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2. Paul Tillich e o Desafio Hermenêutico do Símbolo da

2.2. A Recepção da Teologia Cristã do Pecado em Paul Tillich: Influências

2.2.3. Tillich e os Reformadores

Tillich foi profundamente influenciado pelos reformadores, inclusive em sua compreensão do pecado. No exame das doutrinas de Lutero ele trata de pecado e fé sob um único título, e começa tratando da essência do pecado, citando Lutero diretamente: “Falta de fé é o verdadeiro pecado [...] Nada justifica a não ser a fé; nada é pecaminoso a não ser a falta de fé” (HPC:243). Segundo Tillich, a fé da qual Lutero fala nada tem a ver com doutrinas; e o pecado a que ele se refere é muito mais do que atos isolados. A concepção de pecado de Lutero não é legalista, mas relacional: “Tudo o que nos separa de Deus tem o mesmo peso; não há ‘mais’ nem ‘menos’” (HPC:243). Tillich apóia a noção Luterana de “depravação total”, mas explica que ela não significa a ausência total de bem no homem, e sim, que não há parte ou dimensão do ser humano que não tenha sido atingida pelo pecado; depravação significa que o pecado atingiu o homem radicalmente. Assim, tudo foi atingido pela “autocontradição” (HPC:244). O pecado também é falta de amor a Deus. Mas a fé é condição para o amor: “[...] a fé sempre precede o amor porque é nela que recebemos Deus, e o amor é o ato no qual nos unimos a Deus” (HPC:244). A fé, condição do amor, é a atitude de receber (nihil facere sed

tantum recipere), que torna possível se unir a Deus. O pecado é o inverso disso: “Lutero

chama de ‘falta-de-fé’, consubstanciada no estado de não se unir ao poder do próprio ser, à realidade divina em oposição às forças da separação e da compulsão” (HPC:245).

Tillich destaca também a ênfase de Lutero sobre os poderes demônicos. Em primeiro lugar, o diabo seria, em Lutero, o próprio órgão da ira de Deus. Segundo Tillich, as duas realidades seriam a mesma coisa; o que Deus é, demônico e destrutivo, ou salvador, depende de como nós nos posicionamos em relação a Ele.46 Tillich também usa essa noção para explicar a idéia de escravidão da vontade de Lutero. O pecado não seria somente fruto da liberdade pessoal, mas também de estruturas que nos oprimem e nos prendem. Tillich descreve essa escravidão como “estruturas demônicas” (HPC:244). Finalmente, não poderíamos nos esquecer da importância atribuída por Tillich à noção de paradoxo para interpretar a relação com Deus, como uma “oscilação” entre a justiça e a injustiça. O homem deve viver em perpétuo arrependimento, sempre consciente, simultaneamente, de sua separação e de sua aceitação gratuita diante de Deus (HPC:232). É, portanto, simultaneamente pecador e justo.

Em seus comentários sobre Calvino, Tillich chama a atenção para a atitude central calvinista, que seria o seu horror à idolatria, a perda de consciência da transcendência de Deus em relação a todos os símbolos religiosos. Tillich impressiona- se com a acusação de Calvino, de que a mente humana seria uma “fábrica de ídolos” (HPC:260), e com a sua negatividade em relação à condição de Queda: “[...] a situação humana é descrita por Calvino em termos muito mais negativos que por Lutero” (HPC:261). Mas parece concordar com Calvino no fato de que os homens não suportam a sua realidade, evitando ver-se como são realmente.

Quanto à origem do mal, Tillich mostra-se simpático com o fato de Calvino ter, efetivamente, admitido que “os atos maus de Satã e dos homens maus são determinados pela vontade de Deus” afirmando, ao mesmo tempo, que o homem é totalmente

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“Lutero se refere às criaturas como ‘máscaras’ de Deus [...] os Anibals, os Alexandres e os Napoleões – e acrescentaria hoje os Hitlers, ou os godos, os vândalos e os turcos – acrescentando os nazistas e os comunistas - são conduzidos por Deus para atacar e destruir, de tal maneira que Deus nos fala por meio deles. Eles são a palavra de Deus para nós e até mesmo para a igreja” (HPC:246).

responsável pelo seu pecado. O mal moral não seria meramente resultado da permissão de Deus, senão também um aspecto da ação de Deus por meio de suas criaturas (HPC:262-263). O próprio Tillich nega que isto implique em “determinismo”, dando a entender que a causa, em Calvino, não seria redutível à necessidade natural:

Como Lutero, Calvino estava pensando em dois níveis. A causa divina não é realmente uma causa, mas um decreto, algo misterioso, para o qual a categoria da causalidade emprega-se apenas simbolicamente, e não em sentido literal. Além disso, Calvino sabia, como os outros reformadores e todos os adeptos da doutrina da predestinação, que quando Deus decreta a predestinação, o faz por meio da liberdade finita do homem (HPC:265).

Tillich se declara a favor dessa forma de pensar, em “dois níveis”, usando a categoria da causalidade para expressar a dependência de todas as coisas em relação a Deus, mas evitando compreender essa categoria literalmente, isto é, de modo a negar a realidade da liberdade finita do homem (HPC:265-266).

Tillich estava bem consciente das diferenças entre a visão católica clássica e a visão dos Reformadores sobre a gravidade da Queda – a questão da relação entre natureza e graça. Tomás de Aquino teria ensinado que a natureza é aperfeiçoada pela graça, e que tal estrutura era anterior à Queda; “Deus dera a Adão no paraíso não apenas capacidades naturais, mas o donum superadditum, o acréscimo de um outro dom aos dons naturais” (HPC:196), que unia Adão a Deus. Tillich se apressa em concordar com Tomás, em que a natureza e a graça não se contradizem, mas está consciente da diferença fundamental da posição Reformada:

Nesse ponto o protestantismo se desviou completamente de Tomás de Aquino. Para o protestantismo, a natureza perfeita não precisava de nenhuma graça adicional; se fomos realmente criados com perfeição não é necessária nenhuma graça superior. Portanto, o protestantismo eliminou a idéia do donum superadditum [...] No tomismo, a estrutura da realidade contém dois níveis. Para o protestantismo, a criação e completa em si mesma; as formas criadas da realidade são suficientes (HPC:196-197).

O perdão e a salvação trazem, na visão protestante, a restitutio ad integrum, a correção da natureza, não um complemento, como uma substância sobrenatural. É por isso que, no protestantismo, o mundo secular é “imediato a Deus”, e o protestantismo favorece a secularidade (HPC:197).47 No catolicismo, a Queda é mais uma privação que uma corrupção positiva; portanto a Queda não é apreendida em toda a sua negatividade. Assim, na teologia do Concílio de Trento, a liberdade humana se enfraqueceu, mas não se perdeu, e a concupiscência não é pecado (HPC:214); o pecado não é compreendido em termos relacionais-existenciais, como para os Reformadores, mas em termos de atos contra a lei divina: “Dessa maneira, o concílio de Trento não levou em consideração o conceito religioso de pecado” (HPC:215).