexualidade. Mas reconhece um significado válido na dura doutrina da massa

perditionis:

Esta é a mais poderosa ênfase na solidariedade da raça humana na tragédia do pecado. Assim, ele nega radicalmente – quase num sentido maniqueu – a liberdade da personalidade individual. A unidade abrangente da humanidade faz com que sejamos o que somos. Ora, à luz da moderna pesquisa levada a efeito pela psicologia profunda e pela sociologia, podemos provavelmente entender melhor do que

nossos pais o que Agostinho queria dizer, ou seja, a participação inevitável de cada pessoa na existência humana, na estrutura social, bem como na estrutura psicológica individual, neurótica ou não (HPC:140).

Tillich procura, aqui, interpretar a solidariedade humana no pecado em termos sociológicos e existenciais, seguindo a tendência que, como observamos, se repete no século XX, tanto em meios católicos como protestantes. Enfim, ele reconhece que o homem perdeu a sua liberdade de voltar para o bem, estando sob a lei da escravidão, e totalmente dependente da graça divina. Comenta ainda a predestinação e a irresistibilidade da graça, sem discutir profundamente o seu significado (HPC:141).

É evidente, a partir de sua exposição, que Tillich não pretende simplesmente superar, ou substituir o dogma do pecado original, que surge, então, como um símbolo que plasma uma imagem mítica do mal com aspectos conceituais – um símbolo conceitual, teológico. Quando Tillich se refere ao “símbolo da Queda”, ele tem em mente a doutrina clássica, Agostiniana, mesmo sabendo que “[...] ela nunca foi plenamente recebida pela igreja” (HPC, 2005:142), e não indica qualquer disposição de negociar o elemento da liberdade humana (captado por Agostinho na controvérsia maniqueísta) ou o elemento da universalidade trágica (expresso, na controvérsia pelagiana, no dogma do pecado original). A formulação Agostiniana estaria de acordo com os pais antignósticos e com o pensamento dos reformadores, e poderia ser descrita como o “símbolo agostiniano da Queda”.

Naturalmente, Tillich não poderia absorver o símbolo da Queda sem algum processamento teórico. Considerando ser impossível admitir a concepção literalista de Queda, mas certo de que as condições reais da vida, que ele descreve como a “existência” não são logicamente necessárias, mas são distantes da “essência”, Tillich procurou fazer uma recepção parcial do símbolo clássico, no que ele denominou “semi-

desmitologização”, ou “desmitologização parcial” do mito (TS, 2005:325). Ele submete, portanto, o símbolo da Queda a um tratamento hermenêutico, procurando extrair seu significado e mostrar sua relevância. É a sua interpretação do símbolo Agostiniano que pretendemos discutir com detalhes mais adiante.